Palavras-chave
artroplastia do joelho - transfusão de sangue - osteoartrite do joelho
Introdução
A artroplastia total do joelho (ATJ) normalmente se associa à expressiva perda sanguínea
visível, podendo ultrapassar 1.500 mL.[1] Tais perdas volêmicas são, ainda, subestimadas por desconsiderar o extravasamento
de sangue para tecidos moles traumatizados, formação de hematoma na cavidade articular,
e hemólise. Cerca de 80% desse sangramento oculto ocorre nas primeiras 24 horas, podendo
corresponder até 50% da perda sanguínea total real.[1]
[2]
[3]
Perdas volêmicas desta magnitude frequentemente resultam em necessidade de transfusão
sanguínea em 7,1 a 67% dos pacientes.[4]
[5]
[6]
[7]
[8]
[9] Embora as complicações relacionadas à hemotransfusão tenham diminuído nas últimas
décadas, os riscos não são nulos.[8]
[9]
[10]
[11]
[12] A transfusão sanguínea alogênica também é associada à elevação do risco de infecção
após cirurgias com implantes ortopédicos. Tais evidências, contudo, permanecem inconclusivas
e carecem de estudos futuros.[10]
[11]
[12]
[13]
[14]
[15]
[16]
[17]
Desse modo, a possibilidade de identificar, no período pré-operatório, quais os pacientes
sob maior risco de receberem transfusão sanguínea no pós-operatório de ATJ pode auxiliar
a mudança de medidas nos períodos pré, intra e pós-peratórios.[7]
Assim, os objetivos do presente trabalho são: (1) verificar a incidência e o volume
de transfusão sanguínea entre os pacientes submetidos à ATJ unilateral cimentada em
um único centro; (2) identificar fatores preditivos quanto à necessidade de transfusão
sanguínea nas 48 horas subsequentes à ATJ; (3) estimar o risco de transfusão sanguínea
durante as primeiras 48 horas após o procedimento.
Material e Métodos
Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição, realizamos avaliação
retrospectiva dos prontuários de todos os pacientes submetidos à artroplastia total
unilateral cimentada de joelho por dois cirurgiões, no período entre agosto de 2010
e agosto de 2013.
Foram excluídos da amostra os pacientes submetidos à artroplastia unicompartimental
do joelho (AUJ), conversão de AUJ para ATJ, cirurgia bilateral, revisão de ATJ, portadores
de coagulopatias ou em terapia anticoagulante pré-operatória. Nenhum paciente realizou
doação de sangue autólogo pré-operatório.
Foram incluídos no estudo pacientes de ambos os gêneros, com idade entre 30 e 83 anos,
portadores de osteoartrose (OA) primária ou de artrite reumatóide. Todos os procedimentos
foram realizados por acesso parapatelar medial após anestesia raquidiana associada
a bloqueio periférico do nervo isquiático e do nervo femoral. As cirurgias foram realizadas
sob isquemia com pressão de 300 mm Hg, aplicada antes da incisão. Após cimentação
dos implantes do sistema P. F. C. Sigma (DePuy-Synthes Companies, Warsaw, IN, EUA)
póstero-estabilizado e com substituição patelar, a isquemia foi liberada para a realização
de hemostasia apenas com eletrocautério monopolar. Não foram administrados fármacos
de ação hemostática. Em todos os pacientes foi colocado dreno único de 4,8 mm, mantido
por 24 horas. A profilaxia antimicrobiana foi feita com cefazolina (2 g endovenosa
durante a indução anestésica), mantida por 24 horas (1 g endovenosa 8/8 horas). A
prevenção de trombose venosa profunda (TVP) foi realizada com heparina de baixo peso
molecular por via subcutânea (Clexane Sanofi-Avenitis, São Paulo, SP, Brasil) em dose
única diária de 40 mg, iniciada 12 horas após a cirurgia e mantida por 10 dias.
As variáveis pré-operatórias pesquisadas foram: gênero, idade, diagnóstico, índice
de massa corporal (IMC) segundo critérios da Organização Mundial de Saúde (OMS) do
ano 2000, risco cirúrgico segundo critérios da Sociedade Americana de Anestesiologia
(ASA) e concentração de hemoglobina (Hb) aferida 24 horas antes do procedimento cirúrgico.
O tempo de isquemia foi o parâmetro intraoperatório avaliado. No pós-operatório imediato,
determinado como as 48 horas subsequentes à cirurgia, foram registradas a menor concentração
de Hb do período e o volume total de hemoconcentrados alogênicos transfundidos.
A necessidade de hemotransfusão alogênica durante a cirurgia foi determinada pelo
anestesiologista que não desempenhou função no estudo. A hemotransfusão no pós-operatório
foi determinada pela equipe assistente observando protocolo de hemotransfusão adotado
pela instituição, em que os pacientes com Hb superior a 10 g/dL não necessitam de
transfusão sanguínea. Para os pacientes com níveis de Hb entre 6 e 7 g/dL é indicada
a realização de hemotransfusão. Para valores de Hb entre 7 e 10 g/dL, a decisão é
tomada considerando-se a situação individualmente. Após o término desse período, os
pacientes foram divididos em dois grupos, segundo a necessidade de transfusão de hemoconcentrados:
transfundidos (grupo T, n = 79) e não transfundidos (grupo nT, n = 155).
Análise Estatística
O teste de normalidade de Kolmogorov-Smirnov (e Shapiro-Wilks) foi aplicado para verificar
se a variável apresentava distribuição normal.
A existência de relação significativa entre as variáveis estudadas com a necessidade
de transfusão sanguínea após a ATJ foi avaliada pelos seguintes métodos: (1) teste
t de Student para comparação de dados numéricos e Mann-Whitney para amostras independentes;
(2) análise inferencial pelo coeficiente de correlação de Spearman para medir o grau
de associação entre variação da hemoglobina (Δ Hb), tempo de isquemia e volume transfundido;
(3) teste de χ2 ou exato de Fisher para comparação de dados categóricos; (4) análise de regressão
logística para avaliar a influência simultânea das variáveis preditoras. O processo
de seleção das variáveis foi o de stepwise forward, ao nível de 5%.
A curva característica de operação do receptor (COR) foi construída para determinar
a acurácia do modelo em predizer a necessidade de hemotransfusão. Essa representação
gráfica é obtida pela fração sensibilidade/especificidade em vários pontos de corte
de cada variável e, deste modo, ilustra o desempenho de um sistema e seu limiar de
discriminação. Pode-se também identificar o melhor ponto de corte (cut-off).
Foram consideradas diferenças estatisticamente significativas para valores de p < 0,05. Todos os cálculos foram realizados por estatístico independente, utilizando
software estatístico SAS versão 6.11 (SAS Institute, Inc., Cary, NC, EUA).
Resultados
Incidência e Volume de Transfusão Sanguínea Alogênica
A amostra inicial era formada por 237 pacientes. Após exclusão de 3 pacientes por
serem portadores de hemofilia, permaneceram no estudo 234 pacientes com idade média
de 66,6 ± 9,1 anos (faixa entre 30–83 anos). Deste total, 81,6% (191/234) eram mulheres.
Quanto ao diagnóstico, 83,8% (196/234) eram portadores de OA idiopática, e 16,2% (38/234)
foram diagnosticados com AR.
A incidência de transfusão sanguínea após ATJ foi de 33,7% (79/234). Em média, cada
paciente foi transfundido com 480 mL (1,6 unidades) de concentrado de hemácias. Cerca
da metade (50,6%) dos pacientes que foram transfundidos, recebeu um volume total de
600 mL de hemoconcentrados, 35 (44,3%) pacientes necessitaram de 300 mL, sendo que
apenas 5,1% (4/79) dos pacientes necessitaram de mais 2 unidades de hemocomponentes.
Na [Tabela 1] estão resumidas as características gerais dos pacientes alocados no grupo T (transfundido),
e grupo nT (não transfundido). Não houve diferença entre os grupos estudados quanto
à idade, gênero, diagnóstico e índice de massa corporal e ASA ([Tabela 1]).
Tabela 1
|
Grupo T (n = 79)
|
Grupo nT (n = 155)
|
Valor de p
|
|
Idade[*]
|
67,6 ± 9,3
|
66,1 ± 9,0
|
0,23
|
|
Gênero[**]
|
|
M
|
10(12,7%)
|
33(21,3%)
|
0,10
|
|
F
|
69(87,3%)
|
122(78,7%)
|
|
Diagnóstico[**]
|
|
AR
|
10 (12,7%)
|
28 (18,5%)
|
0,25
|
|
OA
|
69 (87,3%)
|
123 (81,5%)
|
|
IMC (kg/m2)[*]
|
30 ± 5,4
|
30,2 ± 5,3
|
0,71
|
|
ASA[**]
|
|
1
|
3
|
11
|
0,49
|
|
2
|
75
|
139
|
|
3
|
1
|
5
|
Fatores Preditores da Necessidade de Transfusão Sanguínea Alogênica
A análise univariada dos parâmetros clínicos e cirúrgicos demonstrou que a necessidade
de transfusão sanguínea após ATJ está relacionada com baixa concentração de Hb no
pré e no pós-operatório. Observamos também que os pacientes que receberam transfusão
apresentaram maior tempo de isquemia (p < 0,0014). As demais variáveis, como diagnóstico, gênero, idade, IMC e risco cirúrgico,
não apresentaram relação com a necessidade de hemotransfusão pós-operatória ([Tabelas 2] e [3]).
Tabela 2
|
Variável
|
Grupo T (n = 79)
|
Grupo nT (n = 155)
|
Valor de p
[a]
|
|
Idade (anos)
|
67,6 ± 9,3
|
(40–83)
|
66,1 ± 9,0
|
(30–82)
|
0,23
|
|
IMC (Kg/m2)
|
30,0 ± 5,4
|
(20,8–44,9)
|
30,2 ± 5,3
|
(15,0–43,8)
|
0,71
|
|
Tempo de isquemia (min)
|
94,5 ± 21,0
|
(50–150)
|
87,0 ± 20,2
|
(40–135)
|
0,0014
|
Tabela 3
|
Variável
|
Grupo T (n = 79)
|
Grupo nT (n = 155)
|
Valor de p
[a]
|
|
Sexo
|
|
M
|
10
|
12,7%
|
33
|
21,3%
|
0,10
|
|
F
|
69
|
87,3
|
122
|
78,7
|
|
Diagnóstico
|
|
OA
|
69
|
87,3
|
122
|
78,7
|
0,25
|
|
AR
|
10
|
12,7
|
33
|
21,3
|
|
Risco cirúrgico
|
|
ASA 1
|
3
|
3,9
|
11
|
7,1
|
0,49
|
|
ASA 2
|
74
|
94,9
|
139
|
89,7
|
|
ASA 3
|
1
|
1,3
|
5
|
3,2
|
Em ambos os gêneros, observou-se que o grupo T apresentou concentrações de Hb no pré-operatório
e no pós-operatório significativamente menores do que o grupo nT. De modo semelhante,
a variação dos níveis de Hb (ΔHb absolutos e relativos) foi significativamente maior
em relação ao grupo nT em ambos os gêneros ([Tabela 4]).
Tabela 4
|
Variável
|
Grupo T
|
Grupo nT
|
Valor de p
[a]
|
|
Gênero masculino
n = 10 n = 33
|
|
Hb no pré-operatório (g/dL)
|
12,9 ± 0,7
|
(11,8–14,1)
|
13,8 ± 1,4
|
(11,2–16,7)
|
0,046
|
|
Hb no pós-operatório (g/dL)
|
8,0 ± 1,1
|
(6,7–10)
|
9,9 ± 1,5
|
(7,3–14,2)
|
0,0007
|
|
Δ Hb (g/dL)[1]
|
5,0 ± 1,1
|
(6,7–3)
|
4,0 ± 1,3
|
(6,7–1,1)
|
0,033
|
|
Δ Hb (%)[2]
|
38,3 ± 8,0
|
(50–24)
|
28,7 ± 8,7
|
(48–9,4)
|
0,003
|
|
Gênero feminino
|
n = 69
|
n = 122
|
|
|
Hb no pré-operatório (g/dL)
|
11,9 ± 1,3
|
(9,3–14,8)
|
12,4 ± 1,2
|
(8,7–16,1)
|
0,002
|
|
Hb no pós-operatório (g/dL)
|
7,8 ± 1,0
|
(5,8–10,9)
|
9,1 ± 1,4
|
(6,1–12,3)
|
0,0001
|
|
Δ Hb (g/dL)[1]
|
4,1 ± 1,6
|
(7,4–1,3)
|
3,3 ± 1,4
|
(8,2–1,1)
|
0,0005
|
|
Δ Hb (%)[2]
|
34,0 ± 10,5
|
(54–12,7)
|
26,5 ± 9,8
|
(51–9,1)
|
0,0001
|
Nos pacientes que receberam a hemotransfusão (grupo T), quando analisada a relação
entre a variação de Hb (ΔHb) pré e pós-operatória e o tempo de isquemia, verificamos a existência de correlação
significativa entre o ΔHb absoluto (rs = 0,18; p = 0,006) e relativo (rs = 0,17; p = 0,007) com o tempo de isquemia.
Quando analisada a relação entre a ΔHb pré e pós-operatória com o volume de hemoderivados
transfundidos, verificamos a existência de correlação significativa entre a ΔHb absoluta
(rs = 0,24; p = 0,0002) e relativa (rs = 0,35; p = 0,0001) com o volume final transfundido. Foi observada também correlação significativa
(rs = 0,16; p = 0,013) entre o tempo de isquemia e o volume de hemoderivados transfundido para
os pacientes.
O tempo de isquemia também mostra relação com uma maior queda absoluta e relativa
nos valores da Hb. A queda dos níveis de Hb e o tempo de isquemia, por sua vez, estão
diretamente relacionados com maior volume de hemoderivados transfundido no peroperatório
de ATJ.
Uma subsequente análise de regressão logística multivariada foi realizada para avaliar
a influência simultânea de variáveis preditoras sobre a necessidade de hemotransfusão.
Essa avaliação confirmou a concentração pré-operatória de Hb (p < 0,0001) e tempo de isquemia como fatores preditores independentes quanto a necessidade
de hemotransfusão pós-operatória. As demais variáveis não apresentaram contribuição
independente significativa, ao nível de 5%.
Realizamos a construção da curva COR para Hb e para tempo de isquemia, identificando
o cut-off para hemotransfusão após ATJ nos pacientes com concentração pré-operatória de Hb ≤ 12,3 g/dL.
A sensibilidade desse teste foi de 62,0% e a especificidade de 61,9%. Na curva do
tempo de isquemia, identificamos o cut-off nos pacientes com tempo de isquemia ≥ 87 minutos, com sensibilidade de 62,0% e especificidade
de 51,6% ([Figura 1]).
Fig. 1 Acurácia global medida pela curva característica de operação do receptor da hemoglobina
pré-operatória (A) e do tempo de isquemia (B) para hemotransfusão após artroplastia total do joelho sob isquemia com manguito
pneumático.
Ao realizar regressão logística após identificação dos cut-off, observamos que valores de Hb pré-operatórios ≤ 12,3 g/dL (p < 0,001) e tempo de isquemia ≥ 87 minutos (p < 0,047) foram preditores independentes para hemotransfusão em ATJ sob uso de manguito
pneumático, com risco relativo de 2,48 e 1,78, respectivamente.
Risco de transfusão sanguínea alogênica após ATJ
Com base no modelo da regressão logística, a probabilidade do paciente submetido à
ATJ necessitar de transfusão sanguínea nas 48 horas subsequentes ao procedimento pode
ser calculada pela seguinte fórmula:
Assim, a probabilidade estimada de transfusão de acordo com os parâmetros relevantes
analisados é apresentada na [Tabela 5].
Tabela 5
|
Hb pré-operatória ≤ 12,3 g/dL
|
Tempo de isquemia ≥ 87 minutes
|
Probabilidade estimada (%)
|
Intervalo de confiança de 95%
|
|
Não
|
19,3
|
12,4–28,9
|
|
Não
|
Sim
|
29,9
|
20,8–40,8
|
|
Sim
|
Não
|
37,2
|
26,4–49,4
|
|
Sim
|
51,3
|
40,0–62,6
|
Discussão
O presente estudo é uma avaliação transversal de 234 pacientes submetidos à ATJ que
demonstra que concentração pré-operatória de Hb ≤12,3 g/dL e tempo de isquemia ≥ 87 minutos
são preditores independentes para hemotransfusão após ATJ.
Apesar de as cirurgias de ATJ normalmente se associarem à elevada perda sanguínea
total, ampla variação nas taxas de hemotransfusão é observada na literatura. Em nossa
amostra, a transfusão foi realizada em 33,7% dos pacientes dentro de 48 horas após
a cirurgia. Apesar de este resultado ser semelhante ao de outros autores descritos
em uma grande série de pacientes,[9] é possível que a adoção de critérios institucionais conservadores para indicação
de transfusão sanguínea possa acarretar na redução dessa taxa. Ballantyne et al.[17] identificaram redução da incidência de hemotransfusão pós-ATJ unilateral de 31 para
11,9% após adoção de protocolo transfusional institucional mais rigoroso, indicando
hemotransfusão apenas em pacientes que apresentassem concentração de Hb < 8,5 g/dL
no pós-operatório ou na presença de sintomas de anemia aguda.
Modelos preditores que possibilitem identificar pacientes com maior probabilidade
de necessidade de hemotransfusão pós-operatória são essenciais para a gestão racional
de hemocomponentes.[7] Assim, buscamos avaliar na população brasileira variáveis pré e perioperatórias
que nos permitissem identificar os indivíduos sob maior risco de necessitar de hemotransfusão
nas 48 horas subsequentes à ATJ.
O preditor independente mais consistente da necessidade de transfusão pós-operatória
foi a concentração pré-operatória de Hb ≤ 12,3 g/dL. A partir desse valor, o risco
relativo de transfusão foi de 2,48, sugerindo, portanto, que pacientes com essa taxa
de Hb têm 2,48 vezes mais chances de necessitarem de hemotransfusão quando submetidos
à ATJ do que pacientes com a taxa acima desse valor. Salido et al.[18] também identificaram a concentração pré-operatória de Hb < 13 g/dL como fator preditor
de hemotransfusão em pacientes submetidos à artroplastia total do quadril (ATQ) ou
ATJ, com um risco relativo semelhante ao encontrado no nosso grupo analisado (2,51).
O percentual de pacientes dentro desta faixa de valores de Hb pré-operatória que foram
transfundidos (69%) também foi semelhante ao observado na nossa casuística (62%).
Resultados semelhantes foram observados por Guerin et al.[19] ao identificar risco 4 vezes maior de transfusão nos pacientes com concentração
pré-operatória de Hb < 13 g/dL, risco este potencializado em pacientes ASA 3 e 4.[9]
Outro parâmetro preditor independente para hemotransfusão observado neste estudo foi
o tempo de isquemia ≥ 87 minutos, acarretando num risco relativo de 1,78. Os resultados
de Noticewala et al.[20] mostraram que apenas o tempo cirúrgico total (e não o tempo de isquemia) é um fator
preditivo independente da necessidade de hemotransfusão pós-ATJ. Embora Salido et
al.[18] tenham relatado que o tempo cirúrgico de 91,1 minutos estava associado à maior necessidade
de hemotransfusão, este achado não foi confirmado como fator preditor independente
para hemotransfusão.
Prasad et al.[3] confirmaram haver maior necessidade de transfusão sanguínea após ATJ em portadores
de AR. Entretanto, Ogbemudia et al.[21] identificaram a baixa concentração de Hb como sendo fator preditor para transfusão
em pacientes com AR. No nosso estudo, à semelhança de Noticewala et al.,[20] o diagnóstico de AR não foi um fator preditor independente. Contudo, como também
observado por Ogbemudia et al.,[21] a baixa concentração de Hb nesses pacientes foi um fator de risco para transfusão
sanguínea pós-operatória.
A idade foi identificada por Hart et al.[6] como sendo fator preditor independente, com elevação de 10,2 vezes do risco de transfusão
para cada década de vida. Nossos resultados não confirmaram a relação entre idade
e necessidade de transfusão após ATJ.
À semelhança da idade, o gênero do paciente não foi um preditor independente de transfusão
pós-ATJ. Apesar das mulheres, em geral, apresentarem menores concentrações de Hb,
no nosso estudo, assim como no de Ogbemudia et al.[21] não houve relação entre o gênero do paciente e a necessidade de transfusão.
O IMC é outro parâmetro frequentemente investigado. Menores valores de IMC são descritos
como estando associados à menor[13]
[14] ou a maior[22] necessidade transfusional. O peso corporal foi descrito por Salido et al.[18] como sendo um fator preditor independente para a necessidade de hemotransfusão pós-operatória,
com risco relativo de 1,05. Em portadores de AR, o IMC mostrou relação com maior necessidade
de hemotransfusão.[21] No presente estudo, assim como no de Bong et al.,[23] não foi observada a relação entre o IMC e a necessidade de transfusão pós-operatória.
A literatura aponta para um consenso de que pacientes com ASA superior a 2, em geral,
necessitam de transfusão,[6]
[7]
[9]
[11]
[15] demostrando que, em relação aos pacientes ASA 1 e 2, os pacientes ASA 3 e 4 têm
um risco independente para a necessidade de hemotransfusão pós-operatória 3 vezes
maior. Na nossa amostra, não observamos relação entre risco cirúrgico (ASA) e a necessidade
de hemotransfusão, o que pode ser explicado pelo número reduzido de participantes
do estudo com ASA igual ou maior do que 3.
A identificação, no período pré-operatório, dos pacientes sob maior risco de necessitar
de transfusão sanguínea no pós-operatório de ATJ, tem uma importância central no cenário
da saúde pública brasileira. Assim, desenvolvemos um modelo que permite estimar o
risco relativo do paciente necessitar de hemotransfusão sanguínea. A curva COR foi
construída para determinar a acurácia desse modelo em predizer quais pacientes apresentavam
risco transfusional elevado após ATJ. O poder discriminatório de nosso modelo, estimado
pela curva COR da Hb (área sob a curva de 0,68), embora regular, atingiu significância
estatística com sensibilidade de 62,0% e especificidade de 61,9%. Quando avaliada
a curva COR do tempo de isquemia (área sob a curva de 0,60), o poder preditivo de
nossa equação foi baixo, mas com relevância estatística e com sensibilidade de 62,0%
e especificidade de 51,6%. Outros modelos preditivos realizados em condições semelhantes
às do nosso estudo mostraram maior poder discriminatório do que a nossa equação, com
área sob a curva de 0,74[22] ou 0,99[24] e sensibilidade de 71%[22] ou 90%.[18] Contudo, a especificidade deste último relato (52,5%) foi semelhante à encontrada
no nosso estudo (51,6%).[20]
Acreditamos, entretanto, que antes da utilização da equação nas tomadas de decisão,
seja importante a sua validação em outras instituições para possíveis adequações do
modo.
Nosso estudo apresenta algumas limitações. Apesar da existência de parâmetros clínicos
e laboratoriais a serem observados no protocolo transfusional, a visão do especialista
(anestesiologista, intensivista, clínicos e cirurgiões) pode ter particularizado a
indicação transfusional em alguns pacientes, o que configura limitação desse estudo.
Outra importante limitação refere-se a não realização do cálculo amostral; entretanto,
acreditamos que o fato da nossa amostra ser constituída por um número expressivo de
pacientes, originados de um único centro terciário de referência no tratamento de
doenças ortopédicas de alta complexidade, imputa aos resultados importante relevância.
Destacamos, porém, a necessidade de estudos adicionais prospectivos para corroborar
nossos resultados e para orientar o tratamento mais adequado dos pacientes em programação
pré-operatória de ATJ que apresentem concentração de Hb < 12,3 g/dL. Do mesmo modo,
verificamos a necessidade de adoção de medidas efetivas visando a redução de sangramento
em pacientes nos quais as cirurgias transcorram com tempo de isquemia > 87 minutos.
Conclusão
A incidência de transfusão sanguínea após ATJ foi de 33,7%. Em média, cada paciente
foi transfundido com 480 mL de concentrado de hemácias.
Concentração de Hb pré-operatória ≤ 12,3 g/dL (p < 0,001) e tempo de isquemia ≥ 87 minutos (p < 0,047) foram preditores independentes para hemotransfusão em ATJ sob uso de manguito
pneumático, com risco relativo de 2,48 e 1,78, respectivamente.
A idade, o gênero, diagnóstico ou IMC não foram considerados preditores independentes
para a necessidade de hemotransfusão até 48 horas pós-ATJ.