Palavras-chave trombose - ortopedia - cirurgia - pé - tornozelo - profilaxia pré-exposição
Introdução
O tromboembolismo venoso (TEV) é a principal causa de morte evitável no ambiente nosocomial,[1 ] e uma das complicações mais conhecidas e temidas das cirurgias ortopédicas. As principais apresentações do TEV são a trombose venosa profunda (TVP) e o tromboembolismo pulmonar (TEP). A primeira pode se complicar com a síndrome pós-trombótica (SPT) e o TEP, e o segundo, com hipertensão pulmonar tromboembólica crônica (HPTC) e morte.[2 ] A ocorrência de TEV na população geral é de aproximadamente 1 a 2:1.000 pessoas por ano.[3 ]
A maioria dos dados referentes à abordagem da prevenção do TEV em ortopedia está relacionada às grandes cirurgias ortopédicas, como as artroplastias de joelho e quadril.[4 ]
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[6 ] As principais diretrizes disponíveis sobre o assunto apresentam recomendação clara e objetiva para que se institua a profilaxia para tais cirurgias,[1 ]
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[7 ] incluindo tipo de medicamento e tempo de utilização claramente definidos.
No entanto, para as cirurgias abaixo do nível do joelho, as abordagens e recomendações ainda são obscuras. A diretriz do American College of Chest Physicians (ACCP) sugere que não se use tromboprofilaxia medicamentosa para lesões isoladas abaixo do nível do joelho.[4 ] Igualmente, a American Academy of Orthopedic Surgeons declara que não existe uma orientação específica para a profilaxia relacionada às cirurgias do tornozelo e do pé.[8 ] Um outro consenso estabelece diretrizes relacionadas aos fatores de risco, mas não define parâmetros objetivos para a indicação de tromboprofilaxia farmacológica, nem o tempo ideal para o seu uso.[9 ] A mais recente recomendação da American Society of Hematology nem sequer menciona as lesões de tornozelo e de pé em sua publicação.[7 ]
O objetivo desta revisão é apresentar dados sobre a incidência de TEV nas cirurgias do tornozelo e do pé, identificar os principais fatores de risco nestas situações, e discutir as ferramentas de predição do risco e as alternativas para tromboprofilaxia.
Incidência
A ocorrência de TVP nos membros inferiores (TVP-MMII) após uma intervenção ortopédica no nível do tornozelo e do pé é rara, diferente do que se observa nas grandes cirurgias do quadril e do joelho, cuja incidência de TVP-MMII ocorre em 40% a 60% dos casos.[1 ]
Uma meta-análise[9 ] com 43.381 pacientes identificou incidência de TEV sintomática de 0,6% (intervalo de confiança [IC] de 95%: 0,4%–0,8%) em pacientes submetidos a diversas intervenções no pé ou no tornozelo sem tromboprofilaxia, incluindo lesões decorrentes de trauma e intervenções eletivas. Entre os pacientes que receberam algum tipo profilaxia, a incidência foi de 1,0% (IC95%: 0,2%–1,7%),[9 ] possivelmente pelo fato de aqueles pacientes que receberam profilaxia serem pacientes mais graves e/ou com mais fatores de risco para TEV.
Em uma coorte retrospectiva[10 ] com 22.486 pacientes submetidos a cirurgia de tornozelo e/ou pé acompanhados entre 2008 e 2011, 173 (0,8%) tiveram TEV sintomático nos 6 meses subsequentes à intervenção ortopédica.[10 ] Quando avaliado o local da cirurgia e a ocorrência de trombose, 65,6% dos casos de TEV ocorreram em cirurgias do retropé e do tornozelo, 11,1%, no mediopé, e 26,7%, no antepé.
Sabe-se que, entre as doenças do pé e do tornozelo, a ruptura do tendão de Aquiles é a lesão mais frequentemente associada à ocorrência de TEV. Os dados de uma meta-análise[9 ] mostram que entre 1.060 pacientes com ruptura do tendão de Aquiles avaliados clinicamente para a investigação de TEV, 74 (7%) tiveram TEV confirmado.[9 ] Entre 1997 e 2015, um estudo[11 ] avaliou 28.546 pacientes com ruptura aguda do tendão de Aquiles, tratados cirurgicamente ou não, quanto à incidência de TEV.[11 ] Destes, 389 (1,36%) foram diagnosticados com trombose, dos quais 278 (0,97%) tiveram TVP-MMII, e 138 (0,48%), TEP. Em um outro estudo de coorte prospectivo,[12 ] dos 291 pacientes com ruptura aguda do tendão calcâneo, 14 (4,81%) foram diagnosticados com TEV nos primeiros 33 dias após o procedimento cirúrgico.[12 ]
É importante ressaltar que a maioria dos eventos tromboembólicos identificados nos estudos supracitados são assintomáticos, sendo somente detectados por exames de imagem de rastreamento, realizados após o procedimento cirúrgico. Por isso, a maior parte destes eventos são de menor ou nenhuma relevância clínica. Como exemplo, cita-se um estudo de coorte prospectivo,[13 ] no qual 114 cirurgias eletivas em pé e/ou tornozelo foram realizadas em 111 pacientes, sendo constatada TVP em 29 (25,4%), dos quais a maioria (20/29, ou 68,9%) foi diagnosticada por ultrassonografia na visita de rastreamento 2 semanas após a cirurgia.[13 ] Em outro estudo de coorte prospectivo com 216 pacientes submetidos a abordagens cirúrgicas diversas no pé ou no tornozelo, a TVP foi rastreada por ultrassonografia dos membros inferiores entre 2 e 6 semanas após a cirurgia. A incidência de TEV foi de 5,09% (11/216), e 3 dos 11 pacientes com TEV tiveram TVP assintomática.[14 ] Assim, uma vez que a maioria dos eventos tromboembólicos venosos assintomáticos apresentam pouca repercussão clínica, e que menos de 10% dos casos das TVP-MMII distais sintomáticas apresentam extensão proximal,[15 ] o rastreamento de TEV por ultrassom em pacientes assintomáticos submetidos a cirurgias abaixo do nível do joelho não deve ser realizado na prática clínica. Este exame deve ser indicado para aqueles pacientes com suspeição clínica de TVP.[9 ]
No entanto, a grande dificuldade em se determinar o risco de TEV nos pacientes com lesões abaixo do nível do joelho decorre dos seguintes fatores: 1) a maioria dos estudos se baseia em série de casos; 2) as informações referentes ao uso de uma eventual tromboprofilaxia nestes estudos é inadequada; 3) devido à baixa incidência, o número de pacientes com TEV nos estudos relatados não foi capaz de oferecer conclusões suficientemente robustas;[16 ] e 4) a escassez de estudos que tenham avaliado o impacto de fatores de risco associados na ocorrência de TEV nos pacientes com intervenções cirúrgicas abaixo do nível do joelho.[9 ]
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Fatores de risco
As cirurgias ortopédicas, principalmente as grandes cirurgias do quadril e do joelho, são procedimentos de alto risco para a ocorrência de TEV.[3 ] No entanto, embora o risco trombótico seja menor, as intervenções no tornozelo e no pé, que habitualmente requerem algum tempo de restrição de apoio do membro inferior no solo e/ou imobilização, também se associam a maior risco.[9 ]
[17 ]
A imobilização do membro inferior, que impede a contração da musculatura da panturrilha, tem se mostrado um importante fator de risco isolado para TEV nas intervenções abaixo do joelho.[20 ]
[21 ] Além disso, sabe-se que, quanto maior o tempo de imobilização, maior o risco de TEV.[22 ] Adicionalmente, o fato de permanecer sem apoiar o membro inferior no solo também está associado ao aumento do risco de TEV, sendo muitas vezes somado à imobilização como um fator de risco maior.[23 ] O uso de imobilização sem apoio por um período de 2 a 8 semanas está associado a um risco de TEV 9 vezes maior (razão de probabilidades [RP]: 9,0; IC95%: 1,8–44,3) do que naqueles pacientes que permanecem imobilizados por um período inferior a este.[10 ] Apesar de alguns autores considerarem que o fato de poder apoiar o membro inferior no solo possibilita interromper a profilaxia medicamentosa,[14 ] por conferir maior mobilidade ao paciente, essa orientação ainda requer estudos adicionais para que se comprove a sua eficácia.
Até o presente momento, o principal fator de risco identificado para a ocorrência de TEV em pacientes com intervenções abaixo do nível do joelho é o histórico de trombose prévia,[9 ]
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[24 ] embora seja considerado um fator de risco menos valorizado pelo cirurgião durante a avaliação de risco do paciente ortopédico.[17 ]
[25 ] A identificação deste fator de risco é considerada a única indicação formal para a prescrição de tromboprofilaxia medicamentosa nessa população de pacientes.[4 ]
Outros fatores considerados de alto risco para a ocorrência de TEV nas cirurgias do tornozelo e do pé são obesidade (índice de massa corporal [IMC] acima de 30 kg/m2 ),[9 ]
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[26 ] idade acima dos 50 anos,[9 ]
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[17 ]
[26 ] e uso de compostos estrogênicos na mulher. O uso de contraceptivos orais e a terapia de reposição hormonal são fatores de risco clássicos para TEV na população geral, estando presentes em grande parte das pacientes submetidas a cirurgias ou imobilizações no tornozelo e no pé que desenvolvem TEV.[9 ]
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[19 ] Além disso, fatores de risco genéticos, como a presença do fator V de Leiden, tipo sanguíneo que não seja O, ou níveis elevados de fator VIII devem ser também considerados na avaliação do risco de TEV em cirurgias de pé e de tornozelo, uma vez que eles são fatores de risco conhecidos para cirurgias ortopédicas de outros segmentos.[21 ]
[27 ]
[28 ]
Uma questão interessante das doenças do tornozelo e do pé é a influência do local da cirurgia na ocorrência de TEV. Pacientes submetidos a tratamento cirúrgico para lesões do tendão de Aquiles parecem ser aqueles sob maior risco, com a incidência de TEV variando entre 1,36% e 7,00%.[9 ]
[11 ]
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[19 ] A incidência de TEV parece também ser aumentada nas afecções do tornozelo (1,0%),[26 ] retropé (0,14% a 1,1%)[18 ]
[29 ] e antepé (0,03% a 4,00%).[14 ]
[26 ]
[30 ]
Ferramentas de avaliação de risco
Ferramentas de avaliação de risco
Um grande desafio para o ortopedista que trata pacientes com lesões no tornozelo e no pé é definir quais pacientes tem maior risco de desenvolver TEV, e, consequentemente, a indicação para tromboprofilaxia medicamentosa. A baixa incidência de TEV nas cirurgias de tornozelo e de pé e a diversidade de fatores de risco e comorbidades relacionadas ao TEV tornam esta tarefa difícil, uma vez que, mesmo raras, as complicações decorrentes do TEV (principalmente da TVP-MMII), como o TEP e a SPT, são extremamente danosas para o paciente.[10 ]
Diversas ferramentas foram desenvolvidas para avaliar o risco individual de o paciente desenvolver TEV. Saragas et al.[14 ] analisaram o formulário Thrombosis Risk Factor Assessment, que pontua os fatores de risco e soma-os para quantificar o risco de TEV. Estes autores avaliaram 216 pacientes com lesões cirúrgicas do tornozelo e do pé, de deformidades do retropé, a fraturas e correção de hálux valgo bilateral. Os autores identificaram que a pontuação média do grupo que desenvolveu TEV foi de 7,7 (variação: 4 a 13 pontos), sendo que 90,9% destes pacientes somavam 5 ou mais pontos. Assim, os autores recomendam que a pontuação de corte para iniciar a tromboprofilaxia medicamentosa seria de 5 pontos para os pacientes submetidos a cirurgia ortopédica do tornozelo e do pé.
Outra ferramenta utilizada na avaliação de risco de TEV é a do National Institute for Health and Care Excellence (NICE), do Reino Unido.[31 ] Uma das vantagens desta ferramenta é a sua capacidade de avaliar todos os pacientes internados, e não somente os cirúrgicos. Além disso, a ferramenta analisa três pontos importantes: a mobilidade do paciente, os fatores de risco para TEV, e o risco de sangramento. A utilidade desta ferramenta foi confirmada em estudos prospectivos em pacientes com fratura de tornozelo, lesões dos ossos do pé, e ruptura do tendão de Aquiles, tratados com imobilização gessada ou cirurgicamente.[12 ]
[32 ] Entretanto, apesar da grande vantagem de se incluir o risco de sangramento na sua análise, o conceito de mobilidade não é bem definido, podendo gerar interpretações errôneas e decisões equivocadas.
O escore de Caprini, desenvolvido para pacientes cirúrgicos em geral,[25 ]
[33 ] pontua os fatores de risco relacionados ao paciente e ao tipo de procedimento, sendo considerados de alto risco aqueles que têm pontuação igual ou maior a três pontos ([Figura 1 ]).[25 ] Apesar de ainda não ter sido validado para cirurgia ortopédica em geral, o escore de Caprini já foi validado para algumas cirurgias ortopédicas específicas, como fraturas do quadril,[34 ] artroplastias coxofemorais e do joelho,[35 ] e fraturas em geral.[36 ] Além disso, foi também validado para outras áreas cirúrgicas, como cirurgia plástica,[37 ]
[38 ] otorrinolaringologia,[39 ] e ginecologia oncológica.[40 ]
Fig. 1 Escore de Caprini. Abreviações: AVC, acidente vascular cerebral; DPOC, doença pulmonar obstrutiva crônica; IMC, índice de massa corporal; MMII, membros inferiores; h, horas; TEV, tromboembolismo venoso; TRM, trauma raquimedular; TVP, trombose venosa profunda. Fonte: Traduzido e adaptado de Caprini JA. Risk assessment as a guide for the prevention of the many faces of venous thromboembolism. Am J Surg 2010;199 (1 Suppl):S3–10.[25 ]
Assim, o escore de Caprini, por já ter sido validado em diversas áreas cirúrgicas, parece ser o mais confiável e abrangente para uso nas cirurgias ortopédicas em geral. No entanto, o conceito de avaliação de risco trombótico nas cirurgias ortopédicas em geral, e não somente nas cirurgias do quadril e do joelho, carece de difusão na prática clínica. Isso proporcionará melhor predição do risco de TEV e a elaboração de protocolos de tromboprofilaxia mais adequados aos diferentes grupos de maior risco trombótico.
Tipos de tromboprofilaxia
Tipos de tromboprofilaxia
Mecânica
O princípio da tromboprofilaxia mecânica se baseia no uso da compressão gradativa da musculatura sobre as veias, potencializando o retorno venoso.[16 ] A tromboprofilaxia mecânica nas cirurgias ortopédicas pode ser realizada utilizando dispositivos de compressão pneumática intermitente (DCPI) e meias de compressão elásticas.[41 ] Em recente meta-análise[42 ] com 16.164 pacientes, o uso de DCPI se mostrou eficaz na redução de TEV em pacientes internados quando comparado ao uso de placebo, sendo o risco relativo (RR) para TVP de 0,43 (IC95%: 0,36–0,52), e, para TEP, de 0,48 (IC95%: 0,33–0,69).[42 ] Como vantagens, esses dispositivos não têm os efeitos adversos apresentados pelas drogas anticoagulantes, tais como sangramento, e tampouco requerem monitoramento laboratorial.[43 ] No entanto, apresentam como importante desvantagem a dificuldade de adesão do paciente no período pós-operatório, uma vez que muitos desses indivíduos submetidos a cirurgias no tornozelo e no pé ficam imobilizados, sendo incapazes de utilizar estes tipos de dispositivos no membro operado. Assim, seu uso fica reservado ao membro contralateral durante o período de internação. Ressalta-se que o método mecânico mais simples de prevenção de TEV é a deambulação precoce.[22 ]
[43 ]
Medicamentosa
O uso de medicamentos para a profilaxia de TEV (profilaxia medicamentosa) nas cirurgias do tornozelo e do pé é mais difundido do que a profilaxia mecânica. Isso se deve a questões relacionadas à menor disponibilidade do dispositivo de compressão, ao preço das meias, à menor facilidade de uso e a fatores locais, tais como a necessidade de imobilização do membro inferior no pós-operatório de cirurgias de tornozelo e de pé.
Entre os medicamentos aprovados para tromboprofilaxia nas cirurgias ortopédicas estão o ácido acetilsalicílico (AAS), as heparinas (não fracionada – HNF, e de baixo peso molecular – HBPM), os anticoagulantes orais de ação direta, e a varfarina. Caso os pacientes estejam utilizando essas medicações antes da cirurgia, é importante observar o período necessário de interrupção previamente à cirurgia para evitar sangramentos ([Tabela 1 ]). Cada um desses medicamentos age em uma determinada etapa da via da coagulação, inibindo diferentes fatores ([Figura 2 ]).
Tabela 1
Droga
Posologia
Tempo de interrupção antes da cirurgia
Observação
Ácido acetilsalicílico
100 mg/dia dose única, via oral
5 a 10 dias antes da cirurgia
Não deve ser utilizada como monoterapia. Usar como terapia estendida após cinco dias de rivaroxabana em pacientes de baixo risco trombótico
HBPM – Enoxaparina
40 mg/dia dose única, subcutânea
12 horas se baixo risco de sangramento; 24 horas se alto risco
Iniciar 12 horas após a cirurgia
HBPM – Dalteparina
5.000 UI/dia dose única, subcutânea
12 horas se baixo risco de sangramento; 24 horas se alto risco
Iniciar 12 horas após a cirurgia
HBPM - Nadroparina
38 UI anti-Xa por kilo de peso corporal
(0.2 a 0.4 mL); aumentar em 50% no quarto dia do pós-operatório (0.3 a 0.6 mL).
12 horas se baixo risco de sangramento; 24 horas se alto risco
Iniciar 12 horas após a cirurgia
Rivaroxabana
10 mg/dia, via oral
24 horas se baixo risco de sangramento; 48 horas se risco moderado ou alto, ou paciente idoso
Iniciar > 6 horas após a cirurgia
Dabigatrana
220 mg/dia, via oral
48 a 72 horas se função renal normal; mínimo de 5 dias para cirurgias ortopédicas maiores
Iniciar com 110 mg administrados 1-4 horas após a cirurgia, e a seguir com 220 mg uma vez ao dia
Apixabana
2,5 mg duas vezes ao dia, via oral
24 horas se baixo risco para sangramento; 48 horas se risco moderado ou alto
Iniciar ≥ 12 horas após a cirurgia
Varfarina
Na maioria dos casos, 5-10 mg/dia, via oral
3 a 5 dias
Após o terceiro dia, ajustar conforme RNI com alvo terapêutico de 1,5 a 2,5. Iniciar 12 a 24 horas após a cirurgia. Sugere-se usar um nomograma de ajuste de dose de varfarina validado
Fig. 2 Representação esquemática do controle da coagulação e indicação dos sítios de atuação dos principais anticoagulantes. Abreviações: a, ativado; AT, antitrombina; FT, fator tecidual; HBPM: heparina de baixo peso molecular.
O AAS é um inibidor da ciclooxigenase, que promove a diminuição da síntese de prostaglandinas e tromboxano, inibindo assim a agregação plaquetária. É um medicamento de fácil acesso, barato, e com longa experiência de uso. Apesar da recomendação sobre o uso do AAS como agente único para tromboprofilaxia ser controversa na literatura, estudos recentes[44 ] demonstram que nas cirurgias de artroplastia do quadril e do joelho, ele pode ser usado após um breve ciclo de cinco dias de um anticoagulante oral de ação direta (rivaroxabana).[45 ]
[46 ] Estudos sobre o uso do ácido acetilsalicílico como tromboprofilático em cirurgias do tornozelo e do pé ainda são escassos, conforme observado em recente consenso sobre o assunto.[17 ]
A HNF e a HBPM têm como alvo a inibição de várias proteases da coagulacão ([Figura 2 ]). A HNF age indiretamente, ligando-se à antitrombina (um anticoagulante natural), potencializando a ação inibitória desta sobre várias proteases da coagulação, incluindo a trombina (fator IIa) e o fator Xa.[41 ] As HBPMs se originam da digestão parcial da HNF, resultando em menor ligação a outras proteínas plasmáticas e maior especificidade de ação contra o fator Xa. Ambas as formas são eficazes, seguras e administradas por via subcutânea. Entretanto, as HBPMs têm maior praticidade de uso (dose única diária), menor risco de plaquetopenia induzida por heparina, e menor indução de osteopenia.[47 ] Assim, a HBPM é o anticoagulante mais recomendada para a profilaxia de TEV nas cirurgias do tornozelo e do pé, inclusive pelas diretrizes mais recentes,[9 ]
[17 ] sendo, até o momento, a droga de escolha para pacientes sob risco de TEV, tanto cirúrgicos quanto não cirúrgicos, desde que estejam imobilizados.[17 ]
Os anticoagulantes orais de ação direta (AOADs) são uma nova classe de anticoagulantes de ação específica, de uso oral, direcionados contra o fator Xa (apixabana, rivaroxabana, edoxabana, betrixabana) ou o fator IIa (dabigatrana). Têm como principal vantagem a falta de necessidade do monitoramento periódico por meio de testes laboratoriais e de administração parenteral/subcutânea. Além disso, são drogas mais seguras em comparação com a varfarina quanto à ocorrência de sangramento grave, embora o sangramento gastrointestinal seja mais comum com o seu uso.
A rivaroxabana, apixabana e dabigatrana foram aprovadas para profilaxia de TEV nas artroplastias do joelho e do quadril.[48 ]
[49 ] Entretanto, nenhuma delas foi autorizada para uso em fraturas do fêmur proximal e do quadril.[4 ]
[7 ]
[50 ] Apesar da aprovação de uso dos AOADs nas grandes cirurgias ortopédicas, até o presente momento existem dados referentes apenas à rivaroxabana na profilaxia de TEV em cirurgias abaixo do nível do joelho. Em um estudo randomizado com 3.604 pacientes em um grupo utilizando 40 mg de enoxaparina subcutânea e outro utilizando 10 mg de rivaroxabana por via oral, ambas sendo administradas uma vez ao dia, a rivaroxabana se mostrou mais eficaz na prevenção de TEV em comparação com a enoxaparina (RR: 0,25; IC95%: 0,09–0,75), sem aumento do risco de sangramento.[51 ]
A varfarina é um antagonista da vitamina K que inibe a síntese de fatores de coagulação dependentes de cálcio – II, VII, IX e X –, bem como das proteínas C, S e Z.[41 ] A dose recomendada é variável, sendo na maioria dos casos entre 5 mg e 10 mg diariamente no período pós-operatório.[41 ] Apesar de também ser uma droga barata e de grande disponibilidade, somente deve ser usada como agente tromboprofilático nas cirurgias ortopédicas caso não exista acesso às heparinas ou aos AOADs. A varfarina requer um monitoramento contínuo do tempo da protrombina e de seu derivado, a relação normatizada internacional (RNI), que deve ter como alvo um valor entre dois e três para ser considerada uma anticoagulação adequada para a prevenção do TEV. Sua meia-vida média é de 2,5 dias, o que faz com que deva ser suspensa pelo menos 3 dias antes de uma intervenção cirúrgica.[52 ]
Tempo de uso da tromboprofilaxia
Tempo de uso da tromboprofilaxia
A tromboprofilaxia medicamentosa deve ser iniciada no período pós-operatório, 12 horas após a cirurgia se o paciente não apresentar sangramento ativo ou alto risco de sangramento.[53 ]
O tempo de manutenção da tromboprofilaxia medicamentosa em determinadas cirurgias ortopédicas é bem definido. Esse é o caso das grandes cirurgias ortopédicas (artroplastias de quadril e joelho), cuja anticoagulação no período pós-operatório deve ser de no mínimo 10 a 14 dias, podendo atingir até 35 dias.[4 ] A anticoagulação poderá ser suspensa até que o paciente esteja deambulando, desde que tenha sido administrada por no mínimo entre 10 e 14 dias. No entanto, a simples replicação desses prazos nas cirurgias do tornozelo e do pé não é adequada.
O uso de algum tipo de imobilização no tratamento das doenças do tornozelo e do pé está associado à ocorrência de TEV em 4,3% a 40,0% dos pacientes, sejam eles tratados cirurgicamente ou não.[54 ] O fato de o paciente permanecer sem apoiar o membro inferior no solo ou mesmo com apoio parcial também atuam como fatores de risco para a ocorrência de TVP.[23 ]
[55 ] Com isso, imobilização e o fato de estar sem apoiar o pé no chão são fatores que devem ser considerados no momento de se definir o tempo de profilaxia.
De forma geral, é consenso entre especialistas que a profilaxia deva ser mantida durante todo o período em que o paciente estiver imobilizado,[17 ] ou pelo menos enquanto estiver sem apoio e imobilizado. A suspensão da profilaxia poderá ocorrer assim que o apoio do membro inferior tratado ocorrer ou após a retirada da imobilização mesmo que sem apoio, o que permitirá a contração ativa da musculatura da panturrilha, diminuindo o risco de TEV.[14 ]
Complicações
O grande debate sobre a profilaxia reside no fato da potencial ocorrência de complicações decorrentes da administração de agentes anticoagulantes, principalmente em grandes cirurgias. Entretanto, informações sobre a ocorrência de complicações relacionadas ao uso de profilaxia medicamentosa nas cirurgias do tornozelo e do pé são escassas.
Entre as complicações descritas nas cirurgias dos membros inferiores após o uso de anticoagulantes estão os sangramentos, que ocorrem de 0,3% a 1% dos casos.[49 ]
[56 ] Os fatores associados ao aumento do sangramento pós-operatório neste grupo de pacientes são as cirurgias de revisão, sangramento perioperatório superior ao esperado, dissecção agressiva de partes moles, sangramento gastrointestinal ou geniturinário recentes, terapia antiagregante concomitante, e doença renal avançada.[57 ]
Outras complicações locais possíveis são hematomas,[49 ] que podem levar a deiscência e infecção na ferida operatória, que muitas vezes são dramáticas nas cirurgias do tornozelo e do pé. Além disso, a trombocitopenia induzida por heparina, complicação considerada grave por aumentar os riscos de eventos trombóticos, é mais comum em pacientes cirúrgicos, com uma taxa de incidência de 0,20% a 0,36% nos pacientes tratados com HBPM.[58 ]
[59 ]
Considerações Finais
O TEV é uma das complicações do tratamento das condições do tornozelo e do pé. Embora sua incidência seja menor do que nas cirurgias de quadril e de joelho, ainda são necessários estudos robustos que avaliem fatores de risco concomitantes que atuem de forma interativa e aumentem o risco de TEV. A avaliação dos fatores de risco juntamente com o tipo de cirurgia ortopédica deve ser individualizada para embasar e focar a tromboprofilaxia em grupos de maior risco. Os estudos atualmente existentes carecem de evidências para a recomendação universal de tromboprofilaxia nas cirurgias de tornozelo e de pé.
Uma vez indicada tromboprofilaxia medicamentosa, a HBPM (mais comumente, a enoxaparina) é o anticoagulante de eleição na profilaxia de TEV nos pacientes com intervenções no tornozelo eno pé. O uso dos AOADs como agentes tromboprofiláticos nas cirurgias ortopédicas de lesões abaixo do nível do joelho ainda carece de mais estudos. No presente, apenas a rivaroxabana mostrou-se eficaz e segura, e obteve aprovação para o uso. Os demais AOADs, conforme a orientação das diretrizes até o momento, devem ser utilizados somente se houver recusa do paciente para o uso de heparina, e se houver indisponibilidade da rivaroxabana. A tromboprofilaxia deve ser mantida durante todo o período em que o paciente estiver sem apoiar o membro ou estiver imobilizado, uma vez que estes são fatores reconhecidamente de risco para a ocorrência de TEV.
Estudos futuros deverão focar no efeito de interação de outros fatores de risco concomitantes aos procedimentos ortopédicos de tornozelo e de pé no desenvolvimento de TEV, bem como na validação e no aprimoramento das ferramentas de avaliação de risco e sua automatização. Isso permitirá identificar o paciente com maior risco, e propiciará a adequada indicação de profilaxia, com redução de custos e complicações.