Palavras-chave
articulação acromioclavicular - luxações articulares - anatomia - dissecação
Introdução
A literatura sobre a anatomia e a biomecânica ligamentar da articulação acromioclavicular
(AC) é muito rica e há inúmeros trabalhos que discutem os diversos tipos de tratamento
das lesões traumáticas desta articulação, suas abordagens cirúrgicas abertas e artroscópicas,
considerando-se os ligamentos acromioclaviculares e coracoclaviculares laterais (conoide
e trapezoide). No entanto, raros são os artigos que discutem a anatomia ligamentar
medial ao processo coracoide, notadamente do ligamento coracoclavicular medial (LCCM)
e a importância desse ligamento na luxação acromioclavicular, como neste estudo anatômico.
Descrito como “Ligamento Bicorne” por apresentar dois fascículos principais em 1802
por Leopoldo Caldani,[1] o LCCM também já foi considerado um espessamento da fáscia clavipeitoral,[2] um ligamento coracocostal[3] e até mesmo já teve a sua existência negada.[4]
[5]
[6]
[7]
[8]
O LCCM forma uma faixa de fibras de cor amarelo perolada que se origina da borda medial
do processo coracoide por meio de dois fascículos (anterior e posterior), os quais
se fundem para formar o corpo ligamentar e insere-se na porção medial da clavícula.[2]
[9]
[10] Existem algumas divergências em relação à sua inserção. Alguns autores[11]
[12]
[13] dividem-na em dois fascículos (superior, na borda anterior da clavícula e inferior,
na borda esternal da primeira costela).[10] Para outros autores, a sua inserção ocorre na borda anterior da clavícula, dividida
em três expansões (superior, inferior e medial).
Recentemente foram descritas as características do LCCM em imagens de Ressonância
Nuclear Magnética.[14]
Estudamos a anatomia do LCCM com o objetivo de avaliar a sua função e verificar a
sua contribuição na estabilidade da articulação acromioclavicular nos casos de lesão
da mesma.
Material e métodos
Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da nossa instituição (número
CAAE: 12358919.0.0000.5463, e realizado no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital
(SVOC) da Universidade de São Paulo (USP).
Dissecaram-se 26 ombros de 16 cadáveres frescos adultos sem cicatrizes ou deformidades
prévias. Todas as dissecções foram feitas pelo mesmo grupo de pesquisadores, ortopedistas
especialistas em cirurgia do ombro e de forma padronizada, com o cadáver na posição
de decúbito dorsal horizontal com um coxim de 15 cm de altura na região interescapular.
Iniciou-se a dissecção com uma via deltopeitoral estendida proximal e em “L”, seguindo
horizontalmente na direção da articulação esterno clavicular ([Figura 1] - Via).
Fig. 1 Via deltopeitoral estendida.
Realizou-se dissecção por planos, desinseriram-se os músculos deltoide e peitoral
maior da face anterior da clavícula e identificou-se o ligamento coracoclavicular
medial desde a sua inserção no processo coracoide até sua inserção na extremidade
medial da clavícula; e mediram-se seu comprimento e sua largura com paquímetro milimetrado
([Figuras 2] e [3]). Realizaram-se os movimentos de retração e de protração da escápula observando-
se o efeito na tensão do ligamento. Seccionaram-se, nesta ordem, os ligamentos acromioclaviculares,
trapezóide, conóide e o ligamento coracoclavicular medial e observando-se o deslocamento
da articulação acromioclavicular tanto no sentido cefálico quanto no anteroposterior
([Figura 4]).
Fig. 2 Dissecção, identificação das estruturas e medição do LCCM (Ligamento coracoclavicular
medial); LCA: ligamento coracoacromial; C: coracóide; TC: tendão conjunto; Pm: peitoral
menor; LCCL: ligamentos coracoclaviculares laterais; AS: banda anterossuperior; PI:
banda posteroinferior.
Fig. 3 Dissecção, identificação das estruturas e medição do LCCM (Ligamento coracoclavicular
medial); LCA: ligamento coracoacromial; C: coracóide; TC: tendão conjunto; Pm: peitoral
menor; LCCL: ligamentos coracoclaviculares laterais; AS: banda anterossuperior; PI:
banda posteroinferior.
Fig. 4 Dissecção e identificação das estruturas. Clav: clavícula; A: acrômio; LCCM: Ligamento
coracoclavicular medial; LCA: ligamento coracoacromial; C: coracóide; TC: tendão conjunto;
Pm: peitoral menor.
Na primeira parte do trabalho foi realizado um estudo anatômico em 20 ombros de 10
cadáveres para avaliação da morfologia ligamentar do LCCM. Já na segunda parte foi
realizado um estudo biomecânico com seis ombros de seis cadáveres, onde foi realizado
o seccionamento sequencial dos ligamentos em seis ombros, através da tração cefálica
da clavícula, com força de tração constante de 20 N, aplicada a 1 cm da borda distal
e medida por dinamômetro. A unidade kgF é considerada equivalente à unidade Newton.
Foram marcados 3 pontos anatómicos (A,B,C) sendo o ponto A localizado a 1cm do ponto
mais medial do acrômio; o ponto B sendo 1cm do ponto mais lateral da clavícula e o
ponto C localizado na borda lateral do processo coracoide. A dissecção da articulação
AC e a transecção de seus ligamentos intrínsecos foram realizadas pela primeira vez;
depois, uma secção sequencial dos ligamentos trapezoide e conoide seguidos pelo LCCM.
A cada passo, foi aplicada uma força de tração uniforme 20 N na extremidade lateral
da clavícula, a distância vertical e horizontal entre o acrômio e a clavícula (da
borda superior do acrômio até a borda superior da clavícula distal) e a distância
vertical entre o coracoide e a clavícula (espaço coracoclavicular) e entre o acrômio
e a clavícula foi medida após cada corte, conforme descrito por Moya et al.[15]
Foi realizada análise descritiva dos dados, apresentadas através de média e desvio
padrão. As diferenças das variâncias foram verificadas por meio da Análise da Variância
(ANOVA) com medidas repetidas. Os resultados foram considerados estatisticamente significativos
aqueles cujo valor de p foi inferior a 0,05, sempre considerando hipóteses alternativas
bicaudais. As informações coletadas formaram um banco de dados desenvolvido no programa
Excel® for Windows e a análise estatística foi realizada através do software SPSS®
16.0.
Resultados
O ligamento coracoclavicular medial foi identificado e mensurado em todos os ombros
dissecados. No ombro direito, encontramos uma média de comprimento de 48,9mm (variando
de 46 a 53mm) e uma média de largura de 18,3mm (variando de 17 a 20mm). No ombro esquerdo
encontramos uma média de comprimento de 48,65mm (variando de 45,5 a 52,5mm) e uma
média de largura de 17,3mm (variando de 16 a 18mm). O resultado da análise estatística
está descrito na [Tabela 1].
Tabela 1
|
Média
|
Desvio Padrão
|
Variância
|
|
Comprimento LCCMedial D
|
48,90mm
|
2,438
|
5,933
|
|
Comprimento LCCMedial E
|
48,65mm
|
2,7262
|
7,432
|
|
Largura LCCMedial D
|
18,30mm
|
0,949
|
0,900
|
|
Largura LCCMedial E
|
17,30mm
|
0,949
|
0,900
|
Dividiu-se o LCCM em três segmentos: origem, corpo e inserção. A origem deste ligamento
situa-se na borda medial do processo coracoide, medial e posterior à inserção do músculo
peitoral menor e distal à origem dos ligamentos conoide e trapezoide. O LCCM é bifurcado
em sua origem e possui dois fascículos, um anterior e outro posterior, os quais se
fundem para formar o corpo ligamentar, de cor amarelo perolada e consistência fibro-elástica,
que corre anteriormente ao músculo subclávio. A sua inserção situa-se na borda ântero-inferior
da clavícula medial, em uma topografia que, devido à grande quantidade de aponeurose,
dificulta o seu isolamento.
Durante o movimento de protração da escápula houve o relaxamento do LCCM e durante
o movimento de retração das escápulas ocorreu o tensionamento deste ligamento.
Em seis dessas amostras, seccionaram-se, nesta ordem, os ligamentos acromioclaviculares,
trapezoide, conoide e o LCCM, observando-se o deslocamento superior da articulação
acromioclavicular e posteriorização da escápula. Uma força cefálica de 20 N foi aplicada
na clavícula lateral com o uso dinamômetro analógico portátil, registrando a distância
da AC e o espaço coracoclavicular e sua variação. Avaliamos também o movimento anteroposterior
da clavícula seguindo a seção MCCL. Todos do sexo masculino (100%). O lado direito
foi observado em 66,7% dos casos. O IMC médio foi de 23,8, com desvio padrão de 5,6,
variando entre 12,5 e 32,0. A média de idade encontrada foi de 67 anos, com desvio
padrão de 9,5, variando entre 58 e 84 anos ([Tabela 2]).
Tabela 2
|
Cad
|
Altura
|
Idade
|
Lado
|
Distancia Acromio Clavicular
|
Distancia Acromio Clavicula Posterior
|
Distancia Coracoide Clavicula
|
|
1
|
2
|
3
|
4
|
1
|
2
|
3
|
4
|
1
|
2
|
3
|
4
|
|
1
|
1,85
|
68.
|
D
|
0,8
|
1,6
|
2,5
|
3,0
|
2,0
|
2,9
|
3,1
|
3,2
|
3,4
|
4,0
|
5,2
|
5,7
|
|
2
|
1,75
|
70.
|
D
|
0,6
|
1,4
|
3,0
|
3,4
|
2,2
|
2,3
|
3,8
|
4,5
|
3,0
|
3,5
|
4,8
|
5,5
|
|
3
|
1,65
|
64.
|
D
|
0,9
|
1,4
|
2,2
|
2,7
|
2,2
|
2,5
|
2,7
|
3,5
|
3,3
|
3,8
|
4,5
|
5,0
|
|
4
|
1,87
|
58.
|
D
|
0,6
|
1,7
|
2,6
|
2,9
|
2,8
|
4,0
|
4,5
|
4,6
|
3,3
|
4,3
|
5,3
|
5,5
|
|
5
|
1,53
|
59.
|
E
|
1,0
|
2,1
|
3,2
|
3,9
|
1,8
|
2,5
|
3,9
|
4,3
|
3,5
|
4,0
|
5,0
|
5,8
|
|
6
|
1,70
|
84.
|
E
|
0,2
|
1,2
|
2,1
|
2,2
|
3,6
|
5,1
|
5,1
|
5,2
|
2,8
|
4,0
|
5,0
|
5,4
|
Avaliamos o deslocamento superior através das distancias AB (acrômio-clavicula) e
BC (coracoide-clavícula); deslocamento posterior através da distancia AB (acrômio-clavicula)
posterior. Ao medir o deslocamento da clavícula no ponto AB superior, no ponto AB
posterior e no ponto BC em quatro momentos distintos (sem lesão dos ligamentos acromioclaviculares
[AC] e coracoclaviculares [CC]), lesão AC, lesão AC + CC e lesão AC + CC + LCCM ([Figuras 5] e [6]), observou-se, em todos os pontos de medicação, um aumento significativo do deslocamento,
com significância estatística, conforme [Tabela 3] abaixo:
Fig. 5 Pontos A,B e C demarcados.
Fig. 6 Realização de tração de 20N após secção dos ligamentos.
Tabela 3
|
Sem Lesao
|
Lesao AC
|
Lesao CC
|
Lesao CCM
|
p
|
|
Media ± DP
|
Media ± DP
|
Media ± DP
|
Media ± DP
|
|
|
Distancia AB
|
0,7 ± 0,3
|
1,6 ± 0,3
|
2,6 ± 0,4
|
3,0 ± 0,6
|
<0,001
|
|
Distancia AB Post
|
2,4 ± 0,7
|
3,2 ± 1,1
|
3,9 ± 0,9
|
4,2 ± 0,7
|
0,009
|
|
Distancia BC
|
3,2 ± 0,3
|
3,9 ± 0,3
|
5,0 ± 0,3
|
5,5 ± 0,3
|
<0,001
|
A distância média acrômio-clavícula (AB) passou de 0,7cm sem lesão a 3,0cm após secção
de todos os ligamentos inclusive LCCM. Já a distância coracoide-clavícula (BC) média
passou de 3,2cm sem lesão para 5,5cm com toda secção ligamentar, com p < 0,001.
Com a secção ligamentar observamos um desvio posterior da escápula que se exacerbou
após secção do LCCM.
Discussão
O ligamento coracoclavicular medial, também denominado ligamento coracoclavicular
anterior de Henle e ligamento coracoclavicular horizontal de Soulié[1]
[10]
[12]
[13]
[14] é motivo de controvérsias e há até autores que não o citam na anatomia ligamentar
do coracoide.[16] Klassen et al.[8] não o encontraram nas suas dissecções; Rouvière[2]; Vallois e Thomas[13] não o consideraram uma estrutura própria, mas um espessamento de estruturas vizinhas,
isto é, um cordão da fáscia clavipeitoral.[17] Terra et al.[18] descrevem o ligamento coracoclavicular medial como uma variação anatômica do ligamento
conoide.
Poitevin et al.,[10] descreveram a presença do LCCM em cem por cento dos ombros estudados (15 adultos
e 8 fetos). Para estes autores o LCCM tem sua origem no processo coracoide, dividido
em dois fascículos e sua inserção na clavícula medial, dividida em três expansões
(superior, inferior e medial).
O LCCM também já foi objeto de estudo por imagem de ressonância magnética e visibilizado
em toda sua extensão, desde a sua origem no processo coracoide até a sua inserção
na clavícula medial, com a descrição imaginológica de suas características anatômicas.[14]
Stimec et al.[12] descreveram o ligamento a partir da dissecção de um espécime de cadáver do sexo
feminino de 92 anos de idade. Os autores ressecaram o ligamento para sua mensuração
e análise histológica e confirmaram a sua natureza ligamentar, a sua estrutura e a
disposição das fibras colágenas, pareadas e rodeadas por uma fina camada de tecido
conjuntivo rico em vascularização, à semelhança do ligamento conoide.
Ao iniciarmos os nossos estudos do LCCM verificamos existir pouquíssima literatura
atual e que Poitevin et al.,[10] Moyá et al.[15] e Azulay et al.[14] apresentavam estudos recentes. Procuramos utilizar metodologia semelhante pois assim
poderíamos confrontar nossos resultados, discutir, concordar e ou discordar de suas
conclusões. Em nossas descrições os valores absolutos encontrados para aferição do
comprimento ligamentar foi semelhante ao encontrado por outros autores em suas dissecções.
Em nosso estudo, o LCCM foi encontrado em todas as dissecções, de forma bilateralmente,
assim como descrito por outros autores. Observou- se que a sua inserção na clavícula
medial se situa na porção ântero-inferior deste osso, porém é cercada de aponeuroses
que podem ser confundidas com ramificações ou expansões deste ligamento. Observou-se
ainda que este apresenta íntimo contato com o músculo subclávio, achado que poderia
levar à conclusão de que seria resultado de uma metaplasia muscular escápulo-torácica,
tal como descrito por Luk et al.[19] No entanto, descartamos esta hipótese posto que este ligamento foi descrito em dissecções
de fetos humanos.[10] Moya et al.[15] sugerem que o LCCM é uma estrutura constante com características mecânicas de um
ligamento que pode atuar como a última restrição do espaço coracoclavicular tanto
em direção cefálica quanto posterior, impedindo um deslocamento adicional na ausência
dos ligamentos coracoclaviculares laterais.
Como o estudo é realizado no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital em cadáveres
frescos e não em peças anatômicas como Moya et al.[15] optamos por posicionar o cadáver na posição de decúbito dorsal horizontal com um
coxim de 15 cm de altura na região interescapular pois nesta posição o ombro esta
livre e não mantem contato com a mesa de dissecção com isso tem-se uma melhor avaliação
das articulações envolvidas após secção ligamentar progressiva.
Observou-se neste estudo o relaxamento do LCCM durante a protração escapular ipsilateral
e o tensionamento deste ligamento durante a retração escapular, levando-nos a levantar
a hipótese de que o LCCM apresenta uma função de um estabilizador horizontal secundário
da articulação acromioclavicular. Reforça esta hipótese a observação de que, após
a secção, nesta ordem, dos ligamentos acromioclaviculares, trapezoide e conoide, e
mantendo o cadáver com um coxim interescapular e os ombros suspensos, a excisão do
LCCM na sua origem no processo coracoide promove um aumento significativo da distância
acromioclavicular, com significância estatística.
Constatamos também que ao seccionar todos os ligamentos que unem a escápula a clavícula
o membro superior fica totalmente sujeito as forças gravitacionais, isto é, a escápula
inferioriza em relação a clavícula, criando uma imagem semelhante de um paciente em
ortostase com luxação acromioclavicular estágio 5 de Rockwood.[16] Estas observações permitem-nos supor que a lesão do LCCM ocorra nos estágios 4 e
5 da classificação de Rockwood para as luxações acromioclaviculares.
Entendemos que o conhecimento das estruturas ligamentares mediais ao processo coracoide
podem contribuir para o entendimento das lesões traumáticas acromioclaviculares, assim
como pode ser de grande valia nas abordagens cirúrgicas que necessitem de dissecção
das partes moles inseridas no processo coracoide, como as transferências musculares,
as cirurgias de Bristow e Latarjet e as descompressões na síndrome do desfiladeiro
torácico.
A existência do LCCM como estrutura anatômica está bem estabelecida. No entanto acreditamos
que, novos estudos biomecânicos e de imagem podem esclarecer ainda mais sua função
estabilizadora da articulação acromioclavicular.
Uma das deficiências ou limitação do nosso estudo é que este foi realizado em cadáveres
com o dorso elevado em somente 15 graus. O ideal seria com maior flexão do corpo para
melhor avaliação da articulação acromioclavicular com auxílio da força gravitacional
e ortostatismo. Outra limitação é o pequeno número de espécimes. No entanto, nossos
achados são importantes para o conhecimento das estruturas envolvidas na luxação acromioclavicular
e a função do LCCM na estabilidade dessa articulação. São necessários estudos que
avaliem clinicamente a importância desse ligamento, correlacionando o exame clinico,
radiográfico e com a ressonância nuclear magnética.
Conclusão
O ligamento coracoclavicular medial é uma estrutura ligamentar verdadeira, presente
em todos os ombros dissecados. Encontra-se relaxado com a escápula em protração e
tenso com a escápula em retração e participa tanto da estabilidade vertical e quanto
da estabilidade horizontal da articulação acromioclavicular.