Palavras-Chave
cisto epidermoide - quarto ventrículo - hidrocefalia
Introdução
Os cistos epidermoides (CEs) intracranianos consistem de lesões congênitas de crescimento lento. Inicialmente descritos pelo patologista francês Cruveilhier como os “mais belos de todos os tumores”, com base em sua natureza perolada,[1] os CEs são originados a partir de malformações associadas a elementos de superfície da ectoderma do sistema nervoso durante o fechamento do sulco neural, ou a partir da formação de vesículas cerebrais secundárias.[2]
Por terem crescimento lento, normalmente não se tornam sintomáticos até que o paciente tenha atingido a faixa entre a terceira e quinta décadas de vida. Desenvolvem-se mediante o acúmulo progressivo de queratina e colesterol, produzidos pela própria descamação do epitélio que circunda o cisto.[3]
Os CEs são de ocorrência rara, perfazendo cerca de 0,2 a 1,8% dos tumores do sistema nervoso central (SNC).[1] Classicamente, estão localizados mais frequentemente nos seguintes sítios: ângulo pontocerebelar (correspondendo à metade dos casos), fossa temporal, e regiões suprasselar e quadrigeminal. A implantação na região da cisterna magna e do quarto ventrículo é mais rara.[4] Aproximadamente 5% dos CEs afetam esta localização.[5] De acordo com Sengupta e Singh, em 2015, somente cerca de 100 casos de CEs no quarto ventrículo foram relatados.[6]
Estruturalmente, o CE é formado por um tecido branco, perolado, revestido por uma cápsula aderida às estruturas adjacentes. O conteúdo cístico é avascular, e apresenta um material que se assemelha a cera de vela disposta em lamelas concêntricas.[7] A lesão cresce lentamente, e tem aspecto flexível e deformável, adaptando-se ao espaço em que se desenvolve.[8]
O aspecto tomográfico desta lesão é típico de uma massa extra-axial hipodensa, que não se impregna pelo contraste venoso. Na ressonância magnética, podem apresentar sinal semelhante ou com discreto aumento em relação ao líquor nas ponderações T1 e T2. O principal diagnóstico diferencial é feito em relação ao cisto aracnoide, e a distinção é geralmente feita com sequências de fluid-attenuated inversion recovery (FLAIR) e difusão. O cisto aracnoide segue a intensidade de sinal do líquor em todas as sequências, enquanto os tumores epidermoides não são hipointensos no FLAIR, mostrando áreas de hipersinal em relação ao líquor. Nas sequências de difusão, os tumores epidermoides tipicamente têm restrição à difusão, ao contrário do cisto aracnoide.[9]
O tratamento ideal é a remoção do componente cístico com ressecção completa da cápsula, cuidando para não comprometer a condição neurológica do paciente.[4] Embora o conteúdo do cisto possa ser facilmente aspirável, a remoção total do tumor não é sempre possível em decorrência do fato de que a cápsula geralmente encontra-se aderida a estruturas neurovasculares vizinhas.[10]
A meningite asséptica, complicação que pode ocorrer no pós-operatório, pode ser evitada impedindo o extravasamento do conteúdo cístico para o espaço subaracnoide circundante.[10] A irrigação do leito cirúrgico com corticoide tem sido relatada como forma de prevenção da meningite asséptica.[11]
A taxa de recorrência está entre 1% e 54%, e pode ser evitada desvitalizando os fragmentos remanescentes da cápsula durante a cirurgia.[11] A reabordagem cirúrgica é geralmente realizada para descompressão. Degeneração maligna foi relatada em casos de tumores epidermoides recorrentes.[4]
O objetivo deste artigo é justamente relatar um caso de CE da fossa posterior acometendo o interior do quarto ventrículo com extensão para a cisterna magna. Serão descritos sua apresentação, imagem radiológica e manejo cirúrgico.
Relato de Caso
Paciente do sexo feminino, de 31 anos de idade, que iniciou quadro de dismetria, distúrbio de marcha, diplopia e tonturas havia cerca de 1 ano. Evoluiu com cefaleia progressiva nos últimos 3 meses, associada a vômitos e perda de acuidade visual. A tomografia computadorizada de crânio constatou a imagem de uma lesão hipodensa localizada no interior do quarto ventrículo causando hidrocefalia obstrutiva. Inicialmente, a paciente foi submetida a derivação ventrículo-peritoneal, cursando com melhora sintomática após o procedimento, sobretudo no que diz respeito à cefaleia e perda visual. Após a estabilização do quadro neurológico com o tratamento da hipertensão intracraniana em serviço de emergência, a paciente foi encaminhada ao nosso serviço para um estudo radiológico complementar, visando viabilizar a abordagem cirúrgica da lesão.
No exame neurológico de admissão, constatou-se a presença de ataxia da marcha, sinal de Romberg positivo, dismetria mais pronunciada à esquerda, disdiadococinesia, nistagmo e paralisia do sexto par craniano à esquerda.
Verificou-se na ressonância magnética uma formação expansiva extra-axial com epicentro na cisterna cerebelobulbar medindo 4,1 cm × 4,9 cm × 4,2 cm, isointensa ao líquor em T1 e T2 ([Figs. 1] e [2]). A referida lesão não apresentava realce pós-contraste ([Fig. 1B]). A lesão comprimia a ponte, o bulbo, IV ventrículo, e os hemisférios cerebelares, e era mais pronunciada à esquerda. Havia insinuação inferior da lesão ao longo do forame magno por cerca de 9 mm. O sinal heterogêneo no FLAIR e, principalmente, a restrição à difusão tornaram possível a indicação de CE como a principal hipótese diagnóstica ([Fig. 3]).
Fig. 1 Ressonância magnética em corte axial evidenciando lesão cística no interior do IV ventrículo, medindo 4,1 cm x 4,9 cm x 4,2 cm. (A) Sequência T1 sem contraste evidenciando lesão hipointensa, levemente heterogênea, e com sinal discretamente maior do que o líquor. (B) Ausência de realce após administração de contraste.
Fig. 2 Ressonância magnética na ponderação T2. A lesão mostra-se hiperintensa, semelhante ao líquor. (A) corte sagital e (B) corte axial.
Fig. 3 Ressonância magnética em corte axial. (A) Sinal heterogêneo no FLAIR. (B) Sinal hiperintenso na restrição, tornando o cisto epidermoide a principal hipótese diagnóstica.
A paciente foi submetida a craniectomia suboccipital para acesso à fossa posterior. Após a abertura da dura-máter, foi constatada lesão de aspecto esbranquiçado e perolado emergindo pela fissura cerebelobulbar ([Fig. 4]). Foi então realizado o esvaziamento da lesão que ocupava o interior do IV ventrículo ([Fig. 5]). O procedimento cirúrgico transcorreu sem intercorrências.
Fig. 4 Achado intraoperatório. Lesão de aspecto esbranquiçado e perolado emergindo pela fissura cerebelobulbar.
Fig. 5 Achados intraoperatórios. Esvaziamento do cisto, avistando o assoalho do IV ventrículo (ponte e bulbo) na margem profunda da lesão.
O pós-operatório evoluiu de forma satisfatória, com melhora da sintomatologia prévia. O resultado do exame anatomopatológico foi consistente com CE. A paciente recebeu alta hospitalar no 11° dia pós-cirúrgico. Em consulta de retorno realizada aproximadamente 3 meses após a cirurgia, a mesma já deambulava sem auxílio, mantendo melhora progressiva. O exame de ressonância magnética nesta ocasião revelava esvaziamento completo de lesão localizada no IV ventrículo ([Fig. 6]).
Fig. 6 Ressonância magnética na ponderação da difusão, evidenciando esvaziamento de cavidade cística com restabelecimento anatômico do IV ventrículo.
Discussão
Os CEs constituem lesões congênitas, benignas e raras. Correspondem a cerca de 0,2% a 1,8% de todos os tumores intracranianos.[12] Há preponderância no sexo feminino. As localizações mais frequentes desses processos são: ângulo pontocerebelar e região parasselar; outras localizações mais raras incluem o tronco cerebral e o quarto ventrículo.[13] Em apenas 5% dos casos, localizam-se no quarto ventrículo, denotando topografia incomum. Há apenas cerca de 100 casos descritos na literatura nesta localização.[5]
[6]
Os CEs são tumores de crescimento muito lento, com um padrão de crescimento semelhante ao das células epidérmicas da pele. Se desenvolvem a partir de elementos remanescentes da epiderme durante o fechamento do sulco neural e a disjunção do ectoderma de superfície com o ectoderma neural, entre a terceira e quinta semanas de vida embrionária.[11] Apesar de sua gênese na vida intrauterina, o momento do diagnóstico é estabelecido geralmente entre a terceira e quinta décadas de vida, faixa etária da paciente relatada.
Clinicamente, a síndrome cerebelar é a principal responsável pela sintomatologia inicial, enquanto a síndrome de hipertensão intracraniana é menos comum, uma vez que a hidrocefalia é de início tardio, e é vista em menos de 50% dos casos,[14] manifestação presente no caso apresentado. Embora o extravasamento do conteúdo cístico para o espaço subaracnoide tenha se mostrado capaz de provocar meningite asséptica, nenhum sinal de irritação meníngea foi constatado.
A ressonância magnética pré-operatória foi fundamental para a formulação da hipótese diagnóstica de CE. A lesão não apresentava realce pelo contraste, e demonstrava sinal similar ao líquor nas ponderações T1 e T2; porém, tinha restrição à difusão, diferenciando-se de outras possibilidades diagnósticas, como cistos aracnoides e tumorais.
Duas complicações podem alterar o curso da doença: meningite asséptica e transformação maligna. Para ocorrer meningite asséptica: um simples contato do conteúdo cístico com o líquor pode ser suficiente. O tratamento desta condição inclui punções lombares repetidas e corticoides.[15] Essa situação não foi constatada no caso da paciente em questão.
Por outro lado, a transformação maligna é uma complicação extremamente rara, e, quando presente, está associada com o desenvolvimento de carcinoma de células escamosas. No caso de remoção incompleta da lesão, o crescimento do remanescente tumoral é tão lento quanto o do tumor primitivo, requerendo acompanhamento anual por meio de imagens de ressonância magnética para avaliar o seu potencial de desenvolvimento.[15] Alguns estudos têm apontado a radioterapia como alternativa para o fracasso no tratamento cirúrgico ou a recorrência, podendo ser alcançado por este método o controle tumoral.[16]
Conclusão
Os CEs constituem lesões congênitas, benignas e raras, correspondendo a cerca de 0,2% a 1,8% de todos os tumores intracranianos, sendo que em apenas 5% dos casos localizam-se no quarto ventrículo. Apesar de sua gênese na vida intrauterina, são geralmente diagnosticados entre a terceira e quinta década de vida em decorrência de seu padrão de crescimento muito lento. Desenvolvem-se a partir de malformações do ectoderma durante o fechamento do sulco neural, entre a terceira e quinta semanas de vida embrionária. A imagem ponderada pela difusão da ressonância magnética foi fundamental para a formulação do diagnóstico. O tratamento ideal de consiste no esvaziamento do conteúdo cístico com ressecção completa da cápsula, embora não seja sempre possível quando a cápsula estiver firmemente aderida a estruturas importantes. Faz-se necessário acompanhamento radiológico no pós-operatório para avaliar a recorrência, muito embora a transformação maligna seja rara, e a reoperação tenha, sobretudo, caráter descompressivo, para alívio de sintomas.