Palavras-Chave
traumatismos da medula espinhal - ferimentos perfurantes - síndrome de Brown-Séquard - coluna cervical - laminectomia - prognóstico
Keywords
spinal cord injuries - stab - Brown-Séquard syndrome - laminectomy - prognosis
Introdução
O traumatismo raquimedular (TRM) está entre as principais causas de incapacidade física permanente no mundo. A prevalência é de 2,8 milhões de pacientes. Elevados custos econômicos e sociais estão implicados.[1] Adultos jovens do sexo masculino são os mais afetados. Lesões neurológicas ocorrem em 15 a 20% dos casos.[2]
Ferimentos por armas brancas (FAB) são causas incomuns de TRM. Respondem por 1,5% do total.[3]
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[7] As lesões localizam-se predominantemente na região torácica (74%), seguida pela coluna cervical (18%) e lombar (8%). A penetração no sentido posterior-anterior ocorre na maioria dos casos.[8]
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Os déficits neurológicos que se instalam imediatamente após o TRM perfurante ocorrem por lesão direta pelo corpo estranho, por compressão de fragmento ósseo deslocado para o canal medular ou por isquemia secundária a lesão vascular.[9]
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O presente relato de caso objetiva apresentar o quadro clínico característico da lesão penetrante, as opções terapêuticas e os resultados do tratamento cirúrgico precoce de um paciente com TRM por arma branca retida na coluna cervical.
Relato de Caso
Paciente do sexo masculino de 34 anos foi admitido no Hospital de Urgências de Goiânia, vítima de agressão física com arma branca retida em coluna cervical ([Fig. 1]).
Fig. 1 Ferimento por arma branca retida em coluna cervical.
Apresentava-se hemodinamicamente estável, com vias aéreas pérvias, respirando espontaneamente, sem dor abdominal, em decúbito ventral, imobilizado e com uma faca retida em coluna cervical. Ao exame neurológico, verificou-se escala de coma de Glasgow de 15, força de grau V em membro inferior direito e plegia em membro inferior esquerdo. Apresentava nível motor em C6 à esquerda, com força de grau III e sem déficit à direita. Sensibilidade termoálgica abolida à direita e preservada à esquerda. Sensibilidade vibratória e cinético-postural abolida à esquerda e preservada à direita. Ausência de nível sensitivo. O paciente não apresentava sinais clínicos de isquemia do território vertebrobasilar.
O exame de raios X da coluna cervical realizado antes da transferência do paciente mostrava a arma branca no nível de C6-C7 ([Fig. 2]).
Fig. 2 Radiografia da admissão em perfil, evidenciando arma branca na coluna cervical posterior, no nível de C6-C7.
Foi solicitada tomografia da coluna cervical que mostrou a arma branca atravessando o canal vertebral no nível de C6-C7 até o forame da artéria vertebral à esquerda ([Fig. 3]). A tomografia do crânio não apresentava alterações.
Fig. 3 Tomografia da coluna cervical pré-operatória em corte axial, mostrando trajeto da arma através da vértebra, com penetração do canal vertebral até o forame da artéria vertebral esquerda.
Após avaliação clínica e radiológica, o paciente foi encaminhado ao centro cirúrgico. Não foi realizado estudo dirigido para diagnóstico de lesão da artéria vertebral no pré-operatório. O paciente foi submetido a anestesia geral, posicionado em decúbito ventral, e foi realizada antissepsia. Antibióticos profiláticos e dexametasona foram administrados antes do procedimento. Foi realizada incisão mediana e dissecção até a exposição das lâminas de C5 a C7 e visualização do corpo estranho perfurando a lâmina de C6.
Foi realizada pequena laminectomia de C7 até C6, preservando as facetas articulares, expondo a falha dural ao redor da arma branca. No final da laminectomia, a arma branca se encontrava solta, sem resistência para sua retirada ([Fig. 4]). Realizada hemostasia e sutura da dura-máter com prolene e enxerto de fáscia muscular. Um dreno de sucção foi colocado no subcutâneo, e o fechamento foi realizado por planos com pontos separados.
Fig. 4 Corpo estranho retirado após laminectomia.
O procedimento demorou cerca de 2 horas. Logo após a cirurgia, o paciente foi extubado e reavaliado na sala de recuperação anestésica. Não apresentou déficits adicionais em relação ao exame pré-operatório.
O paciente permaneceu internado por 8 dias e recebeu alta com o quadro neurológico semelhante ao da admissão. Não apresentou fistula liquórica nem infecção da ferida operatória. Não apresentou sinais clínicos de lesão da artéria vertebral. Após 3 meses de alta, deambulava com muletas, com força de grau V em ambos os membros superiores e com força de grau II no membro inferior esquerdo. A tomografia de controle mostrou ausência de corpos estranhos ou fragmentos ósseos no canal vertebral, com lordose cervical preservada ([Figs. 5] e [6]). O exame de raios X dinâmico não demonstrou luxações. Foram solicitadas arteriografia e ressonância magnética da coluna cervical 3 meses após a alta, mas o acompanhamento foi perdido, e o paciente não mais retornou ao ambulatório.
Fig. 5 Tomografia da coluna cervical pós-operatória.
Fig. 6 Tomografia com reconstrução 3D pós-operatória.
Discussão
O tratamento cirúrgico para o TRM penetrante tem como objetivos principais evitar progressão do déficit neurológico e corrigir eventuais instabilidades da coluna. O cirurgião deve ser capaz de realizar o tratamento antes que o paciente desenvolva o déficit neurológico completo.[6]
As indicações de abordagem cirúrgica de um paciente com TRM por arma branca são: corpo estranho retido, presença de fístula liquórica, piora progressiva do quadro neurológico,[5]
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[10] herniações da medula,[14] hematoma epidural agudo,[15] lesões vasculares[16] ou evidências de compressões medulares.[8]
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As artérias vertebrais estão localizadas dentro do forame vertebral, protegidas pelos processos transversos de C6 a C2.[17]
[18] Sua lesão é pouco frequente. Ocorre em 7,4% das perfurações provocadas por arma branca na coluna cervical, contra 1% das decorrentes de armas de fogo.[19]
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[21] O melhor exame para sua detecção é o cateterismo angiográfico.[22]
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Aproximadamente 50% dos pacientes com lesão motora incompleta decorrente de TRM por FAB apresentam síndrome de Brown-Séquard.[4] Destes, apenas uma pequena parte cursa com todas as características da síndrome, composta por diminuição da sensibilidade termoálgica em um dimídio e paresia com diminuição da sensibilidade vibratória e postural contralaterais.[25] O paciente do nosso estudo apresentava todas as características desta síndrome.
Lesões medulares por arma branca comumente determinam déficits neurológicos imediatos a deterioração neurológica tardia e são observadas em uma minoria de pacientes (4,9%). Suas possíveis causas são a siringomielia, aracnoidite, degeneração microcística, herniação da medula por defeito dural, formação de abscessos, granulomas ou incrustação de ferro na medula.[15]
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Um estudo multicêntrico prospectivo, que acompanhou a evolução do déficit neurológico de 32 pacientes vítimas de TRM por FAB, verificou que, daqueles que apresentavam lesões incompletas, mais da metade retornou ao emprego. Esse estudo mostrou também que 14% dos pacientes evoluíram com melhora completa do déficit motor após 3 a 9 meses.[4]
Peacock et al,[10] na mais longa série de casos sobre o assunto, constataram que dois terços dos pacientes tiveram recuperação funcional positiva. Resultados semelhantes foram verificados por outros autores.[3]
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Após 3 meses de recuperação, o paciente do caso descrito foi capaz de deambular com muletas e recuperou completamente o déficit do membro superior. Apresentava força de grau III no membro inferior esquerdo e disestesias no membro inferior direito.
Conclusão
Pacientes com lesão medular incompleta por arma branca retida na coluna apresentam bom prognóstico se forem tratados precocemente. O objetivo da cirurgia é a retirada do objeto retido, sem provocar déficit motor ou sensitivo adicional, com correção do defeito dural e de eventuais instabilidades.