Palavras-chave artroscopia - lesões do quadril - condrócitos/classificação - resultado do tratamento
Introdução
O impacto femoroacetabular (IFA) é causa bem conhecida de lesões da cartilagem articular no quadril.[1 ] Estas lesões ocorrem principalmente na zona ântero-superior do acetábulo.[2 ]
[3 ] Diversos sistemas de classificação têm sido usados para descrever o dano condral acetabular no início do procedimento cirúrgico, cada um com suas vantagens e desvantagens.[4 ]
[5 ]
[6 ]
Alguns estudos usaram essas classificações para correlacionar os danos condrais acetabulares com os resultados cirúrgicos.[7 ]
[8 ]
[9 ]
[10 ]
[11 ] Essas classificações intra-operatórias, avaliam o aspecto da cartilagem antes do tratamento e não refletem a realidade pós-tratamento, uma vez que o procedimento cirúrgico pode alterar o aspecto e, portanto, a classificação da lesão condral. Por este motivo, é importante classificar o aspecto da cartilagem também após o tratamento.
Dentre os objetivos da artroscopia de quadril está a abordagem e melhoria das lesões da cartilagem e do lábio. Nesse sentido, a qualidade da cartilagem após a intervenção pode ser avaliada e classificada imediatamente após a correção cirúrgica.
O objetivo do presente estudo é descrever um sistema de classificação para o dano condral acetabular no quadril após tratamento artroscópico e relatar as concordâncias intra- e interobservador desse sistema. Formulamos a hipótese de que esse sistema pode ter boa confiabilidade intra- e interobservador.
Materiais e Métodos
Neste estudo retrospectivo de 99 casos, 2 independentes (MCQ, RVG) analisaram gravações de vídeo digital feitas durante os procedimentos artroscópicos do quadril. A revisão centrou-se no aspecto da cartilagem acetabular do quadril após correção cirúrgica e antes da remoção da tração.
Foram incluídos no estudo pacientes que foram submetidos a tratamento artroscópico para IFA e foram avaliados no ambulatório de artroscopia do quadril entre março de 2015 e março de 2016. Com o objetivo de homogeneizar a amostra, os critérios de exclusão foram: pacientes com história de cirurgia anterior do quadril, evidência radiográfica de artrose (Tönnis > 2), aqueles submetidos à ressecção labral ou cujas gravações digitais estavam incompletas ou de qualidade insuficiente para avaliação adequada ([Fig. 1 ]). A ressecção labral pode modificar a morfologia da junção condrolabral, o que causaria viés na classificação do aspecto final da cartilagem. Assim sendo, optou-se por excluir os poucos casos de ressecção labral da casuística deste estudo.
Fig. 1 Fluxograma dos pacientes incluídos no estudo (OA: osteoartrose).
Todos os procedimentos cirúrgicos foram realizados por um único ortopedista, experiente em artroscopia do quadril (GCP). O ato cirúrgico foi realizado em posição supina padrão.[12 ] A deformidade do tipo pincer foi corrigida, e os defeitos da cartilagem acetabular foram regularizados até que a borda ficasse estável. A microfratura foi realizada nas lesões condrais Outerbridge grau IV, bem delimitadas com bordos saudáveis circundantes da cartilagem articular, além de osso subcondral íntegro e capacidade do paciente de participar do processo de reabilitação pós-operatório.[13 ] As lesões labrais foram reparadas com âncoras.
Desenvolvimento da classificação pós-tratamento
A classificação pós-tratamento foi desenvolvida considerando aspectos da cartilagem acetabular remanescente após ressecção artroscópica das lesões de impacto, reparo do labrum acetabular e manejo de distúrbios condrais. A classificação pós-tratamento compreende 4 tipos ([Tabela 1 ]).
Tabela 1
Tipo
Descrição da cartilagem acetabular remanescente
1
Lesão condral completamente removida, a cartilagem restante tem aspecto normal
2
Aspecto anormal da cartilagem remanescente (rugosidade superficial, malácia, fibrilação, qualquer alteração sem exposição óssea subcondral)
3
Área restante do osso exposto < 2 cm2
[* ]
4
Área restante do osso exposto > 2 cm2
O tipo é atribuído imediatamente após a conclusão do procedimento, com base na aparência e qualidade da cartilagem acetabular remanescente. No tipo 1, a cartilagem restante é de aspecto normal e saudável. No tipo 2, a cartilagem restante é anormal com malácia, fibrilações, rugosidade superficial ou qualquer alteração sem exposição óssea subcondral. Quando há exposição óssea subcondral, a classificação dependerá do tamanho dessa exposição, sendo do tipo 3 se a área medir menos de 2 cm2 , e tipo 4 se a área for maior que 2 cm2 ([Figs. 2 ]
[3 ]
[4 ]
[5 ]).
Fig. 2 Imagens artroscópicas do quadril esquerdo mostrando a borda acetabular. Observa-se (A) delaminação da cartilagem articular empurrada com um probe no início da cirurgia artroscópica. Uma osteoplastia acetabular (B, C) foi realizada com burr . A cartilagem acetabular remanescente após ressecção do impacto femoroacetabular (D) tem aparência normal no final, sendo classificada como tipo 1. Observe que o aspecto da cartilagem acetabular mudou. (CF, cabeça femoral, CA, cartilagem acetabular, L, lábio, * lesão, OA, osso acetabular).
Fig. 3 Imagens artroscópicas do quadril direito mostrando a borda acetabular. É observada (A) delaminação (*) da cartilagem articular empurrada com um probe e também uma lesão da junção condrolabral (#) no início da cirurgia artroscópica. Uma osteoplastia acetabular (B) foi realizada com um burr . A cartilagem acetabular remanescente após ressecção do impacto femoroacetabular (C, D) tem aparência anormal após, com rugosidade superficial e perda de espessura da cartilagem, mas nenhuma evidência de exposição óssea subcondral, sendo classificada como pós-tratamento tipo 2. Observe que o aspecto da cartilagem acetabular mudou. (CF, cabeça femoral, CA, cartilagem acetabular, L, lábio, *, lesão condral, #, lesão condrolabral, OA, osso acetabular).
Fig. 4 Imagens artroscópicas do quadril esquerdo mostrando a borda acetabular. Observa-se (A, B) delaminação da cartilagem articular empurrada com probe no início da cirurgia artroscópica. Foi realizado desbridamento da cartilagem (C) com shaver e foram feitas microfraturas na área restante da exposição óssea subcondral. A medida desta área foi inferior a 2 cm2 (D), sendo classificada como tipo 3. Observe que, no final do procedimento, a alteração consiste na área remanescente do osso exposto, que foi estimada usando a ponta da lâmina de shaver de 4,5 mm como guia. (CF, cabeça femoral, CA, cartilagem acetabular, L, lábio, *, lesão condral, OA, osso acetabular).
Fig. 5 Imagens artroscópicas do quadril direito mostrando a borda acetabular. Observa-se (A) lesão de exposição do osso subcondral no início da cirurgia artroscópica. Foi realizado desbridamento de cartilagem (B) com shaver e foram feitas microfraturas (C) na área restante de exposição óssea subcondral. A medida final dessa área exposta foi superior a 2 cm2 (D), sendo classificada como pós-tratamento tipo 4. Observe que, ao final do procedimento, a alteração consiste em uma maior área de osso exposto, a qual foi estimada usando a ponta da lâmina de shaver 4,5 mm como guia. (Ca, cartilagem acetabular; L, lábio; *, lesão condral).
Análise visual dos vídeos
Noventa e nove casos foram selecionados para revisão independente por dois ortopedistas (MCQ, RVG). O observador 1 era ortopedista em aprendizado de artroscopia do quadril e o observador 2 era um ortopedista experiente em artroscopia do quadril. Nenhum dos observadores participou dos procedimentos cirúrgicos dos casos analisados. O cirurgião principal não participou da análise de vídeo para classificação.
O sistema de classificação pós-tratamento foi explicado, e os observadores foram instruídos a concentrar a atenção na cartilagem acetabular após conclusão de todo o procedimento artroscópico. Também foram instruídos a estimar a área superficial do osso subcondral exposto usando a ponta da lâmina do shaver como parâmetro. Quando identificadas características de vários tipos, os observadores foram instruídos a considerar o pior aspecto ósteo-condral remanescente. Quatro semanas após a revisão inicial, o observador 1 analisou cada caso novamente para determinar a confiabilidade intraobservador.
Análise estatística
A análise interobservadores incluiu comparação entre valores do observador 1 e observador 2. A análise intraobservador comparou valores entre a primeira e a segunda revisão do observador 1.
O coeficiente de correlação intraclasse (CCI) foi utilizado para avaliar a concordância intra e interobservador do sistema de classificação pós tratamento. O software estatístico SPSS versão 22 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA) foi utilizado para análise de dados. O significado estatístico foi considerado como p < 0,05. Os valores CCI foram classificados como descrito por Cicchetti,[14 ] com valores de 0,00 a 0,39 indicando concordância muito fraca, 0,40 a 0,59 indicando concordância fraca, 0,600 a 0,750 indicando boa concordância e 0,75 a 0,99 indicando excelente concordância.
Resultados
A amostra foi composta por 50 pacientes do sexo masculino (50,5%) e 49 do sexo feminino. A média de idade dos pacientes no momento da cirurgia foi de 36,9 anos (mínimo de 18, máximo 50 anos). A [Tabela 2 ] mostra a distribuição (por observador) dos achados da cartilagem acetabular de acordo com o novo sistema de classificação pós-tratamento. A classificação condral acetabular mais comumente observada foi do tipo 2, enquanto que a menos comum foi do tipo 4.
Tabela 2
Observador 1[* ]
Observador 2[* ]
1ª avaliação
2ª avaliação
Tipo 1
17
20
17
Tipo 2
48
47
51
Tipo 3
22
26
23
Tipo 4
12
6
8
Foi encontrada excelente confiabilidade intraobservador para a classificação pós-tratamento (CCI = 0,790; p < 0,001) e excelente confiabilidade interobservadores (CCI = 0,882; p < 0,001). Ambos os valores de CCI foram estatisticamente significativos.
Discussão
O sistema de classificação pós-tratamento para dano condral acetabular causado pelo IFA apresentou excelentes relações intra- e interobservadores, com um coeficiente de correlação intraclasses de 0,790 para intraavaliador e 0,882 para análise interavaliadores, ambos com significância estatística (p < 0,001).
A classificação de Outerbridge é freqüentemente usada para documentar lesões de cartilagem identificadas antes do tratamento artroscópico.[6 ]
[7 ]
[8 ] Esta demonstrou ser um sistema de classificação moderadamente confiável para lesões condrais do joelho e quadril, com forte confiabilidade inter- e intraobservadores.[2 ]
[9 ]
[10 ]
[15 ] No entanto, como este sistema de classificação foi originalmente descrito para o joelho e não para o quadril, não considera perda de fixação ou desprendimento da cartilagem do osso subcondral ou presença de clivagem na junção condrolabral, comuns no quadril. Além disso, o grau 4 de Outerbridge não considera o tamanho da área do osso subcondral exposto.[2 ]
O sistema de classificação de Beck tem sido usado para descrever anormalidades do labrum acetabular e da cartilagem articular do quadril.[4 ]
[16 ] Embora inicialmente descrito para uso em luxações cirúrgicas de quadril para o tratamento de IFA, também foi aplicado a intervenções artroscópicas.[2 ]
[3 ] Confiabilidade considerável foi relatada usando este sistema.[3 ]
Konan et al.[5 ] desenvolveram classificação para lesões condrais encontradas durante artroscopia do quadril considerando grau de lesão, zona e região, mas seu uso não foi generalizado. O artigo original relatou alta confiabilidade intra- e interobservador, enquanto outro estudo relatou confiabilidade moderada.[2 ]
[5 ]
Todas essas classificações foram usadas ou propostas para avaliar lesão condral acetabular identificada no início da cirurgia. No que tange o nosso conhecimento, este é o primeiro estudo que considera os aspectos pós-tratamento da cartilagem acetabular. As classificações existentes antes do tratamento são importantes para descrever lesões e ajudar a orientar o tratamento. Por outro lado, a classificação pós-tratamento pode ser importante para correlacionar a qualidade final da cartilagem com os resultados, mas isso só pode ser comprovado ao longo do tempo com trabalhos longitudinais.
Essas variáveis nos levaram a formular o valor da classificação pós-tratamento. Desenvolvemos um sistema simples e reprodutível que oferece perspectiva diferente para avaliar o aspecto da cartilagem acetabular e pode ser usado para correlacionar características das superfícies condrais pós tratamento com o prognóstico a longo prazo.
Durante o desenvolvimento da classificação pós-tratamento, foram consideradas duas categorias para diferenciar o tamanho da área do osso exposto remanescente. Consideramos o tipo 3 como área estimada de menos de 2 cm2 e se fosse maior que 2 cm2 , o tipo 4 seria atribuído. O tamanho de 2 cm2 foi escolhido uma vez que lesões abaixo deste valor são recomendadas para microfratura.[17 ]
[18 ]
[19 ]
[20 ] Embora não haja consenso na literatura sobre qual tipo de procedimento artroscópico é adequado para vários níveis de exposição óssea subcondral, neste estudo, os tipos 3 ou 4 foram tratados com microfratura.[21 ]
Existem algumas limitações no presente estudo. Os observadores se concentraram nos achados pós tratamento da cartilagem das regiões anterior e lateral, enquanto que as zonas acetabulares posteriores e inferiores não foram consideradas para classificação. A distribuição do número de casos em cada categoria da classificação não foi homogênea. Isso comprometeu o uso do coeficiente kappa para avaliar a confiabilidade inter- e intraobservador; assim sendo, a análise de CCI foi escolhida. Os autores sugerem mais estudos usando um maior número de casos em distribuição homogênea para cada tipo de classificação. A correlação desta classificação com os resultados clinico-funcionais não foi analisada e será estudada futuramente.
Conclusão
Este estudo demonstra que é possível descrever um sistema de classificação pós-tratamento para lesões condrais acetabulares com excelente confiabilidade intra- e interobservador.
Erratum: The name of Maria-Roxana Viamont-Guerra has been corrected as per Erratum published on October 22, 2019. DOI of the Erratum is 10.1055/s-0039-1698811.