Introdução
Paciente LMBG, do sexo feminino, 38 anos, foi submetida em 1997 a biópsia estereotáxica
em outro serviço devido a lesão expansiva intraventricular. Resultado do exame anatomopatológico
na ocasião: oligodendroglioma. Radioterapia foi utilizada como terapia complementar.
Houve perda de seguimento com a equipe responsável pelo primeiro tratamento, após
a conclusão da terapia radioterápica.
A mesma foi admitida em nosso serviço, em 2013, após início de cefaleia refratária
30 dias antes do internamento. Houve associação com náuseas e vômitos em torno dos
15 dias subsequentes à cefaleia e evolução com paraparesia nos membros inferiores.
Cinco dias antes do encaminhamento ao nosso serviço, apresentou dificuldade de fala
e “desmaios”. No exame físico, encontrava-se vígil, mas com disfasia motora. Apresentava
paraparesia de grau III nos membros inferiores, simetricamente, e parestesias de grau
I nos membros inferiores. Havia ausência de sinais de liberação piramidal e ausência
de acometimento de pares cranianos ou de função cerebelar. Os reflexos profundos estavam
presentes e simétricos. Foi realizada investigação com imagem, sendo evidenciada lesão
expansiva sólido-cística intraventricular ([Figs. 1], [2], [3]). A paciente foi submetida a tratamento microneurocirúrgico com abordagem transcalosa
sem intercorrências. A ressecção lesional foi evidenciada ([Fig. 4]).
Fig. 1 Corte sagital de RM de encéfalo em T1 contrastada evidenciando afilamento de corpo
caloso, bem como lesão sólido-cística intraventricular medindo 6,1 cm de comprimento
anteroposterior.
Fig. 2 Corte axial de RM de encéfalo em T1 contrastada demonstrando lesão sólido-cística
intraventricular medindo 5,3 cm de comprimento laterolateral.
Fig. 3 Corte coronal de RM de encéfalo em T1 contrastada demonstrando lesão sólido-cística
intraventricular medindo 2,8 cm de comprimento crânio caudal.
Fig. 4 Três cortes axiais, em sequência, de tomografia contrastada com ressecção lesional.
O pós-operatório ocorreu com afasia motora sem novos déficits. A paciente recebeu
alta no sétimo dia de pós-operatório. Após novo estudo patológico, foi evidenciado
craniofaringioma do subtipo adamantinomatoso.
Discussão
Craniofaringiomas puramente intraventriculares são muito raros. A incidência na literatura
varia entre 0,1 e 16,6%, com média de 2,8% de todos os craniofaringiomas. A [Tabela 1] define a frequência dos craniofaringiomas puramente intraventriculares em diversos
estudos.[1] O primeiro caso foi descrito em 1953 por Dobos,[2] e desde então são poucos os casos descritos na literatura. Até a década de 1990,
apenas 22 casos haviam sido descritos.[3] Alguns casos descritos antes do emprego da ressonância magnética (RM) no diagnóstico
dessas lesões tinham a classificação topográfica do tumor imprecisa, o que acarretava
diagnóstico incorreto de tumor primariamente suprasselar com invasão secundária do
terceiro ventrículo como intraventricular e vice-versa. Os craniofaringiomas que acometem
a cavidade ventricular devem ser diferenciados quanto a sua topografia, sendo possível
enquadrá-los em quatro grupos: craniofaringioma pseudointraventricular, intraventricular
secundário, intraventricular e puramente intraventricular. Os primeiros são tumores
suprasselares que empurram a parede inferior do terceiro ventrículo para cima, enquanto
os secundários são massas suprasselares que invadem a cavidade intraventricular ao
atravessar a parede inferior do terceiro ventrículo. Com relação aos intraventriculares,
a maioria invade o assoalho do terceiro ventrículo, que é substituído pelo tumor,
havendo apenas uma pequena porção de casos em que as margens do ventrículo permanecem
intactas – os craniofaringiomas puramente intraventriculares. Outra diferença entre
os tumores intraventriculares se encontra no padrão de adesão ao assoalho do ventrículo.
Enquanto os puramente intraventriculares em geral se conectam ao assoalho ventricular
por um processo pedunculado, vascularizado e sem gliose reacional (em 48% dos casos),
os tumores não puramente intraventriculares apresentam extensa e firme adesão ao assoalho
e às paredes laterais do terceiro ventrículo, sem uma camada leptomeníngea que separe
o tecido neural da parede tumoral (em até 64% dos casos).[2]
Tabela 1
|
Série
|
% CPIV
|
|
Behari et al[5]
|
8,0
|
|
Steno et al[10]
|
1,3
|
|
Tomita, Browman[11]
|
16,6
|
|
Zuccaro[12]
|
1,3
|
|
Lena et al[13]
|
2,1
|
|
Shi et al[14]
|
8,0
|
|
De Divitis et al[15]
|
0,1
|
|
Zhang et al[16]
|
2,4
|
|
Pan et al[17]
|
4,6
|
Dois subtipos de craniofaringiomas foram descritos: adamantinomatosos e papilares,
com diferenças histopatológicas e radiológicas, resumidas nas [Tabelas 2] e [3].[4] O subtipo adamantinomatoso acomete principalmente crianças, embora possa acometer
adultos. É heterogêneo, com partes sólida e cística, de superfície lisa irregularmente
lobulada. Em seu interior, apresenta líquido marrom ou amarelado com cristais de colesterol,
áreas sólidas com consistência granulosa, microcistos de queratina e cálcio, e o tecido
cerebral peritumoral apresenta densa gliose, rica em fibras de Rosenthal, que são
pequenas ilhas de células tumorais distantes da massa tumoral.[3] Na ressonância, imagens em T1 pré-contraste frequentemente revelam cisto único ou
múltiplo hiperintenso com fino realce periférico; e em T2, os cistos podem ser hipo
ou hiperintensos.[4] Esses cistos contêm colesterol, triglicerídeos, meta-hemoglobina, proteína e epitélio
descamativo. Os tumores adamantinomatosos são mais fortemente associados aos craniofaringiomas
não puramente intraventriculares.[2]
Tabela 2
|
Histopatologia
|
Adamantinomatoso
(misto sólido-cístico)
|
Escamoso-papilar
(predominantemente sólido)
|
|
Deslocamento ou aderência a vasos ou nervos cranianos adjacentes
|
+
|
−
|
|
Calcificações
|
+
|
Raro
|
|
Cisto com colesterol
|
+
|
−
|
|
Nódulo de queratina
|
+
|
−
|
|
Fendas de colesterol
|
+
|
−
|
|
Bridas necróticas e fibrose
|
+
|
−
|
|
Epitélio escamoso queratina-positivo com:
|
|
|
|
Paliçada celular periférica
|
+
|
−
|
|
Retículo estrelado
|
+
|
−
|
|
Formações papilares
|
−
|
+
|
|
Reação inflamatória
|
+
|
−
|
|
Invasão cerebral
|
+++
|
+
|
Tabela 3
|
Craniofaringioma adamantinomatoso
|
Craniofaringioma escamoso-papilar
|
|
Localização
|
Suprasselar
|
Intrasselar/suprasselar ou suprasselar
|
|
Idade
|
Crianças (ocasionalmente em adultos)
|
Adultos
|
|
Estrutura tecidual
|
Predominantemente cístico†
|
Predominantemente sólido*
|
|
Cisto tumoral em imagem T1 sem contraste
|
Cisto hiperintenso (clássico)*; possível cisto hipointenso
|
Cisto hipointenso, se houver*
|
|
Forma tumoral
|
Predominantemente lobulado*
|
Predominantemente esférico*
|
|
Revestimento de artérias subaracnóideas
|
Sim*
|
Não
|
|
Recorrência tumoral
|
+++
|
+
|
|
Calcificações
|
+++
|
+
|
O subtipo papilar acomete quase exclusivamente adultos, com pico entre 40 e 45 anos
de idade,[3] e exibe tendência em acometer o terceiro ventrículo (40% dos casos).[2] À macroscopia, é um tumor predominantemente cístico, de paredes finas. Histologicamente,
são verificados cordões anastomóticos de epitélio pavimentoso no interior de um estroma
de tecido conjuntivo frouxo; no centro, são encontradas células queratinizadas; não
são encontrados nódulos queratoides, calcificações ou cristais de colesterol; o tecido
cerebral peritumoral apresenta discreta gliose e é desprovido de células tumorais.[3] Caso apresente cistos, estes são de sinal hipointenso nas imagens em T1 sem contraste
na RM.
Calcificações podem ocorrer em ambos os subtipos, embora sejam mais frequentes no
adamantinomatoso, que também apresenta maior taxa de recorrência,[4] o que é, em parte, explicado pelas características do tecido peritumoral. Talvez,
essa característica do subtipo adamantinomatoso explique o período de latência encontrado
em nosso caso.
Os craniofaringiomas intraventriculares acometem uma faixa etária mais elevada que
os clássicos suprasselares. Devido ao lento crescimento e à localização intracavitária,
a obstrução ao fluxo do líquido cefalorraquidiano e a invasão de estruturas vitais
ocorrem mais tardiamente, atrasando o diagnóstico.[5]
[6] Essa variedade topográfica apresenta outras diferenças em relação aos tumores suprasselares.
Enquanto os distúrbios visuais e endócrinos são bastante comuns nos tumores suprasselares,
com uma prevalência de 70-90%, a frequência é significativamente menor nos intraventriculares
(28 e 27%, respectivamente); o contrário ocorre em relação aos sintomas psiquiátricos,
com 40% destes nos tumores puramente intraventriculares e menos de 15% nos suprasselares.[2]
[3]
[5]
[6] Perda de memória acomete até 33% dos pacientes com esse raro tumor. Essas diferenças
podem ser explicadas pela posição do tumor, envolvendo assoalho de terceiro ventrículo,
corpos mamilares e hipotálamo. O envolvimento do terceiro ventrículo e do hipotálamo
frequentemente se associa à obesidade, distrofia sexual e diabetes insípido.[1] Esses pacientes podem apresentar quadro de cefaleia e vômitos, por aumento da pressão
intracraniana.[5]
[6] O comprometimento visual é mais comum nos tumores suprasselares; nos intraventriculares,
decorre de compressão quiasmática pelo abaulamento da lâmina terminal e do recesso
quiasmático do terceiro ventrículo.[5]
Behari et al[5] relataram seis casos de craniofaringiomas puramente intraventriculares. Em todos
os casos o diagnóstico foi confirmado pré-operatoriamente com ressonância magnética.
Quatro pacientes apresentaram lesões císticas, e dois apresentaram lesões sólidas,
sendo que todos tinham quadro de hipertensão intracraniana e papiledema. Todos foram
submetidos à cirurgia, por diferentes abordagens, sendo que dois pacientes receberam
radioterapia para lesão residual. Um paciente morreu por septicemia no período perioperatório.
Durante o seguimento, de até 36 meses, exames de tomografia não demonstraram recorrência
ou crescimento de lesões. Tayari et al[6] relataram o caso de uma paciente de 22 anos, com queixa de cefaleia crônica, apresentando
papiledema. A ressonância magnética pré-operatória demonstrou grande lesão hiperintensa
em T1 e hipointensa em T2 no terceiro ventrículo, obstruindo o forame de Monro. A
paciente foi submetida à cirurgia por via transcalosa, e o diagnóstico foi confirmado
por anatomopatologia, que revelou tumor papilar misto. Durante seguimento, por 9 meses,
não houve recorrência ou crescimento de lesão.
O diagnóstico topográfico correto dos craniofaringiomas é fundamental para que se
possa estabelecer o plano cirúrgico, já que o acesso é diferente para tumores suprasselares
e intraventriculares. O erro no diagnóstico topográfico do tumor leva à abordagem
cirúrgica inadequada.[2] Ambos podem ser acessados via pterional ou subfrontal, que pode incluir osteotomia
orbitozigomática ou clinoidal. No caso de tumores suprasselares, geralmente não é
necessária a abertura da lâmina terminal, enquanto os intraventriculares são acessados
através dessa estrutura.[5] A ressonância magnética e a tomografia devem demonstrar o assoalho do terceiro ventrículo
intacto, cisterna suprasselar evidente, haste hipofisária dentro da normalidade, e
ausência de alterações selares. A calcificação do tumor, comum nos suprasselares (50-80%),
é rara na variedade intraventricular.[5] A confirmação por neuroimagem pode ser difícil, uma vez que, por ocasião do diagnóstico,
os tumores geralmente são grandes e já invadiram o terceiro ventrículo, dificultando
a diferenciação anatômica entre as margens ventriculares e tumorais. Existem dados,
porém, que sugerem e devem levantar a suspeita de craniofaringioma intraventricular:
tumor arredondado, sólido ou cístico, com intensidade de sinal homogênea.[2]
O ideal é que haja diferenciação pré-operatória entre tumores exclusivamente intraventriculares
(puramente intraventricular ou não), mas mesmo com os recursos diagnósticos atuais,
isso geralmente não ocorre, uma vez que a RM pré-operatoria dificilmente consegue
definir o envolvimento extra ou subpial do ventrículo pelo craniofaringioma.[1] No pós-operatório, entretanto, a RM identifica a integridade do assoalho e a situação
do terceiro ventrículo, permitindo o diagnóstico diferencial entre estes subtipos
topográficos.[2] Algumas características dos tumores não puramente intraventriculares são o padrão
histológico predominantemente adamantinomatoso, adesões extensas e firmes ao assoalho
do terceiro ventrículo, e pior resultado cirúrgico pela proximidade do hipotálamo.[2]
Os principais diagnósticos diferenciais com tumores primariamente originados no ventrículo
incluem cisto coloide, ependimoma, papiloma de plexo coroide, astrocitoma e meningioma.[5]
[6] Embora os métodos de imagem sejam fundamentais no diagnóstico das patologias cerebrais,
o diagnóstico histopatológico só é possível com biópsia. Há relatos na literatura
de casos em que o diagnóstico baseado apenas em métodos de imagem estaria incorreto
entre 13% e 26% dos casos.[7]
As indicações de biópsia estereotáxica são várias, incluindo a obtenção de amostras
de lesões expansivas intracranianas, drenagem de cistos, abscessos e hematomas, ressecção
de lesões cerebrais em áreas eloquentes, radiocirurgia, implante de isótopos radioativos,
dentre outras.[8] Embora o correto diagnóstico possa ser observado na imensa maioria dos casos, dificuldades
na interpretação da biópsia estereotáxica podem levar a erros diagnósticos, como ocorreu
com o caso do paciente aqui relatado. Segundo Pittella,[8] as principais situações que podem levar a erro são: esfregaços espessos e hipercelulares
de substância branca normal, simulando glioma de baixo grau; gliose reacional com
fibras de Rosenthal em torno de craniofaringiomas, simulando astrocitoma; lesões de
fossa posterior que contenham neurônios da camada granular, simulando meduloblastoma,
linfoma ou processo inflamatório por gerar esfregaços densamente celulares e de células
pequenas; neoplasias primárias pouco diferenciadas versus metástases; e o acerto na classificação e graduação da neoplasia.
O tratamento de eleição é cirúrgico, sendo que o acesso aos craniofaringiomas intraventriculares
apresenta maior dificuldade técnica em relação aos suprasselares, pois é necessário
atravessar estruturas sadias para acessar o ventrículo. A dificuldade cirúrgica é
elevada pelas complexas relações topográficas com estruturas neurovasculares vitais.
A exposição adequada do tumor em visão direta durante todo o ato cirúrgico é importante
para evitar lesões hipotalâmicas traumáticas e isquêmicas.[1] As principais técnicas descritas são a transcalosa, fronto-transcortical e pela
lâmina terminal. Esta última tem baixa morbidade, porém está relacionada a menores
taxas de sucesso na ressecção total da massa.[2] A invasão das paredes do terceiro ventrículo e a proximidade do hipotálamo aumentam
o risco de sequelas, sendo fundamental a manutenção da integridade anatômica das paredes
ventriculares e do infundíbulo durante a ressecção tumoral.[1] Em casos de adesão extensa e firme ao terceiro ventrículo, e com características
dos tumores não puramente intraventriculares, Pascual et al[2] desaconselham a excisão radical do tumor a fim de evitar lesão hipotalâmica. Há
relatos na literatura do uso bem-sucedido da radioterapia após a cirurgia com ressecção
parcial do craniofaringioma. Behari et al[5] descreveram dois casos em que a tomografia no seguimento mostrou a resolução total
das lesões após radioterapia. A radiocirurgia estereotáxica está associada ao encolhimento
progressivo da massa tumoral com normalização do formato do ventrículo.[1] Se possível, deve ser realizada RM de encéfalo nas primeiras 72h do pós-operatório
para verificar presença de tumor residual e complicações como lesões hipotalâmicas
e vasculares.[9]