Palavras-Chaves cisto enterogenous - cisto neuroentérico - tumor da medula espinhal - disrafismo espinhal - laminectomia
Keywords enterogenous cyst - neurenteric cyst - spinal cord tumor - spinal dysraphism - laminectomy
Introdução
Cistos neuroentéricos espinhais são anomalias do desenvolvimento, inicialmente descritas por Puusepp em 1934. Mais comumente são encontrados no mediastino posterior e raramente estão presentes no sistema nervoso central.[1 ]
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Várias hipóteses têm sido sugeridas para explicar a embriogênese dos cistos neuroentéricos, entre elas a mais aceita seria uma incompleta separação entre o ectoderma e o endoderma, ocorrendo à persistência de resíduos do endoderma no interior do neuroectoderma, durante a terceira semana do desenvolvimento embrionário.[1 ]
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[5 ] Há raríssimos relatos de cistos neuroentéricos intracranianos com disseminação liquórica para a coluna vertebral.[3 ]
Geralmente localizados na coluna cervicotorácica, podem ser justamedulares (95% dos casos) ou intramedulares (5% dos casos). Predominam na região anterior da medula espinhal e representam 0,7-1,3% de todos os tumores espinhais. Principalmente encontrados em pacientes jovens, apresentam média de idade de 25,8 anos e predomínio no sexo masculino (2:1).[1 ]
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Relato do Caso
Paciente RCS, sexo feminino, 30 anos de idade. Admitida no serviço de emergência do Hospital de Base do Distrito Federal, Brasília, com o relato de paraparesia progressiva há cerca de 20 dias e incontinência urinária.
Ao exame estava consciente e orientada, paraparética (força grau III), hiperreflexia de patelar e aquileu bilateralmente e clônus esgotável em membros inferiores. Hipoestesia tátil e dolorosa, com nível sensitivo em T2. Ataxia sensitiva, com sinal de Roomberg presente. Incontinência urinária.
A tomografia de coluna evidenciou deformidade em padrão de asa de borboleta e fusão dos corpos vertebrais de T1-T2 com aumento da cifose torácica neste nível. A ressonância mostrou a presença de uma lesão cística intrarraquidiana e extramedular na topografia de T1-T2, isointensa na ponderação T1 e hiperintensa na ponderação T2.
Foi submetida a laminectomia e exérese da lesão cística. Optou-se por artrodese torácica via posterior no mesmo tempo cirúrgico com o intuito de evitar uma possível instabilidade e aumento da cifose torácica no pós-operatório. O exame histopatológico confirmou tratar-se de um cisto neuroentérico. Após a cirurgia a paciente manteve o mesmo déficit neurológico da admissão, sendo acompanhada ambulatorialmente.
Após 11 meses da cirurgia apresentou quadro doloroso e piora do déficit neurológico, passando de paraparesia com força grau III para grau II. A ressonância de controle mostrou recidiva da lesão. Foi submetido a nova exérese da lesão. No pós-operatório apresentou paraplegia. Durante internação hospitalar evoluiu com fístula liquórica pela ferida operatória e meningite bacteriana, sendo tratada com acetazolamida, cefepime e vancomicina.
Atualmente, quatro anos depois, segue em acompanhamento ambulatorial, sem recidiva da lesão. Mantém-se paraplégica, com anestesia tátil e dolorosa (nível sensitivo em T2) e realizando cateterismo vesical intermitente para esvaziamento da bexiga.
Discussão
A paciente deste relato iniciou o quadro com fraqueza progressiva nos membros inferiores e evolução de 20 dias. Manifestação semelhante à descrita pela literatura, que aponta a dorsalgia e o déficit neurológico progressivo como as formas iniciais de apresentação.[1 ]
Alguns pacientes apresentam surtos de dor e déficits transitórios.[1 ] A queixa de dor ocorreu apenas durante a recidiva da lesão, cerca de 11 meses após a primeira cirurgia. Aracnoidite química, meningismo devido a infecção e ruptura cística já foram descritos como sendo responsáveis pelo quadro doloroso.[2 ]
A tomografia mostrou alterações e fusões dos corpos vertebrais de T1 e T2 ([Figs. 1 ] e [2 ]). A frequente associação de defeitos vertebrais anteriores sugere fortemente que a origem dos cistos neuroentéricos está relacionada a defeitos de separação da notocorda durante a formação do canal alimentar.[8 ] Entre os defeitos podemos destacar a espinha bífida anterior ou posterior, defeitos em asa de borboleta, diastematomielias, fusões de corpos vertebrais, hemivértebras e Klippel-Feil.[7 ]
Fig. 1 Tomografia de coluna torácica mostrando malformação dos corpos vertebrais de T1e T2.
Fig. 2 Tomografia de coluna torácica em cortes axiais mostrando malformação dos corpos vertebrais de T1 e T2, tipo “asa de borboleta”.
Radiologicamente, são lesões não homogêneas, isointensas a levemente hiperintensas em T1, hiperintensas em T2 e sem realce ao meio de contraste. O sinal em T1 pode variar com a concentração de proteínas ou presença de hemorragias dentro do cisto.[6 ]
[9 ] Nas imagens deste caso evidenciamos um isosinal em T1 e hipersinal em T2, tanto no início do quadro ([Figs. 3 ], [4 ] e [5 ]) como na recidiva da lesão ([Fig. 6 ]).
Fig. 3 Ressonância de coluna cervicotorácica evidenciando lesão intrarraquidiana e extramedular. (A) cervical T1, (B) cervical T2, (C) torácica T1, (D) torácica T2.
Fig. 4 Ressonância magnética de coluna torácica, em cortes axiais: (A) T1 sem contraste, (B) T2.
Fig. 5 Ressonância magnética de coluna torácica em cortes coronais.
Fig. 6 Ressonância magnética sagital da coluna torácica. Recidiva da lesão. (A) Ponderação T1, (B) ponderação T2.
A paciente foi submetida a laminectomia e exérese do cisto ([Figs. 7 ] e [8 ]). A ressecção completa da lesão, com esvaziamento do cisto e remoção do envoltório, é o tratamento de eleição. O acesso por via posterior é a opção de escolha na maioria dos casos, sendo possível a realização da laminectomia ou lamintomia.[1 ]
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[6 ] Optamos por realizar artrodese via posterior com receio de ocorrer uma instabilidade ou progressão da cifose no pós-operatório, uma vez que a coluna já apresentava deformidades e cifose acentuada ao nível do cisto.
Fig. 7 Laminectomia + durotomia e exposição da lesão cística. Primeira abordagem cirúrgica.
Fig. 8 Aspecto medular após a exérese da lesão cística. Primeira abordagem cirúrgica.
Alguns autores realizam uma comunicação entre o leito da lesão e o espaço subaracnóideo após a completa remoção do cisto.[2 ] Entretanto, a ressecção parcial é uma alternativa possível em lesões intramedulares, devido à ausência de um plano de clivagem adequado, ou quando há grande aderência do cisto extramedular com a medula espinhal.[1 ]
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Após esta primeira cirurgia não houve melhora do déficit motor, a paciente manteve-se paraparética com força grau III. A melhora neurológica é dependente da idade do paciente, duração dos sintomas e do grau de descompressão medular.[2 ]
O estudo patológico evidenciou tratar-se de um cisto neuroentérico. Histologicamente, são cistos envoltos por epitélio colunar, ciliado ou não, pseudoestratificado e com grânulos de mucina em seu interior.[5 ]
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[10 ] A parede do cisto é positiva para citoqueratina, EMA e CEA e negativa para S100 e GFAP.[7 ]
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Apesar de consideramos ressecção completa na primeira cirurgia, 11 meses após houve recidiva da lesão, com dorsalgia e piora da fraqueza nos membros inferiores. As principais complicações pós-operatórias são a recidiva, aracnoidite e piora do déficit neurológico.[4 ] A recorrência do cisto pode acontecer devido ao acúmulo de líquor cefalorraquidiano por osmose ou à produção de um exsudato pela parede cística residual.[9 ]
A paciente realizou nova exérese da lesão ([Figs. 9 ] e [10 ]). A ressecção parcial está associada a uma maior taxa de recidiva, mas os trabalhos evidenciam que não há um pior prognóstico, nem mesmo após uma segunda intervenção.[1 ] No entanto, no pós-operatório a nossa paciente ficou paraplégica.
Fig. 9 Durotomia e exposição da lesão cística. Segunda abordagem cirúrgica.
Fig. 10 Aspecto medular após a exérese da lesão cística. Segunda abordagem cirúrgica.