Palavras-chave
diabetes - eletromiografia - neuropatia mediana - parestesia - síndrome do túnel do carpo
Introdução
A síndrome do túnel do carpo (STC) é uma neuropatia comum no paciente diabético, com acometimento estimado em 14% nos diabéticos sem neuropatia e em 30% naqueles com neuropatia diabética.[1]
[2] A STC é frequente no paciente diabético não somente pela alteração do tecido sinovial circundante, mas também por o nervo apresentar alterações secundárias à glicemia elevada.[3]
As complicações neurológicas mais comuns em diabéticos são as polineuropatias simétricas sensorimotoras e as neuropatias focais, sendo as neuropatias compressivas da extremidade superior as mais frequentes em qualquer estágio da diabetes.[4]
A possível patogênese da STC na população diabética envolve o aumento de citocinas inflamatórias circulantes decorrentes do produto final do processo de glicação, resultando em desmielinização e perda axonal dos nervos periféricos, o que torna os nervos, dentre eles o mediano, mais suscetíveis à compressão.[5]
Encontramos na literatura estudos demonstrando características das pessoas diabéticas, com e sem STC;[3] entretanto, ainda são escassas publicações recentes que demonstrem as características clínicas, epidemiológicas e eletroneuromiográficas de pessoas em acompanhamento ambulatorial devido a STC, com e sem diabetes. O objetivo do presente trabalho foi verificar se existe diferença das características clínicas e dos resultados da eletroneuromiografia (ENMG) em pessoas com STC, diabéticas e não diabéticas.
Casuística e Métodos
Estudo transversal realizado em um ambulatório de cirurgia da mão com avaliação de 154 pacientes. Realizamos os procedimentos de acordo com o Comitê de Ética em Pesquisa sob o número de autorização 3.640.789, e com a Declaração de Helsinque de 1964. Obtivemos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de todos os participantes.
Incluímos pessoas de ambos os gêneros, > 18 anos de idade, que apresentavam ENMG de membros superiores positiva para STC. Excluímos gestantes, pessoas com diabetes tipo I ou com cirurgias prévias no punho.
Todas as ENMGs avaliadas foram realizadas por um único neurologista, sem vínculo com este trabalho, bilateralmente, e foi utilizado o eletroneuromiógrafo modelo Neuropack EMG (S1, MEB-9400K, Nihon Kohden Corporation, Tóquio, Japão).
A ENMG foi classificada de acordo com a classificação de Stevens em leve (alteração somente da condução sensitiva), moderada (alteração da condução sensitiva e motora) e grave (condução sensitiva e motora alteradas e sinais de denervação à eletromiografia de agulha).[6]
A variável quantitativa idade foi descrita por meio de média e desvio padrão (DP). As qualitativas foram descritas para todas as pessoas em acompanhamento devido a STC que apresentavam ENMG positiva e segundo a presença de diabetes, e foi verificada a associação com uso do teste qui-quadrado.[7]
Foram atendidas 159 pessoas com ENMG positiva para STC, e 5 foram excluídas devido à descrição incompleta do laudo, totalizando 154 participantes incluídos no presente estudo.
Em relação ao gênero, foram incluídas 117 (76,0%) mulheres e 37 homens (24,0%). A média e o DP da idade foi 56,9 ± 10,9 anos. Índice de massa corporal (IMC) dentro do padrão da normalidade foi encontrado em 71 (46,1%) pessoas, sobrepeso em 51 (33,1%) e obesidade em 32 (20,8%). Eletroneuromiografia demonstrando STC bilateral foi observada em 127 (82,5%) pessoas, e unilateral em 27 (17,5%). Um total de 33 (21,4%) pessoas apresentavam o diagnóstico de diabetes e 121 (78,6%) não. A presença de somente 1 doença sistêmica além da diabetes, e a presença de ≥ 2 doenças, foi igualmente encontrada em 52 (33,8% cada) pessoas, enquanto 50 (32,4%) não apresentavam comorbidades.
Para a análise estatística, foi ajustado o modelo conjunto para verificar a influência da diabetes na gravidade da ENMG em pacientes com STC, sendo inseridas no modelo as variáveis que apresentaram nível descritivo < 0,20 nos testes bivariados (p < 0,20). Os testes foram realizados com nível de significância de 5%.
Resultados
Quanto à classificação da ENMG, o padrão leve foi observado em 18 (11,7%) pessoas, enquanto o moderado foi observado em 64 (41,6%), e o grave em 72 (46,7%).
A [Tabela 1] mostra que, de todas as mulheres com STC, a frequência nas com diabetes foi maior do que naquelas sem diabetes (p = 0,023). Houve também maior frequência de doenças sistêmicas associadas nos pacientes diabéticos do que naqueles não diabéticos (p < 0,001).
Tabela 1
Variável
|
Diabetes
|
valor-p
|
Não (n = 121)
|
Sim (n = 33)
|
Idade (anos)
|
|
|
0,244[*]
|
média ± DP
|
56,4 ± 10,9
|
58,9 ± 11
|
|
mediana (mín.; máx.)
|
56 (30; 84)
|
58 (33; 89)
|
|
Gênero,
n
(%)
|
|
|
0,023
|
Feminino
|
87 (71,9)
|
30 (90,9)
|
|
Masculino
|
34 (28,1)
|
3 (9,1)
|
|
IMC classificação,
n
(%)
|
|
|
0,121
|
Normal
|
61 (50,4)
|
10 (30,3)
|
|
Sobrepeso
|
37 (30,6)
|
14 (42,4)
|
|
Obesidade
|
23 (19)
|
9 (27,3)
|
|
ENMG lateralidade,
n
(%)
|
|
|
0,150
|
Unilateral
|
24 (19,8)
|
3 (9,1)
|
|
Bilateral
|
97 (80,2)
|
30 (90,9)
|
|
Doenças sistêmicas,
n
(%)
|
|
|
< 0,001
|
1
|
50 (41,3)
|
2 (6,1)
|
|
≥ 2
|
21 (17,4)
|
31 (93,9)
|
|
Não
|
50 (41,3)
|
0 (0)
|
|
A [Tabela 2] mostra que apenas a lateralidade da STC apresentou associação com o grau da STC (p < 0,001), sendo que pacientes com STC bilateral apresentaram graus mais graves da ENMG.
Tabela 2
Variável
|
ENMG classificação
|
valor -p
|
Leve
|
Moderada
|
Grave
|
Idade (anos)
|
|
|
|
0,081[*]
|
média ± DP
|
56,3 ± 10,6
|
54,8 ± 10,8
|
58,9 ± 10,8
|
|
mediana (mín.; máx.)
|
54,5 (42; 83)
|
55 (30; 81)
|
58 (41; 89)
|
|
Gênero,
n
(%)
|
|
|
|
0,373
|
Feminino
|
14 (12)
|
45 (38,5)
|
58 (49,6)
|
|
Masculino
|
4 (10,8)
|
19 (51,4)
|
14 (37,8)
|
|
IMC classificação,
n
(%)
|
|
|
|
0,821
|
Normal
|
8 (11,3)
|
31 (43,7)
|
32 (45,1)
|
|
Sobrepeso
|
6 (11,8)
|
18 (35,3)
|
27 (52,9)
|
|
Obesidade
|
4 (12,5)
|
15 (46,9)
|
13 (40,6)
|
|
ENMG lateralidade,
n
(%)
|
|
|
|
< 0,001
|
Unilateral
|
10 (37)
|
15 (55,6)
|
2 (7,4)
|
|
Bilateral
|
8 (6,3)
|
49 (38,6)
|
70 (55,1)
|
|
Doenças sistêmicas, n (%)
|
|
|
|
0,516
|
1
|
7 (13,5)
|
19 (36,5)
|
26 (50)
|
|
≥ 2
|
4 (7,7)
|
21 (40,4)
|
27 (51,9)
|
|
Não
|
7 (14)
|
24 (48)
|
19 (38)
|
|
Diabetes
|
|
|
|
0,466
|
Não
|
16 (13,2)
|
50 (41,3)
|
55 (45,5)
|
|
Sim
|
2 (6,1)
|
14 (42,4)
|
17 (51,5)
|
|
A presença de diabetes não apresentou associação estatística com o grau da ENMG (p = 0,466).
Pela [Tabela 3], observa-se que a lateralidade da STC à ENMG sofreu influência com significância estatística (p = 0,023). Pacientes com STC bilateral apresentaram graus de ENMG 44% mais graves do que pacientes com exame positivo unilateralmente.
Tabela 3
Variável
|
Coeficiente
|
IC (95%)
|
valor-p
|
Inferior
|
Superior
|
ENMG (bilateral)
|
1,44
|
1,05
|
1,98
|
0,023
|
Diabetes
|
1,01
|
0,79
|
1,30
|
0,927
|
Idade (anos)
|
1,001
|
0,991
|
1,011
|
0,836
|
A presença de diabetes não influenciou o grau da ENMG para a STC (p = 0,927).
Discussão
Em estudos de base populacional, a prevalência da STC é maior em mulheres e aumenta com o avançar da idade,[4] com estimativa de acometimento até três vezes maior no sexo masculino.[8] De acordo com Papanas et al.,[9] a prevalência da STC em diabéticos varia entre 11 e 25%, sendo mais comum também em mulheres. Nossos resultados foram condizentes com a literatura, com prevalência da STC em mulheres e média de idade de 56 anos em não diabéticos e de 58 anos em diabéticos.
Phalen[10] refere que, nos diabéticos, o nervo mediano pode ser mais suscetível à compressão dentro do túnel do carpo quando comparado ao paciente sem diabetes. Na década de 1960, Mulder et al.[11] encontraram prevalência de 9% da diabetes em pessoas com STC, e Blodgett et al.[12] encontraram prevalência de 6,4%. Em 1985, Comi et al.[13] observaram 7,7%, e Kouyoumdjian[14] observou 4,4%. A quantidade de diabéticos em nossos resultados (21,4%) foi consideravelmente superior à literatura, o que acreditamos ser devido ao nosso serviço ser de referência regional, com número elevado de casos.
De acordo com Becker et al.,[15] o IMC elevado é fator de risco para STC, assim como sexo feminino, idade entre 40 e 60 anos e presença de diabetes. Para Bland,[16] pessoas diabéticas com STC apresentam maior frequência de sobrepeso e obesidade do que aquelas com IMC dentro da normalidade. Assim como os autores acima, nosso estudo apresentou resultados semelhantes, visto que a prevalência foi de mulheres com idade de 56 anos. Apesar de 69,7% dos diabéticos com STC apresentarem sobrepeso ou obesidade, não houve diferença no grupo dos não diabéticos (49,6%).
Spahn et al.[17] encontraram acometimento bilateral da STC em 50 a 60% dos casos. Em nossos resultados, 82,46% dos pacientes apresentaram alteração eletroneuromiográfica bilateralmente, sendo que 44% destes apresentaram ENMG de grau grave; entretanto, não houve correlação entre a lateralidade e a gravidade da ENMG (p = 0,023).
Obtivemos um número considerável de pessoas que possuíam doenças sistêmicas comuns, dentre elas hipertensão, doenças reumatológicas e cardiológicas (67,6%), e esse resultado teve significância entre diabéticos e não diabéticos. Em contrapartida, não foi encontrada diferença estatística nos resultados da ENMG entre pessoas diabéticas e não diabéticas com STC (p = 0,927). Isso pode estar relacionado à heterogeneidade do grupo avaliado, uma vez que idade, sexo feminino, IMC elevado, tempo de evolução e controle clínico adequado ou não se mostraram como fatores de risco independentes para STC.
A avaliação de pessoas com STC em um serviço de referência regional, para avaliar a relação entre diabetes e a gravidade da ENMG, é um dos pontos positivos do nosso estudo.
Uma das limitações do presente trabalho pode estar relacionada ao fato de que os pacientes com STC podem não representar a real influência da diabetes na gravidade da ENMG para avaliação desta afecção, visto que muitos diabéticos permanecem em acompanhamento na especialidade endocrinologia.
Também não é possível afirmar, peremptoriamente, que haja relação entre a maior gravidade dos achados eletroneuromiográficos e a bilateralidade da STC, sendo necessários novos trabalhos com espaço amostral maior e critérios de inclusão mais abrangentes para avaliar esta relação.
Conclusão
Concluímos que a STC é prevalente em mulheres na 5ª década de vida, tanto em diabéticas quanto não diabéticas, e que não existe associação entre a presença de diabetes e a gravidade da ENMG em pessoas com STC.