Palavras-chave
futebol - genu valgum - genu varum - pelve
Introdução
No alto rendimento, o futebol é uma modalidade esportiva com complexidade física, que exige dos atletas uma disputa intensa que predispõe a lesões, principalmente nos membros inferiores.[1] Existem inúmeros fatores srelacionados ao surgimento das lesões sem contato, como: idade, sexo, morfologia corporal, força muscular, flexibilidade e estabilidade, e alinhamento articular.[2] Das alterações de alinhamento articular dinâmico, o joelho valgo ou varo é o que apresenta maior relação com o risco de lesão, pois um mau alinhamento dos membros inferiores aumenta a carga imposta na articulação, sendo papel dos profissionais da saúde do atleta identificarem e atuarem para minimizar este fator de risco.[3]
[4]
A presença de um valgismo excessivo, durante os movimentos da corrida, gera uma tensão crônica sobre as estruturas ligamentares da parte medial do joelho e uma rigidez anormal no trato iliotibial, assim como o joelho em varo aumenta a carga imposta no complexo ligamentar lateral.[5] A cinemática dos membros inferiores está diretamente relacionada com a cintura pélvica, na qual o enfraquecimento dos músculos da região pélvica, como abdutores e rotadores externos do quadril, e o retardo no tempo de ativação da musculatura do quadril podem refletir em um desalinhamento dinâmico do joelho.[6]
[7]
[8] Estudos demonstram que indivíduos com fraqueza dos músculos da região pélvica têm maior tendência ao desenvolvimento da dor patelofemoral,[9]
[10] e, além disso, o desalinhamento dinâmico do joelho está relacionado com a incidência de lesões mais graves, que afastam os atletas por longos períodos de suas atividades, como lesões ligamentares no tornozelo e rupturas do ligamento cruzado anterior no joelho.[11]
[12]
[13]
Apesar de haver uma tendência de se generalizar a fraqueza de músculos da região pélvica com lesões de membros inferiores, outros fatores, como sexo, devem ser observados.[14] De forma mais específica, entre os atletas submetidos ao mesmo nível de atividade, a população feminina é mais suscetível e apresenta maior incidência de lesões esportivas, sobretudo as lesões mais graves, isto por apresentar menor estabilidade geral, menor força muscular, e hipermobilidade articular devido a fatores hormonais, o que pode potencializar uma alteração biomecânica mais acentuada durante o movimento neste sexo.[11]
[12]
[15]
[16]
[17] As mulheres apresentam um aumento do ângulo de adução e rotação medial do quadril, devido à presença de fraqueza dos músculos abdutores e rotadores laterais do quadril, o que suscita a hipótese de um maior desalinhamento dinâmico do joelho e um menor controle do movimento quando comparadas ao sexo masculino já na adolescência, o que necessitaria de uma maior atenção em relação ao risco de novas lesões.[16]
Sendo assim, o presente estudo tem por objetivo comparar a relação entre o alinhamento do joelho no plano frontal e o equilíbrio pélvico durante o teste da descida de um degrau entre atletas de categorias de base do futebol feminino e masculino.
Materiais e Métodos
Participantes
Foi realizado um estudo transversal com atletas de categorias de base de um clube de futebol profissional do Sul do Brasil. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Católica de Pelotas (parecer: 1.759.216), e os participantes e seus responsáveis assinaram, respectivamente, o termo de assentimento de menor e o termo de consentimento livre e esclarecido. A amostra foi selecionada por conveniência, e todos os atletas das categorias de base (sub-17 e sub-15) do clube de ambos os sexos foram convidados a participar do estudo. Foram incluídos os atletas que estivessem fazendo parte da equipe de futebol do clube durante a temporada, e, como critérios de exclusão, foram definidos: atletas que tivessem realizado cirurgia em membros inferiores nos últimos seis meses, que estivessem afastados por lesão durante o período de coleta, que sentissem dor na realização do teste, que apresentassem discrepância de membros inferiores, ou, ainda, que não conseguissem realizar o teste sem compensações posturais exacerbadas.
A abordagem inicial contou com 68 termos entregues, mas não houve o retorno de 22 atletas, sendo considerados perda. Outros 8 atletas foram excluídos do estudo: 1, por desistência durante o teste; 3, por dor no joelho; e 4, por não conseguirem realizar o movimento de descida sem exageradas compensações posturais, pois apresentavam uma flexão de tronco excessiva que encobria completamente os marcadores posicionados no quadril, potencializando a chance de erro na análise; dessa forma, a amostra final totalizou 38 atletas, 19 do sexo masculino e 19 do sexo feminino.
Procedimentos
Os pesquisadores foram previamente treinados e capacitados em localizar e demarcar os pontos de referência para a análise, sendo realizado um estudo piloto com dois voluntários para a adequação ao método. Todas as demarcações e mensurações via software foram realizadas por um único avaliador para manter uma padronização de critérios.
Discrepância dos membros inferiores e dor
Foi avaliada a discrepância dos membros inferiores, com os atletas em decúbito dorsal, e foram demarcados dois pontos, um na espinha ilíaca anterossuperior, e o outro no maléolo medial, sendo considerado teste positivo uma diferença ≥ 1 cm entre os membros. Para se avaliar a dor no atleta, foi utilizada a escala visual analógica (EVA) da dor, que apresenta variações de 0 a 10, sendo 0 ausência de dor, e 10, dor máxima.[18]
Drop pélvico e alinhamento dinâmico do joelho
O drop pélvico (queda unilateral da pelve) e o ângulo de projeção no plano frontal (APPF) do joelho foram avaliados durante a realização do teste de descida de um degrau, por filmagens capturadas em 2D, com uma câmera (AFC 183 14 megapixels, Kodak, Rochester, NY, EUA) que estava situada a 2 m de distância do atleta, fixada a um tripé na altura de 60 cm. Para melhor avaliação da filmagem, foram demarcados com adesivos colantes não reflexivos pontos fundamentais: espinhas ilíacas anterossuperiores, ponto médio entre os epicôndilos femorais, e o ponto médio entre os maléolos.[7] Os registros do estudo foram inseridos no software Kinovea (código aberto), versão 0.8.24, que permite uma análise angular em movimento. Considerou-se o drop pélvico quando um dos demarcadores do quadril, contralateral ao membro examinado, teve seu curso direcionado inferiormente, ou seja, havendo uma queda unilateral da pelve, que normalmente ocorre por fraqueza da musculatura do glúteo médio da perna de apoio ([Figura 1]); e considerou-se o desalinhamento em valgo quando o marcador do joelho aumentou seu curso medialmente (valores angulares negativos em relação à linha média), e, em varo, quando ocorreu o aumento lateralmente em relação aos marcadores distais (valores angulares positivos em relação à linha média) ([Figura 2]).
Fig. 1 Avaliação do drop pélvico durante a realização do teste de descida de um degrau em atletas de futebol de base (software Kinovea, versão 0.8.24).
Fig. 2 Avaliação do ângulo de projeção no plano frontal (APPF) do joelho durante a realização do teste de descida de um degrau em atletas de futebol de base (software Kinovea, versão 0.8.24).
A altura do degrau foi padronizada em 16 cm, e os atletas foram orientados a permanecer a uma distância anterior de 15 cm do degrau. Posteriormente, solicitou-se que eles subissem no degrau e permanecessem o mais relaxados possível por 10 segundos para que se pudesse capturar uma imagem no plano frontal no momento inicial do teste; em seguida, eles foram orientados a descer, tocando o calcanhar no solo a 5 cm à frente do degrau, em marcações previamente realizadas. Anteriormente à realização do teste, os atletas fizeram três rodadas de ensaio para adaptação ao movimento, e, após este período, considerou-se para análise a média entre cinco testes consecutivos, sendo analisado o membro de apoio durante o movimento.[6]
Análise Estatística
A análise dos ângulos foi realizada com o software Kinovea, e as análises descritivas foram apresentadas na forma de médias e desvios padrão. Foi realizado o teste de Shapiro-Wilk para verificar a distribuição dos dados. Para análise comparativa das médias do drop pélvico e do APPF do joelho entre os atletas dos diferentes sexos, foi utilizado o teste t de Student para amostras independentes, e o nível de significância adotado foi de 5%. Para analisar a associação entre o drop pélvico e o APPF do joelho foi utilizada a correlação de Pearson. Os valores de r foram, assim, interpretados em relação à associação: r = 0 a 0,19, nenhuma; 0,2 a 0,39, baixa; 04 a 0,69, moderada; 0,7 a 0,89, alta; e 0,9 a 1,0, forte. Para todas as análises estatísticas, foi utilizado o programa STATA (StataCorp, College Station, TX, EUA), versão 12.2.
Resultados
As características da amostra estão presentes na [Tabela 1], na qual se pode observar uma disparidade quando comparados os atletas do sexo masculino e feminino em relação ao tempo de prática de futebol, destacando que 89,5% dos homens realizavam a prática de futebol havia 5 anos ou mais, e apenas 5,3% das mulheres tinham o mesmo tempo de prática.
Tabela 1
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Sexo
|
Sub-15
|
Sub-17
|
Geral
|
Média (desvio padrão) de idade (anos)
|
Masc
|
15 (0,00)
|
16,6 (0,51)
|
16,4 (0,69)
|
|
Fem
|
14,5 (1,07)
|
17 (0,00)
|
15,9 (1,43)
|
Tempo de prática
|
|
|
|
|
Menos de 1 ano
|
Masc
|
0%
|
0%
|
0%
|
|
Fem
|
50%
|
27,3%
|
36,8%
|
1 ano
|
Masc
|
0%
|
5,9%
|
5,25%
|
|
Fem
|
12,5%
|
18,2%
|
15,8%
|
2 anos
|
Masc
|
0%
|
0%
|
0%
|
|
Fem
|
25%
|
36,3%
|
31,6%
|
3 anos
|
Masc
|
0%
|
5,9%
|
5,25%
|
|
Fem
|
12,5%
|
9,1%
|
10,5%
|
5 anos ou mais
|
Masc
|
100%
|
88,2%
|
89,5%
|
|
Fem
|
0%
|
9,1%
|
5,3%
|
Prática de futebol orientada
|
|
|
|
|
1 vez por semana
|
Masc
|
0%
|
0%
|
0%
|
|
Fem
|
37,5%
|
18,2%
|
26,3%
|
3 vezes por semana
|
Masc
|
50%
|
35,3%
|
36,8%
|
|
Fem
|
50%
|
54,5%
|
52,6%
|
Mais de 3 vezes por semana
|
Masc
|
50%
|
64,7%
|
63,2%
|
|
Fem
|
12,5%
|
27,3%
|
21,1%
|
A [Tabela 2] apresenta a comparação entre os sexos com relação às médias do drop pélvico e do APPF do joelho no teste de descida de um degrau. Apesar de não haver diferença significativa no drop pélvico, observou-se que as atletas do sexo feminino tinham em na média uma maior angulação em varo durante a descida (p = 0,04).
Tabela 2
|
|
Masculino
|
|
|
Feminino
|
|
|
|
N
|
Média
|
Desvio padrão
|
N
|
Média
|
Desvio padrão
|
Valor de p
|
APPF (graus)
|
19
|
3,91
|
2,00
|
19
|
9,42
|
1,65
|
0,04*
|
Drop pélvico (cm)
|
19
|
9,00
|
3,02
|
19
|
9,67
|
3,25
|
0,51
|
A [Tabela 3] indica que a associação da queda da pelve com o ângulo do joelho em varo é fraca em ambos os sexos, não sendo o principal fator para este desalinhamento da articulação nesta amostra de jovens atletas.
Tabela 3
|
Valor de r*
|
Valor de p
|
Geral (N = 38)
|
0,34
|
0,13
|
Masculino (N = 19)
|
0,31
|
0,19
|
Feminino (N = 19)
|
0,35
|
0,14
|
Discussão
O principal achado deste estudo foi que as jovens atletas de futebol do sexo feminino tiveram um menor alinhamento do joelho no plano frontal (desvio em varo) durante o teste de descida de um degrau. Além disso, a queda da pelve ocorreu tanto no sexo masculino quanto no feminino, mas esse não parece ter sido o fator principal relacionado com este desalinhamento.
Apesar de normalmente a fraqueza da musculatura pélvica estar associada com uma compensação dinâmica em valgo, atletas de futebol, como a amostra deste estudo, tendem ao varo de forma mais acentuada.[19] O varo se caracteriza pela abdução de quadril e rotação lateral do joelho, e, especialmente no futebol, se observa que é comum que haja uma alteração no padrão postural nos joelhos dos atletas, que apresentam-se em varo, devido à maior utilização das cadeias de abdução e flexão de quadril de acordo com o gesto esportivo específico.[7]
[20]
O presente estudo avaliou o drop pélvico e o alinhamento do joelho no plano frontal de atletas adolescentes de ambos os sexos de forma dinâmica, durante um teste de descida de um degrau. Atividades com descarga de peso em cadeia cinética fechada têm força resultante de reação do solo medialmente à articulação do joelho, ocasionando um possível desalinhamento na articulação, o qual é resistido primariamente pelos ligamentos colaterais e a musculatura envolvida.[21] De fato, o desalinhamento de membros inferiores existe no esporte,[22] e parece que a população feminina, por menor estabilidade articular e maior fraqueza na musculatura da cintura pélvica, é a que apresenta maiores variações angulares no plano frontal,[9]
[23]
[24] apesar de existirem outros fatores que precisam ser analisados.[7]
[25] Durante a desaceleração dos movimentos esportivos, as mulheres apresentam menores ângulos de flexão do joelho no contato inicial com o solo, por apresentarem biomecanicamente uma diminuição dos ângulos de flexão do quadril.[3] Os músculos que circundam a articulação do quadril desempenham um papel fundamental na estabilização durante o movimento, principalmente do alinhamento dinâmico do joelho no plano frontal,[26] e essa fraqueza pode tornar as mulheres mais susceptíveis a lesões no esporte, principalmente lesões mais graves, como nos ligamentos da articulação do joelho.[10]
[12]
[14]
[27]
[28]
Fortalecer a musculatura do tronco, da pelve e do quadril pode aumentar a estabilidade e diminuir o desalinhamento do joelho durante o teste de descida do degrau,[6] e, de forma geral, isso envolve toda a cinemática do membro inferior.[29]
[30] Além da força muscular, uma maior amplitude de movimento também parece ser um fator importante. Um estudo com 39 mulheres jovens atletas de futebol mostrou uma correlação inversa entre amplitude de movimento do quadril e alinhamento do joelho, ou seja, quanto menor a amplitude de movimento do quadril, maior o desalinhamento no plano frontal,[20] e parece que a estabilidade da cintura pélvica é mais complexa do que apenas a análise de sua queda durante o movimento.
Além de maior controle da musculatura pélvica e do tronco, programas e instruções de controle de alinhamento do joelho durante o movimento podem diminuir a dor e melhorar o desempenho funcional, principalmente no sexo feminino.[10] Em um estudo[31] realizado com 22 atletas, avaliou-se durante a aterrissagem unipodal que as mulheres apresentaram uma maior ativação eletromiográfica do quadríceps e menor ativação do glúteo máximo quando comparadas aos homens, ou seja, o aumento da atividade do quadríceps, quando combinada à redução da atividade do glúteo, pode contribuir para a alteração da absorção de energia durante a aterrissagem, sobrecarregando outros grupos musculares dos membros inferiores e aumentando o risco de lesões.[31] Programas orientados por profissionais capacitados podem melhorar a ativação de musculaturas específicas, melhorando a razão quadríceps–isquiotibiais, a musculatura adutora e abdutora do quadril, e são importantes para a estabilidade e o alinhamento da articulação, além de beneficiar os atletas de futebol, principalmente do sexo feminino.[17]
Vale ainda ressaltar que, além das diferenças fisiológicas entre os sexos, com a população feminina tendo maior desalinhamento dinâmico do joelho por menor força muscular, maior alargamento de pelve, maior frouxidão ligamentar, e sendo mais suscetíveis a lesões esportivas do que os homens, é lógico que o treinamento da modalidade esportiva em longo prazo é um fator que facilita a execução adequada do gesto esportivo, com economia de energia, o que pode proteger o atleta em relação às lesões. Se tratando de futebol em uma população de adolescentes, é comum que os atletas do sexo masculino pratiquem o esporte há mais tempo e com maior frequência, como mostram nossos resultados, com o tempo de prática dos meninos em quase 90% da amostra sendo superior a 5 anos, ao passo que apenas 5% das meninas tinham esse tempo de prática, o que potencializa o cuidado clínico com prevenção de lesões no sexo feminino já nas atletas jovens.
Apesar de o presente estudo ser do tipo transversal, o que pode limitar as conclusões sobre a causa e o efeito do alinhamento do joelho, acreditamos que, para a prática clínica, é essencial que os profissionais da área da saúde que atuem no meio esportivo tenham capacidade de identificar desalinhamentos dinâmicos, e atuem com protocolos específicos de prevenção de lesão já em atletas de base, com uma atenção especial para a população feminina, cuja fisiologia e biomecânica predispõem a uma maior incidência e gravidade das lesões.
Conclusão
Apesar de ambos os sexos terem apresentado queda pélvica, as atletas de base do sexo feminino apresentaram maior angulação do joelho em varo no teste de descida do degrau, necessitando maior atenção para minimizar o risco de lesão.