Palavras-chave
doenças da medula espinal - síndrome de Brown-Séquard - mielografia - ressonância magnética - hérnia - cirurgia
Introdução
A herniação medular idiopática é uma causa rara de mielopatia progressiva, principalmente na ausência de trauma raquimedular ou após procedimento cirúrgico.[1] A avaliação clínica do paciente demonstra, na maioria das vezes, sinais e sintomas de mielopatia compatíveis com a síndrome de Brown-Séquard. A medula torácica é a mais acometida sobretudo entre os níveis de T4 e T7.[2]
O diagnóstico radiológico é feito por meio da ressonância magnética (RM), o que favoreceu ao aumento do diagnóstico da doença nos últimos anos. A mielotomografia também pode ser utilizada para a realização do diagnóstico diferencial. No entanto, pode haver dificuldade em sua interpretação, pois os achados radiológicos podem mimetizar um cisto de aracnoide.[3]
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A fisiopatogenia da herniação medular se deve a uma falha dural anterior, de natureza idiopática, por onde a medula espinal é empurrada, tamponando o defeito dural e levando à mielopatia progressiva como resultado da adesão, distorção e lesão vascular secundária. Entretanto, a causa exata do defeito dural ainda permanece desconhecida.[5] Não há consenso na literatura sobre um algoritmo de diagnóstico e tratamento cirúrgico, e tampouco existem dados de evolução clínica.
O presente estudo descreve o caso de um paciente do sexo masculino, acompanhado pela Rede SARAH desde 2008, com diagnóstico de herniação medular idiopática no segmento torácico da medula espinal. Os autores relatam os achados clínicos, radiológicos e intraoperatórios, bem como a evolução pós-operatória a longo prazo.
Relato de Caso
Paciente masculino, de 36 anos, apresentava quadro clínico progressivo de fraqueza muscular em membro inferior direito associada a choques bilaterais e alteração de sensibilidade no membro inferior esquerdo de caráter progressivo. Não relatava história de trauma prévio ou de cirurgia.
A avaliação física mostrava piora na força muscular ao nível dos músculos iliopsoas, glúteo médio, tríceps sural, e tibial anterior à direita. O exame clínico demonstrava também hiperreflexia nos membros inferiores e sinal de Babinski. Além disso, a avaliação, realizada no Laboratório de Movimento, evidenciou piora no padrão e no desempenho de marcha, com diminuição da velocidade e maior dificuldade para passagem do membro inferior direito, associadas à redução de força muscular e aumento da espasticidade. Esses resultados concordaram com os dados do exame físico do paciente.
A RM pré-operatória ([Fig. 1]) evidenciava uma herniação medular torácica no plano de T6, confirmada por mielotomografia ([Fig. 2]). Os dois exames demonstravam a saída da medula pela falha dural. Outro dado radiológico importante no diagnóstico diferencial foi a ausência de fluxo de líquor anteriormente à medula ([Figs. 1 e 2]).
Fig. 1 Exame de RM em visão sagital, coronal e axial da herniação ventral da medula torácica através da falha dural. Nesse nível, a medula aparece estreitada e deformada, havendo acúmulo de líquido cefalorraquiano no espaço subaracnoide.
Fig. 2 Exame de mielotomografia demonstrando a herniação medular anterior e com desvio para o lado direito. O exame auxilia no diagnóstico diferencial de cisto de aracnoide hipertensivo.
Devido à progressão clínica da mielopatia, foi indicada a cirurgia. Foi realizada uma laminectomia torácica de T5 a T7 para exposição completa da lesão. Após a durotomia, foram observados a herniação medular e o orifício da dura-máter. A medula espinal entrava pela falha ([Fig. 3]). Em seguida, sob visão do microscópio cirúrgico, a medula espinal foi reduzida, tracionando-se delicadamente o ligamento denteado, e deslocada com dissectores de microcirurgia de Rhoton, para assumir o posicionamento anatômico. A falha dural foi reparada com substituto dural que se integra à dura-máter sem a necessidade de pontos cirúrgicos. A laminectomia foi recolocada, sendo fixada com miniplacas e parafusos de titânio em cada nível, bilateralmente. O procedimento cirúrgico foi realizado sob monitoração neurofisiológica, tendo sido utilizados potenciais evocados somatossensitivo e motor, bem como o eletrodo de onda D. Os potenciais evocados se mantiveram inalterados durante o procedimento. A cirurgia transcorreu sem intercorrências, e o paciente teve boa recuperação pós-operatória, recebendo alta hospitalar no 8
o
dia.
Fig. 3 Achado intraoperatório da herniação medular (seta branca) pela falha dural (seta preta), visão posterior da medula (seta azul).
Resultados
No pós-operatório tardio, o paciente relatou melhora da dormência e desaparecimento dos choques nos membros inferiores, associados a uma melhora significativa da sensibilidade tátil e dolorosa no membro inferior esquerdo e da motricidade no membro inferior direito. A RM pós-operatória confirmou a redução cirúrgica da herniação e o restabelecimento de coluna liquórica anterior à medula espinal ([Fig. 4]). O exame de imagem também demonstrou hipersinal medular sugestivo de gliose por isquemia prolongada.
Fig. 4 Exame de RM de controle em visão sagital, coronal e axial. Observa-se a volta da medula espinal à sua posição após a cirurgia.
A avaliação de marcha, realizada no Laboratório de Movimento após 2 meses do procedimento cirúrgico, evidenciou melhora do desempenho e do padrão de marcha associada a melhora da força no membro inferior direito. Atualmente apresenta maior facilidade para a passagem do membro inferior direito pelo balanço, com redução dos tropeços e eliminação das quedas. Além disso, houve melhora da sustentação do peso sobre esse membro, com eliminação da dor no joelho esquerdo.
Discussão
A herniação medular idiopática é uma rara condição clínica, cada vez mais reconhecida como causa de mielopatia progressiva. Apesar disto a história natural desta doença é de evolução lenta, e por este motivo o diagnóstico geralmente é tardio.[6] Provavelmente, a herniação medular é uma causa de mielopatia mais frequente do que o atualmente diagnosticado.[5]
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Devido a raridade e apresentação atípica, o diagnóstico e o tratamento podem ser realizados tardiamente.[7]
[8] A presença de um defeito dural é o fator fisiopatológico primário no desenvolvimento dessa condição, mas sua etiologia permanece ainda desconhecida.[5] Essa falha na dura-máter pode ocorrer em mais de um ponto e ocasionar herniação de dois locais.[5] Acredita-se que o trauma possa estar relacionado com a formação herniária, fato este não demonstrado no presente caso.[8]
O diagnóstico definitivo é obtido pelos exames de imagem.[2]
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[4] A mielografia por tomografia computadorizada frequentemente auxilia no diagnóstico, o que foi observado no presente caso. A RM é o exame de escolha para definir a herniação, sendo que pode ser observada a saída da medula pelo orifício da dura-máter e a falta de líquor anteriormente.[1]
[2] Dentre os diagnósticos diferenciais, destaca-se como principal o cisto de aracnoide, sobretudo, pela semelhança radiológica entre os dois.[1]
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Em sua maioria, as publicações referentes a herniação medular são descrições isoladas ou séries constituídas por poucos casos.[4]
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[6] Atualmente, cerca de duzentos casos são encontrados na literatura.[9] O tratamento cirúrgico é descrito por vários autores como forma de reverter a mielopatia resultante desta condição clínica. Mesmo nos pacientes com déficit neurológico de longo tempo, a intervenção neurocirúrgica proporciona ganhos funcionais significativos, como foi observado no presente caso.[10] A sutura direta da dura-máter, quando possível, ou a interposição de um análogo de dura-máter são técnicas utilizadas para ocluir o orifício da dura-máter e impedir nova herniação. Apesar destas descrições, Samuel et al. relataram um caso de resolução espontânea, sem a necessidade de cirurgia.[11]
O objetivo da cirurgia é restaurar a anatomia desfazendo a herniação medular. Porém, a manipulação da medula na falha dural pode agravar o quadro de mielopatia por diferentes mecanismos, como tração do tecido medular em sofrimento ou coagulação inadvertida de vasos medulares. Por esses motivos, se possível, essa tração pode ser feita pelo ligamento denteado, minimizando a manipulação direta sobre a medula. A monitoração da onda D, mais sensível que os potenciais somatossensitivo e motor, aumenta a segurança cirúrgica, pois ao mínimo sinal de comprometimento adicional provocado durante o procedimento, a etapa em questão é interrompida para não haver agravamento.
A piora na mielopatia é a complicação mais temida, contudo existem outras complicações associadas, como piora na cifose decorrente da laminectomia – a recolocação desta diminui este risco. Se houver a necessidade de reoperação, os planos anatômicos serão mais identificáveis, minimizando o risco de lesão dural. Infecção é outro problema em comum aos procedimentos espinhais, levando a uma discussão à luz desse tema. Evidentemente, além das preocupações relacionadas à assepsia e antissepsia, muitas vezes a duração total da cirurgia é extensa, assim como a do uso dos afastadores. Seria conveniente, de tempos em tempos, levar a um afrouxamento dos afastadores, contribuindo para a melhora da circulação tecidual.
Conclusão
Na investigação de pacientes com déficit neurológico progressivo, deve-se considerar como um dos diagnósticos diferenciais a herniação medular idiopática. O reconhecimento precoce e o tratamento cirúrgico adequado podem reverter a evolução clínica. Esta descrição de caso tem como objetivo salientar este diagnóstico como uma das causas de mielopatia reversível e, com isso, destacar a importância do reconhecimento precoce desta condição.