Palavras-chave
doenças neuromusculares - escoliose - perda sanguínea cirúrgica
Introdução
A instrumentação e fusão vertebral posterior constituem o procedimento cirúrgico padrão para tratamento definitivo da escoliose.[1] Apesar dos avanços recentes em técnicas cirúrgicas e anestésicas, essa continua a ser uma cirurgia de grande porte associada a extensa perda de sangue, com necessidade de transfusão sanguínea alogênica.[1]
[2]
[3]
[4]
[5]
[6] Isso preocupa cirurgiões e anestesistas devido aos riscos, custos e disponibilidade de sangue.[2]
[4]
[6]
Estudos mostram que pacientes com escoliose neuromuscular têm maior predisposição a perdas sanguíneas extensas e, portanto, necessidade de transfusões.[1]
[2]
[3]
[6] Como a prevalência dessa patologia é baixa, ainda há poucos estudos sobre o assunto.[2] No entanto, a literatura relata várias razões pelas quais a perda de sangue é maior em pacientes com escoliose neuromuscular, sendo os mais óbvios os maiores ângulos de Cobb e o maior número de segmentos fundidos em comparação a pacientes com escoliose idiopática[1]
[4]
[5] Alguns estudos também relatam que o estado nutricional no período perioperatório é importante em complicações hematológicas intraoperatórias e pós-operatórias.[2]
[5]
[7]
[8] Além disso, muitos desses pacientes recebem medicação antiepiléptica, que pode afetar a coagulação.[2]
[5] Alguns estudos revelaram que a perda de sangue também depende de distúrbios neuromusculares; pacientes com paralisia cerebral apresentam maior perda do que aqueles com atrofia muscular espinhal, mielomeningocele e distrofia muscular de Duchenne.[9]
Portanto, é importante identificar os fatores que influenciam a perda de sangue e estabelecer estratégias para controlá-los. O objetivo do presente estudo é identificar a incidência, os fatores predisponentes e o impacto prognóstico da perda de sangue em pacientes com escoliose neuromuscular submetidos a cirurgia corretiva.
Material e Métodos
Um estudo de coorte retrospectiva foi realizado, com inclusão de pacientes pediátricos com diagnóstico de escoliose neuromuscular e submetidos a instrumentação e fusão vertebral posterior entre 2012 e 2016 em um hospital universitário. Todas as cirurgias foram realizadas apenas por abordagem posterior e fixação com parafusos pediculares. Pacientes submetidos a cirurgias de revisão da escoliose foram excluídos.
Informações sobre gênero, idade, altura, peso, histórico médico pré-operatório e dados laboratoriais, ângulo de Cobb pré-operatório, ângulo de Cobb pós-operatório, número de níveis instrumentados, procedimentos cirúrgicos, duração da cirurgia e estimativa da perda de sangue foram coletados por meio de consulta ao processo clínico e análise de exames diagnósticos complementares. A perda total de sangue foi calculada como a soma da perda intraoperatória, inclusive o sangue no recipiente de sucção e na esponja utilizada. A perda maciça de sangue foi definida como a perda total superior a 30% do volume estimado de sangue, calculado como 70 mL/kg.[4]
[5]
O software SPSS (IBM Corp. Released 2017, IBM SPSS Statistics for Windows, Version 25.0. Armonk, NY, IBM Corp.) foi utilizado para descrição e análise estatística dos dados, e o valor-p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo. Dados contínuos foram relatados como média e desvio-padrão. A comparação de médias com distribuição normal foi realizada com teste t entre dois grupos e análise de variância (ANOVA, na sigla em inglês) entre três ou mais grupos. A correlação entre dois dados contínuos foi estabelecida pelo método de Pearson. Por se tratar de um estudo retrospectivo, a autorização do comitê de ética foi necessária para a consulta e utilização dos dados.
Resultados
As características da população estão descritas na [Tabela 1]. No total, 39 pacientes foram incluídos no estudo, sendo 24 do sexo feminino e 15 do sexo masculino, com idade média de 13,56 ± 3,58 anos. O índice de massa corporal (IMC) foi, em média, 19,58 ± 6,25 kg/m2 e o percentil mais frequente foi < 5 (9 pacientes). A concentração pré-operatória de albumina foi 24,9 mg/dL, e de proteínas totais, 71,88 mg/dL. A patologia mais comum foi a paralisia cerebral (10), seguida pela mielomeningocele (4). Nove pacientes apresentavam patologia cardíaca, 12 tinham patologias pulmonares e 16 eram epilépticos. Apenas 16 pacientes conseguiam caminhar, e a obliquidade pélvica foi observada em 17 indivíduos. Cinco pacientes apresentavam sonda de gastrostomia endoscópica percutânea (PEG) para alimentação.[10]
Tabela 1
Variável
|
Média
|
Desvio padrão
|
Idade (anos)
|
13,56
|
3,58
|
Índice de massa corporal (kg/m2)
|
19,58
|
6,25
|
Ângulo de Cobb antes da cirurgia (°)
|
67,60
|
17,77
|
Ângulo de Cobb após a cirurgia (°)
|
24,56
|
15,43
|
Porcentagem de correção (%)
|
65,13
|
17,77
|
Níveis de fusão
|
13,36
|
2,580
|
Duração da cirurgia (horas)
|
3,26
|
0,69
|
Concentração pré-operatória de hemoglobina (g/dL)
|
13,61
|
1,08
|
Concentração pré-operatória de albumina (mg/dL)
|
24,90
|
5,83
|
Concentração pré-operatória de proteínas (mg/dL)
|
71,88
|
9,49
|
Drenagem intraoperatória (mL)
|
962,37
|
461,08
|
Porcentagem de perda sanguínea (%)
|
35,63
|
17,49
|
O ângulo Cobb pré-operatório era 67,60° ± 17,77° e o valor final era 24,56° ± 15,43°; a porcentagem de correção foi de 65%. Em média, 13 níveis foram instrumentados; a instrumentação pélvica foi realizada em 14 casos e a duração média da cirurgia foi de 3 horas e 15 minutos. As perdas sanguíneas intraoperatórias foram de 962 mL, o que representou uma perda de 35,63% do volume sanguíneo; isso implica que houve uma perda maciça de sangue em 20 casos (> 30%), e apenas 7 pacientes não necessitaram de transfusão. Em média, cada paciente recebeu 1,7 transfusões.
O grupo de pacientes com perda extensa de sangue (> 30%) apresentava idade ligeiramente maior (13,75 versus 13,53 anos) (p < 0,05) e menor percentil do IMC (25 versus 50) (p <0,05), além de ter recebido um maior número de transfusões (2,0 versus 1,2) (p < 0,05). Para cada diminuição de 0,38 no IMC, as perdas sanguíneas intraoperatórias aumentaram 1% (p < 0,05). Esse grupo recebeu, em média, um número maior de transfusões de sangue (2,0 versus 1,2) (p < 0,05). A concentração pré-operatória de albumina influenciou a porcentagem de perda de sangue e, para cada diminuição de 0,4 de albumina, as perdas aumentaram em 1% (p < 0,05).
Embora não tenha sido um resultado estatisticamente significativo, o ângulo de Cobb no período pré-operatório foi maior no grupo que sofreu perda extensa de sangue; além disso, esse grupo apresentou maior tempo operatório.
Discussão
Em comparação aos pacientes com escoliose idiopática, os pacientes com escoliose neuromuscular são mais propensos a sofrer maior perda de sangue durante a cirurgia posterior da coluna com maior necessidade de transfusão. A identificação e correção pré-operatória dos fatores de risco para a perda extensa de sangue durante esta cirurgia poderiam reduzir a demanda de transfusão de sangue alogênico e as complicações associadas.[1]
Segundo nossas análises, um fator de risco foi a maior idade. Os pacientes com perda extensa de sangue eram mais velhos, o que pode ser explicado pela menor flexibilidade da curva com o aumento da idade e pela maior dificuldade da manobra de redução.[2]
Outro fator foi o menor percentil do IMC; no grupo com perda extensa de sangue, o percentil foi de 25 e, no outro grupo, de 50. Além disso, a perda de sangue aumentou 1% para cada diminuição de 0,38 do IMC. Pacientes com doenças neuromusculares têm maior risco de baixo peso, o que pode ser devido a suas doenças e tratamentos relacionados. Os efeitos da perda de sangue são maiores em pacientes menores, como em nossa amostra, onde a maioria dos pacientes apresentava baixo peso.[2]
[3]
[4]
[6]
[8]
Crianças com menor IMC também são mais propensas à desnutrição, que pode ser marcada por hipoalbuminemia. No presente estudo, a concentração pré-operatória de albumina influenciou a porcentagem de perda de sangue, pois cada diminuição de 0,4 de albumina aumentou a perda de sangue em 1%. Isso pode ser explicado pela forte relação anteriormente encontrada entre estado nutricional e a densidade e mineralização ósseas, que aumentam o sangramento durante procedimentos cirúrgicos.[3]
[7]
[8]
Embora na literatura o ângulo de Cobb pré-operatório, a duração da cirurgia e o número de níveis de fusão sejam considerados fatores prognósticos para perda e transfusão sanguínea, mesmo que tenhamos observado uma associação, essa não foi estatisticamente significativa, o que pode estar relacionado ao pequeno tamanho da amostra.[4]
[9]
Alguns autores sugerem que o consumo de fatores de coagulação durante a cirurgia da coluna vertebral, associado à diluição desses fatores, aumenta a perda de sangue. Além disso, muitos pacientes com escoliose neuromuscular têm epilepsia e tomam medicamentos, alguns dos quais podem afetar a coagulação. Em nosso estudo, não encontramos associação entre perda de sangue e epilepsia.[2]
[4]
[5]
O uso de medicamentos antifibrinolíticos, como o ácido tranexâmico, vem aumentando neste tipo de cirurgia, com bons resultados na redução da perda de sangue; no entanto, mais estudos ainda são necessários.[11]
Este estudo possui várias limitações, como o pequeno tamanho da amostra, a variabilidade da etiologia da escoliose, o tipo de estudo (retrospectivo e em um único hospital) e a quantificação apenas da perda sanguínea intraoperatória.
Conclusões
A perda de sangue na cirurgia da escoliose é motivo de preocupação e objeto de vários estudos. No entanto, os fatores preditivos de hemorragia são de difícil identificação e, acima de tudo, controle.
No presente estudo, os fatores que mais contribuíram para as diferenças na perda de sangue foram idade, IMC e concentração pré-operatória de albumina. Não houve associação significativa entre ângulo de Cobb, o número de níveis de fusão e a duração da cirurgia. Podemos concluir que esses pacientes se beneficiariam do controle nutricional pré-operatório.