Palavras-chave luxação do ombro - articulação do ombro/lesões - instabilidade articular - cavidade
glenoide - transplante ósseo
Introdução
A cirurgia de Latarjet é a técnica de escolha de vários cirurgiões para o tratamento
da instabilidade glenoumeral anterior com perda óssea.[1 ]
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[10 ] Ela foi descrita em 1954 por Latarjet,[11 ] e em 1958, por Helfet.[12 ] Patte e Debeyre[13 ] associaram a sutura do ligamento coracoacromial à cápsula, e descreveram o efeito
triplo dessa técnica: a) efeito ósseo do processo coracoide fixado à borda da glenoide;
b) efeito tirante do tendão conjunto no terço inferior do subescapular; e c) efeito
de tensionamento da cápsula pela sutura do ligamento coracoacromial à ela. As complicações
que comprometem o resultado da cirurgia mais associadas às dimensões do enxerto são
a fratura dele durante o seu preparo e o posicionamento na borda da glenoide – caso
seja superior ou inferior em excesso, compromete o efeito ósseo e tirante do tendão
conjunto, e caso esteja posicionado lateralmente em excesso, favorece o overhanging e a consequente artrose glenoumeral.
Na técnica descrita por Walch e Boileau,[14 ] são utilizados dois parafusos maleolares de 4,5 mm. Sem uma distância apropriada
entre os dois furos, e entre esses e as margens do processo coracoide, aumenta-se
o risco de fratura do enxerto durante a sua preparação, ou de mau posicionamento durante
a fixação à glenoide. Em 2013, Young et al[15 ] avaliaram as dimensões dos processos coracoides após a osteotomia e preparação,
além de verificar a reprodutibilidade da regra dos 7 milímetros, na qual o furo inferior
na glenoide é feito pelo menos a 7 mm da margem articular, a fim de manter o enxerto
em uma posição satisfatória.
O objetivo deste estudo foi comparar as dimensões do processo coracoide osteotomizado
e preparado nas cirurgias de Latarjet com os resultados obtidos por Young et al,[15 ] além de verificar a viabilidade da regra dos 7 milímetros considerando as dimensões
do enxerto do coracoide obtidas em nossa amostra. Nossa hipótese era a de que os enxertos
coletados em nossos pacientes seriam menores do que os do estudo de Young et al,[15 ] e que a regra dos 7 milímetros poderia favorecer um erro de posicionamento do enxerto
na glenoide.
Material e Métodos
No período de julho de 2015 a janeiro de 2017, foram mensuradas as dimensões de 32
processos coracoides osteotomizados durante a cirurgia de Latarjet. Um caso de fratura
intraoperatória do processo coracoide foi excluído devido à possibilidade de falha
durante a mensuração – totalizando 31 enxertos avaliados. As indicações cirúrgicas
foram pacientes com sinais e sintomas de instabilidade glenoumeral anterior, com ou
sem erosão óssea da glenoide. Todas as cirurgias foram realizadas por um dos quatro
cirurgiões de nosso serviço.
A técnica utilizada nos pacientes deste estudo foi descrita por Walch e Boileau[14 ] em 2000, com abertura do subescapular no sentido das suas fibras, e fixação do processo
coracoide à borda da glenoide com dois parafusos. A única variação da técnica cirúrgica
foi em relação ao tamanho e tipo de parafuso utilizado – parafuso esponjoso de 4,0 mm
([Figura 1 ]). Após a osteotomia do processo coracoide ([Figura 2 ]) e preparação de sua face inferior, foi feita a mensuração intraoperatória com paquímetro
analógico pelo cirurgião, que coletou dados das dimensões do enxerto: comprimento
em milímetros (ponta à base do processo coracoide junto à inserção do tendão conjunto);
largura em milímetros (distância média entre os dois furos realizados para fixação;
[Figura 3 ]); e espessura em milímetros (bordas superior a inferior do processo coracoide).
Fig. 1 Cirurgia de Latarjet.
Fig. 2 Local da mensuração do comprimento do enxerto; seta: local ideal da osteotomia do
processo coracoide.
Fig. 3 (A ) Local da mensuração da largura do enxerto; (B ) local da mensuração do comprimento do enxerto. Fonte: Imagens de nossa autoria.
A distribuição dos dados foi verificada por meio do teste de Shapiro-Wilk, e as variáveis
contínuas foram expressas em média e desvio padrão. Análise da variância (analysis of variance , ANOVA) de um fator foi realizada para a comparação da espessura, comprimento e largura
entre homens e mulheres. O teste t de Student para amostras independentes foi realizado para a comparação das maiores
e menores larguras entre as medidas obtidas pelo presente estudo e o estudo de referência.[15 ] Valores de p de 0,05 foram considerados estatisticamente significativos. A ANOVA foi realizada
por meio do pacote estatístico International Business Machines Statistical Package
for the Social Sciences (IBM SPSS, IBM Corp., Armonk, NY, EUA), versão 21.0, e o teste
t foi calculado utilizando-se o programa Microsoft Excel do pacote Office (Microsoft
Corp., Redmond, WA, EUA).
A presente investigação obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição
proponente do estudo, sob o número CAAE 65215317.2.0000.5335. Todos os pacientes avaliados
assinaram o termo de consentimento livre esclarecido para a realização do estudo.
Resultados
Foram analisadas as dimensões de 31 processos coracoides de 31 pacientes submetidos
à cirurgia de Latarjet (27 casos do sexo masculino e 4 do sexo feminino; 1 caso foi
excluído devido a fratura do enxerto durante a preparação). A idade média da amostra
foi de 30,26 anos (18-69 anos). Apesar do pequeno número de participantes do sexo
feminino, não houve diferença estatisticamente significativa entre as dimensões dos
processos coracoides de acordo com o sexo ([Tabela 1 ]).
Tabela 1
Masculino (n = 27)
Feminino (n = 4)
Valor de p
Espessura
8,0 (1,6)
7,2 (1,2)
0,39
Comprimento
22,8 (1,7)
21,7 (2,9)
0,30
Largura
14,0 (2,1)
14,5 (2,3)
0,67
O comprimento médio obtido foi de 22,6 ± 1,9 mm, 3,8 mm menor do que o obtido por
Young et al.[15 ] A espessura média também foi significativamente inferior à obtida por Young et al,[15 ] sendo de 7,9 ± 1,5 mm no presente estudo, 1,3 mm inferior ao valor encontrado no
trabalho de referência. A largura não apresentou diferença estatisticamente significativa
em relação ao trabalho de Young et al[15 ] ([Tabela 2 ]). Esses autores efetuaram duas mensurações de largura, na altura de ambos os furos.
Em nosso estudo, foi realizada apenas uma mensuração, que foi comparada com ambas
as mensurações do trabalho de Young et al,[15 ] mas sem diferença estatisticamente significativa ([Tabela 2 ]).
Tabela 2
Dimensões gerais (n = 31)
Dimensões gerais do estudo de referência (n = 76)
Valor de p
Espessura
7,9 (1,5)
9,2 (1,4)
< 0,001*
Comprimento
22,6 (1,9)
26,4 (2,9)
< 0,001*
Largura
14,0 (2,1)
14,1 (1,8) - superior
0,93
13,3 (1,8) - inferior
0,06
As dimensões do enxerto comparadas ao trabalho referência de acordo com o sexo demonstraram
que no sexo masculino o comprimento médio obtido foi de 22,8 ± 1,7 mm, 3,8 mm menor
do que o valor obtido por Young et al;[15 ] a espessura média também foi inferior à obtida por Young et al;[15 ] porém, sem diferença estatisticamente significativa em relação à largura ([Tabela 3 ]). No sexo feminino, as dimensões do enxerto foram semelhantes às encontradas no
trabalho de referência, sem diferença estatisticamente significativa ([Tabela 4 ]). Não houve complicações relacionadas à soltura ou pseudoartrose do enxerto.
Tabela 3
Masculino (n = 27)
Masculino do estudo de referência (n = 67)
Valor de p
Espessura
8,0 (1,6)
9,4 (1,4)
< 0,001*
Comprimento
22,8 (1,7)
26,6 (2,7)
< 0,001*
Largura
14,0 (2,1)
14,3 (1,7) - superior
0,47
13,4 (1,7) - inferior
0,15
Tabela 4
Feminino (n = 4)
Feminino do estudo de referência (n = 9)
Valor de p
Espessura
7,2 (1,2)
8,8 (1,6)
0,09
Comprimento
21,7 (2,9)
24,8 (4,1)
0,13
Largura
14,5 (2,3)
12,6 (1,0) - superior
0,20
12,2 (1,9) - inferior
0,14
Discussão
As dimensões médias do processo coracoide obtidas neste estudo foram 22,6 mm (18-26 mm)
de comprimento, 14,0 mm (11-20 mm) de largura, e 7,9 mm (6-11 mm) de espessura. Em
relação ao estudo de Young et al,[15 ] obteve-se valores inferiores de espessura e comprimento, conforme detalhado nos
resultados ([Tabelas 2 e ] [3 ]). Quando analisados os dados em separado de acordo com o sexo, no feminino não houve
diferença nas dimensões do enxerto ([Tabela 4 ]). Não houve diferença estatisticamente significativa em relação à largura em ambos
os sexos, o que torna a regra dos 7 milímetros válida em nossos pacientes. Por essa
regra, criada de forma subjetiva, baseada somente na experiência dos autores, o furo
inferior é feito a uma distância de 7 mm da borda da glenoide, sem necessidade de
localizá-lo mediante o pré-posicionamento do enxerto, o que não tem comprovação científica
na literatura. Nos casos aqui estudados, não foram observadas diferenças estatisticamente
significativas nas dimensões dos enxertos de acordo com o sexo, ao contrário de trabalhos
prévios.[15 ] [16 ]
Nossa hipótese, baseada na menor dimensão dos nossos enxertos, é a de que parafusos
maiores aumentariam a fragilidade do processo coracoide preparado. A taxa de fratura
do processo coracoide publicada na literatura é baixa, variando de 1,5% a 7%.[17 ] [18 ] Athwal et al[17 ] observaram que a área entre os dois furos era a região mais frágil, mas não há uma
distância definida entre esse furos. Young et al[15 ] obtiveram uma distância média de 7,8 ± 1,9 mm entre os furos. Para a cirurgia artroscópica,
Lafosse e Boyle[5 ] desenvolveram um guia com a distância de 9 mm entre os furos. No presente estudo,
essa distância não foi mensurada, mas é possível afirmar que uma vez que os enxertos
avaliados apresentavam um comprimento menor, o intervalo entre os dois furos também
tende a ser menor, aumentando o risco de fratura. Ao utilizarmos uma broca menor (de
2,5 mm), diferente da técnica descrita por Walch e Boileau,[14 ] que utiliza brocas de 3,2 mm, o risco de fratura é provavelmente reduzido. Nos pacientes
avaliados no presente estudo, não houve nenhuma complicação, tal como soltura ou pseudoartrose,
relacionada ao uso de parafusos esponjosos de 4,0 mm em vez de maleolares de 4,5 mm.
Dolan et al[19 ] avaliaram as dimensões do processo coracoide em escápulas de peças de cadáver fresco,
sem realizar a osteotomia, obtendo valores similares de largura e 5,9 mm maiores em
relação ao comprimento. Essa diferença era esperada devido às dificuldades técnicas
de realizar a osteotomia exatamente na base do processo coracoide, preservando a inserção
dos ligamentos coracoclaviculares durante o procedimento cirúrgico. Comparando os
nossos resultados com os obtidos por Young et al,[15 ] obtivemos valores semelhantes de largura, mas significativamente menores em relação
ao comprimento e à espessura. Uma provável explicação seriam as diferenças técnicas
ao realizar a osteotomia e ao preparar a face inferior do processo coracoide. As dimensões
da face inferior do enxerto coracoide podem ser mais influenciadas pela habilidade
técnica, ao contrário da largura, mas essa hipótese ainda precisa ser confirmada.
Outra hipótese, já demonstrada em outros estudos,[20 ] seria a diferença na estrutura óssea entre as populações avaliadas, muito embora
isso seja menos provável.
Um dos momentos críticos da cirurgia de Latarjet é o posicionamento do enxerto na
borda da glenoide.[21 ] Walch e Boileau[14 ] realizam primeiro o furo inferior e a uma distância aproximada de 7 mm da borda
da glenoide. De acordo com os resultados obtidos neste estudo, essa técnica pôde ser
aplicada nos nossos pacientes, uma vez que a largura dos enxertos foi similar à obtida
por Young et al.[15 ]
O presente estudo tem algumas limitações. Primeiro, as cirurgias não foram realizadas
por um mesmo cirurgião, e a habilidade técnica de cada um pode alterar o ponto da
osteotomia. Segundo, não foi possível verificar se a utilização de uma broca de 3,2 mm
tornaria o enxerto mais frágil. Terceiro, assim como a técnica cirúrgica, a mensuração
não foi feita pelo mesmo cirurgião, podendo haver diferença em relação ao ponto de
mensuração. Algumas complicações da cirurgia de Latarjet estão relacionadas a problemas
com o enxerto,[6 ]
[12 ]
[21 ]
[22 ] entre eles as fraturas, o mau posicionamento, as solturas e as pseudoartroses, que
podem levar à recidiva da instabilidade. Muitas dessas complicações podem ser evitadas
com um bom conhecimento anatômico e da técnica cirúrgica, possibilitando uma boa exposição
para a obtenção adequada do tamanho do enxerto e também uma fixação no local correto
da glenoide. Para tal, achamos fundamental a utilização de instrumental específico
para essa cirurgia.
Conclusão
Na amostra estudada, obteve-se dimensões similares de largura do enxerto do coracoide
quando comparadas às do trabalho refêrencia;[15 ] mas o mesmo não ocorreu com o comprimento e a espessura, os quais foram inferiores
em nosso estudo. Além disso, a regra dos 7 milímetros proposta por outros autores
foi viável em nossos pacientes.