Palavras-chave
artroplastia do joelho - osteoartrite do joelho - patela
Introdução
A artroplastia total de joelho (ATJ) é uma cirurgia de eficácia clínica comprovada[1]
[2]
[3]
[4] associada a substancial melhora funcional e na qualidade de vida em indivíduos portadores
de gonartrose.[5]
[6]
A primeira prótese total do joelho (PTJ) moderna foi desenvolvida pelo ortopedista
canadense Frank Guston em 1960, sendo posteriormente aprimorada por John Insall nos
anos 70, com o componente patelar apresentado por Townley e Insall em 1972.[7] A introdução do componente patelar nas ATJ reduziu a ocorrência de dor anterior
no joelho; no entanto, trouxe consigo novas complicações como a falha do componente,
instabilidade, fratura patelar, ruptura tendínea do mecanismo extensor, necrose avascular
da patela e outras lesões de tecidos moles.[8] Ainda que essas complicações tenham sido atribuídas à má técnica cirúrgica e ao
posicionamento inadequado do implante, o medo de sustentá-las tornou proibitiva a
adoção da substituição da patela como rotina.[8]
Com o passar dos anos, houve um aprimoramento das técnicas cirúrgicas, as quais, associadas
à evolução dos implantes, geraram significativa redução na ocorrência de complicações
nas artroplastias patelares, dividindo os cirurgiões no que diz respeito à rotina
por eles adotada frente à sua realização.[9] Alguns autores sugerem realizar a substituição da patela rotineiramente devido à
melhora da dor, melhores escores funcionais, maior satisfação do paciente e menor
taxa de reintervenção por persistência da dor.[10] Outros defendem a preservação da patela como rotina, por conta do risco das complicações,
e apontam ainda como vantagem a manutenção do estoque ósseo da patela e taxas de satisfação
e função similares.[11]
[12]
[13] Adicionalmente, ainda há aqueles que defendem a substituição patelar em casos selecionados
e acreditam que a realização de rotina não é sustentada pela literatura.[14]
O presente estudo tem como objetivo avaliar funcionalmente indivíduos submetidos a
ATJ primária do joelho com a substituição da superfície articular da patela e compará-los
a indivíduos em quem a superfície articular da patela foi preservada.
Materiais e Métodos
Um total de 191 pacientes submetidos a ATJ primária de janeiro de 2012 a dezembro
de 2014 por gonartrose primária foram inicialmente selecionados em nosso banco de
dados para participarem do estudo. Todos tinham pelo menos 5 anos de seguimento, usaram
o mesmo implante (Advance Medial-Pivot Knee System, Microport Orthopaedics, Arlington,
TN, EUA) e foram operados por dois experientes cirurgiões de um hospital de referência
em ensino ortopédico. Após a análise de prontuários, foram excluídos 33 pacientes,
7 por óbitos, 2 que estavam impossibilitados por comorbidades não relacionadas à ATJ,
e 24 por abandono de seguimento. Nenhum paciente se encaixou no critério de exclusão
referente à presença de complicações com grande prejuízo funcional. Por fim, 158 pacientes
foram incluídos no estudo, 4 dos quais submetidos a ATJ bilateral em diferentes anos;
dentre esses, 2 tiveram um joelho submetido a artroplastia patelar e 1 cuja patela
foi preservada;1 teve a patela de ambos joelhos preservadas e outro teve ambas submetidas
a artroplastia. Nesses casos, ambos os joelhos foram avaliados separadamente. A amostra
final constou de 162 joelhos. Em 81 joelhos, a patela foi substituída, e em 81 joelhos
a superfície articular da patela foi preservada.
Os joelhos foram divididos em dois grupos: aqueles nos quais foi realizada a substituição
da patela durante a ATJ e os nos quais a superfície articular da patela foi preservada.
A substituição da patela foi indicada de maneira seletiva, sendo realizada na presença
de artrose femoropatelar moderada e grave, mediante avaliação macroscópica no transoperatório;
apenas patelas com superfície articular em boas condições foram preservadas.
Todos os pacientes foram contatados através de ligação telefônica realizada por um
dos autores (de Campos Júnior L. R.) e responderam aos questionários de Lequesne[15] e Western Ontario and McMaster Universities (WOMAC),[16] este último com suas subdivisões. Durante o contato, os indivíduos foram convidados
a participar do estudo e após a concordância a ligação era continuada.
Os pacientes que aceitaram participar do estudo assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE), sendo o estudo previamente aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da instituição.
Análise Estatística
As variáveis quantitativas foram descritas por média e desvio padrão (DP) ou mediana
e amplitude interquartílica. As variáveis categóricas foram descritas por frequências
absolutas e relativas. Para comparar médias, o teste t de Student foi aplicado, sendo
que em caso de assimetria aplicou-se o teste de Mann-Whitney, e na comparação de proporções
fez-se valer do teste qui-quadrado de Pearson. O nível de significância adotado foi
de 5% (p < 0,05), e as análises foram realizadas no programa IBM SPSS Statistics for
Windows, versão 25.0 (IBM Corp. Armonk, NY, EUA).
Resultados
Dentre os pacientes, 46 pertenciam ao sexo masculino e 112 ao sexo feminino; os grupos
de estudo são homogêneos tanto na distribuição dos gêneros quanto no que diz respeito
ao número de joelhos ([Tabela 1]). Também houve homogeneidade no que se refere à idade dos pacientes no ano em que
a cirurgia foi realizada, na data da aplicação dos questionários, assim como no intervalo
entre elas ([Tabela 2]).
Tabela 1
|
Masculino
|
Feminino
|
Total
|
|
Preservação da Patela
Artroplastia Patelar
|
23
24
|
58
57
|
81
81
|
|
47
|
115
|
162
|
Tabela 2
|
Variáveis
|
Sem substituição da patela[*]
|
Com substituição da patela[*]
|
valor-p
**
|
|
Idade na cirurgia (anos)
|
71,9 ± 9,5
|
71,3 ± 6,3
|
0,614
|
|
Idade na coleta (anos)
|
77,9 ± 9,8
|
77,2 ± 6,4
|
0,595
|
|
Seguimento (anos)
|
5,9 ± 0,7
|
5,9 ± 0,8
|
0,918
|
Em relação ao escore de Lequesne, o grupo que teve a patela preservada obteve mediana
de 3,5 pontos, e o que teve a patela substituída obteve mediana de 2,5 pontos, diferença
que não se mostrou suficiente para gerar significância ([Tabela 3]).
Tabela 3
|
Escores
|
Sem substituição da patela
|
Com substituição da patella
|
valor-p
**
|
|
mediana (P25-P75)
|
mediana (P25-P75)
|
|
Lequesne
WOMAC
|
3,5 (0,5–7)
|
2,5 (0,5–7)
|
0,585
|
|
Dor
|
0 (0–2)
|
0 (0–1)
|
0,036[**]
|
|
Rigidez
|
0 (0–0)
|
0 (0–0)
|
0,796
|
|
Atividade Física
|
7 (1–12,5)
|
5 (0–9)
|
0,190
|
|
Total
|
8 (2–15)
|
5 (0,5–11,5)
|
0,169
|
Ao se analisar a escala de WOMAC, nas 3 áreas avaliadas (dor, rigidez e dificuldade
para realização das atividades diárias/física) e escore global, observou-se diferença
significativa apenas quanto ao quesito dor, cuja pontuação foi maior no grupo que
teve a patela preservada ([Tabela 3] e [Figura 1]). Não houve diferença significativa nos escores da avaliação da rigidez articular
entre os grupos ([Tabela 3]). Embora não tenha se evidenciado diferença significativa quanto ao escore das dificuldades
na realização das atividades de vida diária/capacidade física (p = 0,190) e o escore
global (p = 0,169), observa-se pela mediana, P25 e P75 a presença de escores pouco
maiores entre pacientes que tiveram a patela preservada ([Tabela 3] e [Figuras 2] e [3]). Devido ao fato dos escores serem expressos por números naturais, alguns deles
apresentaram mediana igual a zero, o que decorre da maioria dos indivíduos ter obtido
tal pontuação na área analisadas.
Fig. 1 Escore de WOMAC quanto à dor.
Fig. 2 Escore de WOMAC quanto à dificuldade nas atividades da vida diária.
Fig. 3 Escore WOMAC global.
Três pacientes apresentaram complicações no decorrer do estudo: dois tiveram deiscência
da ferida operatória, sendo que um havia sido submetido a artroplastia patelar e outro
teve a patela preservada. Ambos foram submetidos a desbridamento cirúrgico e tratamento
com antibióticos com boa evolução; o outro teve infecção periprotética precoce, sendo
submetido a novo procedimento cirúrgico para troca do polietileno, lavagem e desbridamento,
e tratamento com antibioticoterapia. Uma paciente excluída por abandono do seguimento
teve infecção tardia no joelho, sendo submetida à amputação do membro.
Discussão
Ao longo dos anos, foram realizados diversos estudos visando avaliar a diferença de
desfecho entre a realização ou não da artroplastia patelar. Dentre os mais recentes,
Ha et al.[17] realizaram o primeiro estudo prospectivo randomizado em que os pacientes tiveram
um dos joelhos submetidos a ATJ com artroplastia patelar e outro com preservação no
mesmo momento cirúrgico e usando o mesmo modelo de implante. Após 5 anos de seguimento,
60 pacientes (120 joelhos) foram reavaliados, e os autores constataram que os joelhos
submetidos a artroplastia patelar apresentaram menor dor na face anterior (p < 0,001)
e menor incidência de crepitação patelar (p < 0,001). Ambos os joelhos apresentaram
melhora funcional; no entanto, a mesma foi significativamente superior nos joelhos
submetido a artroplastia patelar (p < 0,001), e nenhum joelho apresentou complicações
nem necessidade de revisão. A avaliação quanto à preferência dos pacientes mostrou
que 47% preferiram o joelho da artroplastia patelar e 46% foram indiferentes.[17]
Migliorini et al.[18] realizaram uma metanálise de 31 artigos, totalizando 4.132 joelhos, e Longo et al[19] realizou outra meta-analise de 35 artigos e um total de 5,535 joelhos. Ambos constataram
menor dor na face anterior do joelho entre pacientes submetidos a artroplastia patelar
(p = 0,02 e p = 0,00001) e menores taxas de revisão no mesmo grupo (p < 0,0001 e (p = 0,00001,
respectivamente). Apenas os primeiros evidenciaram diferença funcional estatisticamente
significativa, com função melhor em pacientes submetidos a artroplastia patelar (p = 0,009).
Melhores desfechos quanto à dor em pacientes submetidos a artroplastia patelar foram
o achado comum entre o nosso e os demais estudos apresentados, e nos parece um desfecho
bem definido. Apesar de não termos evidenciado diferença significativa quanto ao WOMAC
referente às atividades da vida diária/física e global, a presença de medianas maiores
no grupo de preservação da patela e os percentis 25 e 75 relativamente mais elevados,
associados ao valor-p consideravelmente baixo, nos leva a crer que a diferença poderia
tornar-se significativa caso a população do estudo fosse maior. Tal hipótese nos parece
plausível, haja vista a significância evidenciada por Migliorini et al.[18] e Ha et al.,[17] bem como o achado semelhante ao nosso, evidenciado por Longo et al.,[19] que acreditam haver tendência à melhor função quando se realiza a artroplastia patelar.
Certamente, são necessários mais estudos voltados para a comparação funcional entre
esses grupos de pacientes para que tenhamos respostas concretas quanto a isso.
Os três estudos evidenciaram menores taxas de revisão no grupo da artroplastia patelar.[17]
[18]
[19] Migliorini e et al.[18] acreditam que isso esteja relacionado à insatisfação dos indivíduos pela permanência
da dor quando a patela é preservada, levando os cirurgiões a reoperarem para realizar
a artroplastia patelar.[18] Em nosso trabalho, no entanto, buscamos avaliar apenas os resultados funcionais
nos dois cenários em situações ideais, motivo pelo qual um dos fatores de exclusão
definido foi a presença de complicações que levaram a grande prejuízo funcional. Acreditamos
que a presença e análise dos mesmos afetaria de maneira não representativa os resultados
no grupo ao qual pertencessem. Ressaltamos que apesar do definido, apenas uma paciente
que foi excluída por abandono do seguimento apresentou complicação grave e de causa
não atribuível à artroplastia patelar. Acreditamos que o desfecho relacionado à incidência
de revisão não deve ser considerado, uma vez que há maior tendência de indicação de
revisão nos pacientes sintomáticos em quem a patela foi preservada. Podemos observar
alguns pontos questionáveis nas metanálises anteriormente citadas: falta da descrição
da habilidade dos cirurgiões, do modelo de implante na maioria dos estudos e heterogeneidade
dentre os estudos,[19] uso de diferentes implantes e inclusão de estudos com 2 anos de seguimento.[18]
Zmistowski et al.,[20] em um estudo de custo-efetividade, realizaram uma revisão de 14 estudos prospectivos
randomizados que investigaram diferentes desfechos entre cirurgiões que optaram pela
artroplastia patelar de forma seletiva e não seletiva. Entre os que realizaram a artroplastia
patelar de forma não seletiva, a persistência de dor anterior do joelho foi de 20,9%
no grupo de preservação e de 13,2% no grupo da artroplastia patelar (p < 0,001), e
as taxas de reoperação por patologias relacionadas à patela de 3,7 e 1,6% (p < 0,01),
respectivamente. Nos estudos que excluíram as patelas com artrose, a incidência de
dor anterior foi equivalente nos grupos, 3,1% no grupo da preservação e 3,2% no grupo
artroplastia (p = 0,97); a taxa de reoperação por persistência da dor por conta da
patela caiu para 1.2 e 0% (p = 0,06), respectivamente. Avaliados os desfechos, complicações
e custos relacionados, o estudo concluiu que a substituição da patela de forma rotineira
não é o melhor custo benefício, mas sim a realização seletiva, por evitar revisões
por persistência da dor, além de minimizar riscos inerentes à artroplastia patelar.[20]
Considerando que, em nosso serviço, realizamos a artroplastia patelar de forma seletiva,
acreditamos que, hipoteticamente, expusemos o grupo de preservação patelar à melhor
perspectiva possível em termos de resultados clínicos; afinal, por preservarmos apenas
patelas em boas condições macroscópicas, podemos afirmar que os escores maiores do
WOMAC quanto à dor no grupo que teve a patela preservada não decorreram de patelas
com artrose moderada ou avançada. No entanto, mesmo em vigência da artroplastia seletiva,
a diferença entre os grupos foi significativa, diferente do encontrado por Zmistowski
et al.[20] Acreditamos que a seleção também pode ter sido motivo de não identificarmos diferença
significativa entre os grupos quanto ao escore WOMAC global e das atividades da vida
diária, devido à provável redução na real diferença que poderia haver caso a seleção
não ocorresse.
Reconhecemos limitações em nosso estudo, como o tamanho da amostra, falta de avaliação
de escores de qualidade de vida e saúde mental, e a aplicação dos questionários por
ligação telefônica. Merecem destaque o fato de que todos os pacientes tiveram o mesmo
modelo de prótese implantada e o procedimento tenha sido realizado pelo mesmo grupo
de cirurgiões experientes. Por termos realizado avaliação por escores validados para
a população brasileira,[15]
[16] a avaliação clínica e funcional baseou-se apenas em critérios subjetivos relatados
pelos pacientes, impedindo a valorização de dados objetivos pelo avaliador. Acreditamos
que isso traz resultados confiáveis, uma vez que, conforme Epstein,[21] a sintomatologia referida pelo paciente sempre é o mais importante. Instrumentos
baseados no que é relatado pelo paciente podem fornecer dados que não são conseguidos
por avalições fisiológicas e que podem ter maior reprodutividade sobre a qualidade
de vida do que índices clínicos, bioquímicos e fisiológicos.[21]
Conclusão
No presente estudo, não se evidenciou diferença significativa entre o grupo submetido
a artroplastia patelar e o que teve a patela preservada quanto aos escores de Lequesne
e sub-áreas do WOMAC das dificuldades para atividades da vida diária/atividade física,
rigidez e global. Houve diferença significativa apenas quanto ao quesito dor do WOMAC,
com desfecho melhor no grupo submetido a artroplastia patelar mesmo na vigência da
artroplastia seletiva.