CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2021; 56(05): 594-600
DOI: 10.1055/s-0041-1726063
Artigo de Atualização
Básica

Mortalidade e incidência da infecção por SARS-CoV-2 (COVID-19) em pacientes internados e operados por fratura de quadril durante a pandemia de SARS-CoV-2 em um hospital de Londres[*]

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1   Ealing Hospital, Londres, Reino Unido
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Resumo

Objetivo Estamos fazendo um estudo em pacientes internados com fraturas de quadril para determinar o impacto da COVID-19 no grupo de indivíduos vulneráveis do Reino Unido. O presente estudo nos ajudará a tomar decisões informadas sobre o reinício dos serviços cirúrgicos eletivos e a expansão dos serviços cirúrgicos em casos de traumatismos. Os objetivos do presente estudo são a determinação da incidência de COVID-19 em pacientes internados com fratura de quadril e 1) determinar a mortalidade em 30 dias em pacientes com fratura de quadril submetidos ao tratamento cirúrgico; 2) determinar a mortalidade em 30 dias de pacientes com fratura de quadril e COVID-19; 3) comparar esses dados com a mortalidade associada a fraturas de quadril em anos anteriores.

Métodos Este é um estudo de coorte unicêntrico, observacional e retrospectivo com 65 pacientes com fraturas de quadril internados em nossa instituição. Além dos dados epidemiológicos, os prontuários dos pacientes foram acompanhados por 14 dias quanto a resultados positivos para COVID-19 à reação em cadeia de polimerase (PCR, na sigla em inglês) em amostras de swab, e por 30 dias quanto à mortalidade.

Resultados Na nossa amostra, 64% dos pacientes não apresentavam comorbidade significativa. A incidência de infecções nosocomiais por COVID-19 foi de 9%. A mortalidade geral em 30 dias foi de 15%. A mortalidade foi muito maior em pacientes COVID-positivos (40%) e em pacientes com “risco muito alto” (63%) operados durante este período.

Conclusão A realização de cirurgias eletivas em pacientes com risco baixo, moderado e alto parece ser segura, já que não houve aumento apreciável da mortalidade. Mais dados são necessários para entender o impacto da COVID-19 em pacientes de risco muito alto.


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Introdução

Em dezembro de 2019, uma pandemia de coronavírus começou em Wuhan, China, e se espalhou rapidamente pela maior parte do mundo nos meses seguintes.[1] A doença foi chamada de “doença por coronavírus 2019” (COVID-19, do inglês coronavirus disease 2019) ou, mais precisamente, de “síndrome respiratória aguda grave por coronavírus 2” (SARS-CoV-2, do inglês severe acute respiratory syndrome – coronavirus 2).[2]

No Reino Unido, os primeiros casos de coronavírus foram confirmados em 29 de janeiro de 2020.[3] Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a doença uma pandemia.[4] Em 23 de março de 2020, o Reino Unido entrou em lockdown (protocolo de isolamento que geralmente impede o movimento de pessoas ou cargas).[5] Naquela época, havia 6.650 casos confirmados e 335 mortes ([Fig. 1]). No Reino Unido, o pico/platô da doença foi atingido em abril ([Fig. 2]).[6]

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Fig. 1 Número cumulativo de casos e mortes de COVID-19 no Reino Unido.
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Fig. 2 Incidência diária de casos no Reino Unido.

Durante o lockdown, a maioria dos hospitais no Reino Unido interrompeu todas as cirurgias eletivas para proteger os pacientes (muitos dos quais são idosos e apresentam múltiplas comorbidades) de infecções nosocomiais. Isso também permitiu a liberação de recursos em preparação para o aumento repentino e esmagador de pacientes com COVID-19. No entanto, as cirurgias de emergência e trauma continuaram. Isso foi facilitado pela organização preparatória da equipe e modificação das áreas de atendimento.[7] A interrupção das cirurgias eletivas no Reino Unido gerou um grande acúmulo de pacientes que aguardavam os procedimentos.[8]

A British Orthopaedic Association (BOA, na sigla em inglês) publicou diretrizes sobre o reinício dos atendimentos de casos não urgentes de traumatismo e ortopedia em 15 de maio de 2020.[9] Nesta publicação, a BOA menciona o estudo com 34 pacientes submetidos a cirurgias eletivas e que desenvolveram sintomas de COVID-19 no período pós-operatório em Wuhan, publicado por Lei et al.[10] em 2020. Neste estudo, a mortalidade foi de 20,5% em procedimentos de “categoria 3”, como artroplastia total de quadril. Este estudo também relatou taxas de 65% de internação em unidade de terapia intensiva (UTI) e de 35% de mortalidade.

Esses números são preocupantes e motivaram a realização de um estudo no Reino Unido para determinar o impacto da COVID-19 neste grupo de pacientes vulneráveis submetidos a cirurgia. Isso nos ajudaria a tomar decisões informadas sobre o reinício de serviços cirúrgicos eletivos e a expansão dos atendimentos de traumas.

O presente estudo foi realizado com pacientes com fraturas de quadril submetidos a cirurgia neste período. Os pacientes com fraturas de quadril são um grupo vulnerável devido à idade e à presença usual de múltiplas comorbidades; esta vulnerabilidade aumentou durante a pandemia.[11]

Cerca de 76.000 fraturas de quadril ocorrem em uma população de 66,46 milhões de residentes no Reino Unido a cada ano (∼ 115 por 100.000 por ano).[12] As fraturas de quadril são comuns em pacientes que já apresentam comorbidades médicas;[13] por isso, a taxa de mortalidade associada às fraturas de quadril é alta, mesmo na ausência de COVID-19. No Reino Unido, as fraturas do fêmur proximal estão associadas a uma mortalidade de 6,2% nos primeiros 30 dias[14] e a uma taxa de mortalidade de 22% durante o 1° ano em todo o mundo.[15] Pacientes idosos com fratura de quadril também apresentam maior risco de morte em curto prazo (entre 22 e 30%) em caso de COVID-19.[16] [17] Os pacientes hospitalizados entram em contato com outros pacientes e funcionários e, portanto, apresentam maior risco de desenvolvimento de COVID-19.

Isso, infelizmente, torna este grupo de pacientes ideal para nosso estudo.

O objetivo do nosso estudo observacional é:

  1. Determinar a incidência de COVID-19 nosocomial em pacientes com fraturas de quadril e internados durante o lockdown no Reino Unido.

  2. Determinar a mortalidade em 30 dias de pacientes internados com fraturas de quadril.

  3. Determinar a mortalidade em 30 dias de pacientes com fratura de quadril e COVID-19.

  4. Comparar a mortalidade em 30 dias destes pacientes com dados de anos anteriores.


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Material e Métodos

Este é um estudo de coorte unicêntrico, observacional e retrospectivo com 65 pacientes com fraturas de quadril internados em nossa instituição.

Os critérios de inclusão foram:

  • Pacientes com fraturas do fêmur proximal internados em nossa instituição.

  • Pacientes internados entre 23 de março e 22 de maio de 2020.

  • Todas as idades.

  • Ambos os gêneros.

Os critérios de exclusão foram:

  • Fraturas expostas.

  • Fraturas patológicas.

  • Fraturas periprotéticas.

  • Fraturas peri-implantes.

  • Politraumatismo.

Os dados coletados foram idade, gênero, tipo de fratura, data de internação, data da cirurgia e tratamento recebido.

Os pacientes foram classificados em quatro categorias conforme sua vulnerabilidade à COVID-19: risco baixo, risco moderado, risco alto e risco muito alto ([Fig. 3]).[9]

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Fig. 3 Estratificação de risco de vulnerabilidade à COVID-19 segundo os Centers for Disease Control and prevention (recomendação da British Orthopaedic Association).

O diagnóstico de COVID-19 foi feito em pacientes com febre e tosse por meio de um teste de reação em cadeia de polimerase (PCR, na sigla em inglês) de amostras de swab nasal. Os resultados de PCR foram pesquisados em registros institucionais e da clínica geral.

Como o período de incubação do COVID-19 é de 2 a 14 dias,[18] os pacientes com resultado positivo em < 2 dias da internação ou após 14 dias da alta não foram considerados infecções hospitalares.

Os pacientes foram acompanhados por um período mínimo de 30 dias a partir do dia da internação para determinação de mortalidade.

Estes dados de mortalidade foram comparados com os dados do National Hip Fracture Database (NHFD, na sigla em inglês) do Reino Unido.[14]


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Resultados

Dados Demográficos

Um total de 65 pacientes com fraturas de quadril foi internado em nossa instituição entre 23 de março e 22 de maio.

Destes, 43 eram mulheres (66%) e 22 eram homens (34%).

Os pacientes tinham idades entre 63 e 104 anos, com média de 84 anos. Apenas 1 paciente tinha < 65 anos (63 anos).

No total, 28 eram lesões do lado esquerdo, e 37 do lado direito.

Dos 65 pacientes, 4 foram submetidos ao tratamento conservador, e 61 ao tratamento cirúrgico.

Dos 61 pacientes operados, 34 foram submetidos a hemiartroplastia cimentada (56%), 21 a fixação com parafuso dinâmico de quadril (34%), e 6, a fixação com haste gama (10%).


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Categoria de Risco

Os pacientes apresentaram diferentes níveis de risco:

  • Nenhum paciente em nossa coorte apresentou risco baixo.

  • Quarenta e dois pacientes tinham risco moderado. Destes, 41 pacientes tinham > 65 anos e não apresentavam comorbidades significativas, enquanto 1 paciente de 63 anos tinha 1 comorbidade.

  • Doze pacientes foram classificados como de risco alto. Todos tinham > 65 anos e 1 comorbidade.

  • Onze foram classificados como de risco muito alto, e todos tinham > 65 anos. Nove tinham duas comorbidades e dois tinham três comorbidades.

A incidência de COVID-19 em pacientes internados com fraturas de quadril após o lockdown no Reino Unido foi:

No total, 10 pacientes foram diagnosticados com COVID-19; destes, 3 pacientes foram diagnosticados com COVID-19 durante a internação, e 7 após a alta.

Dos 3 pacientes COVID-positivos durante a hospitalização, 1 foi positivo no 1° dia de internação, 1 no dia 6, e 1 no dia 10.

Daqueles que foram positivos após a alta, 1 foi diagnosticado com COVID-19 no dia da alta, 1 aos 10 dias, 1 aos 12 dias, 1 aos 13 dias, 1 aos 26 dias, e 2 aos 28 dias após a alta.

Não acreditamos que o único paciente com resultado positivo no dia da internação tenha sido infectado no hospital, pois o período mínimo de incubação é de 2 dias; da mesma forma, não consideramos os 3 pacientes com resultado positivo em 26 e 28 dias como infectados no hospital, pois o período máximo de incubação de COVID-19 é de 14 dias.

Assim, consideramos que apenas 6 (9%) pacientes foram infectados durante a sua permanência no hospital.

Mortalidade em 30 dias dos pacientes internados com fraturas de quadril:

Dos 65 pacientes com fraturas de quadril, 10 faleceram em 30 dias (15%).

Dos 4 submetidos ao tratamento conservador, 2 pacientes faleceram em 30 dias (50%).

Dos 61 pacientes operados, 8 faleceram em 30 dias (13%).

Os 10 pacientes que faleceram apresentaram diferentes níveis de risco:

  • Sete foram classificados como risco muito alto

  • Um paciente foi classificado como risco alto

  • Dois pacientes foram classificados como risco médio,

  • Nossa coorte não apresentou nenhum paciente de baixo risco.

  • Três pacientes dentre os 54 indivíduos com risco moderado e alto faleceram em 30 dias (5,6%).

Sete dentre os 11 pacientes com risco muito alto faleceram em 30 dias (64%).

Nove pacientes com COVID-19 foram operados para correção da fratura de quadril; destes, 3 faleceram (33%). Destes nove pacientes:

  • taxa de mortalidade em risco moderado-alto/operado/COVID +: ⅙ (17%)

  • taxa de mortalidade em risco muito alto/operado/COVID +: ⅔ ([Fig. 4]).

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Fig. 4

Dos 55 pacientes não infectados por COVID-19, 6 faleceram (11%). Seis pacientes faleceram durante a internação, e quatro após a alta.


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Discussão

Nosso estudo mostrou que a maioria (41/64; 64%) dos pacientes > 65 anos não apresentava comorbidade significativa. Ainda assim, estes indivíduos estavam em risco moderado por causa de sua idade. No total, 18,5% eram de risco alto e 17% eram de risco muito alto.

A incidência de infecções nosocomiais por COVID-19 em nossa instituição foi de 9%. A taxa geral de infecção (nosocomial e comunitária) foi de 15%.

A mortalidade geral em 30 dias foi de 15%. Mesmo em pacientes com fraturas de quadril, mas sem COVID-19, a mortalidade em 30 dias foi de 9%. Este número é maior do que a média nacional de 6,2 de acordo com o NHFD.[14]

A mortalidade foi muito maior em pacientes COVID-positivos, de 40%.

O achado mais importante, porém, foi a mortalidade em 30 dias de pacientes com risco moderado e até alto (85% dos pacientes) de apenas 5,6%, que é inferior à média do Reino Unido.

Nos pacientes de risco muito alto operados nesse período, o risco de mortalidade foi de 63%.

Um estudo semelhante, com 142 pacientes, feito por Archer et al. no Reino Unido, observou uma incidência de COVID-19 em pacientes internados com fraturas de quadril de 12,67% e mortalidade em 30 dias em pacientes com fratura do colo do fêmur e COVID-19 de 22,2%.[16]

Outro estudo com 136 pacientes com fratura de quadril na Espanha descobriu que a incidência de COVID-19 era de 17%. A taxa de mortalidade total em 14 dias foi de 9,6%, enquanto a taxa de mortalidade em 14 dias em pacientes COVID-19-positivos foi de 30,4%.[17]

Estes dois os estudos usaram a classificação da American Society of Anesthesiologists (ASA, na sigla em inglês) ao invés da classificação do Centers for Disease Control and Prevention (CDC, na sigla em inglês) para a avaliação de risco ([Tabela 1]).

Tabela 1

Estudo Atual

Archer et al.[16]

Muñoz Vives et al.[17]

Período de estudo

23/03/2020 - 22/05/2020

25/03/2020 - 25/04/2020

14/03/2020- 04/04/2020

Tamanho da amostra

65 (61 operados)

142(142 operados)

136 (124 operados)

Média de idade (anos)

84 (63–104)

82 (55–101)

85 (65–101)

Positivos para COVID-19

10 (6 casos adquiridos no hospital)

15%

18; 13%

23; 17%

Mortalidade em 30 dias em pacientes positivos para COVID-19

40%

22,2%

30,3% (mortalidade em 14 dias)

Mortalidade em pacientes operados não infectados

7,8%

4%

Mortalidade total em 30 dias

15%

6%

9,6% (mortalidade em 14 dias)

Se combinarmos os dados dos três estudos, de 343 pacientes admitidos com fraturas de quadril, 51 foram infectados com COVID-19 (15%). A mortalidade em pacientes com COVID-19 foi de 29%. A mortalidade total de curto prazo de fraturas de quadril durante este período foi > 9,3%.


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Conclusão

Nosso estudo mostra a vulnerabilidade da população idosa com comorbidades submetida a cirurgias durante a pior fase da pandemia de COVID-19. A mortalidade em 30 dias de pacientes com fraturas de quadril parece ter aumentado com o início da pandemia. Os pacientes mais atingidos são aqueles na categoria de risco muito alto e aqueles com diagnóstico de COVID-19.

No entanto, a mortalidade em pacientes com risco moderado e até alto foi de apenas 5,6%, o que é inferior à média nacional de tempos não pandêmicos. Este grupo constitui 85% da população de pacientes idosos.

Somos da opinião que, como o pico já passou, o reinício da realização de cirurgias eletivas em pacientes com risco baixo, moderado e alto deve ser seguro, sem um aumento apreciável na mortalidade. Acreditamos que há necessidade de mais dados e mais tempo antes do reinício de cirurgias eletivas em pacientes de risco muito alto.

Recomendamos estudos futuros para análise da mortalidade em pacientes de risco muito alto no período após o pico de COVID (a partir de junho de 2020) e sua comparação à mortalidade anterior no grupo de pacientes de risco muito alto. Também recomendamos um estudo mais amplo de mortalidade em pacientes de risco baixo, moderado e alto que foram operados e contraíram COVID-19.


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Conflito de Interesses

Os autores não têm conflitos de interesse a declarar

* Estudo desenvolvido no Ealing Hospital, Londres, Reino Unido.



Endereço para correspondência

Faisal Younis Shah, MRCS
348, Wokingham Road, Earley, Reading RG67DE
United Kingdom   

Publication History

Received: 17 August 2020

Accepted: 28 October 2020

Article published online:
31 March 2021

© 2021. Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution-NonDerivative-NonCommercial License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit. Contents may not be used for commecial purposes, or adapted, remixed, transformed or built upon. (https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/)

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Fig. 1 Número cumulativo de casos e mortes de COVID-19 no Reino Unido.
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Fig. 2 Incidência diária de casos no Reino Unido.
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Fig. 1 Cumulative number of cases and deaths of COVID-19 in the UK.
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Fig. 2 Daily incidence of cases in the UK.
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Fig. 3 Estratificação de risco de vulnerabilidade à COVID-19 segundo os Centers for Disease Control and prevention (recomendação da British Orthopaedic Association).
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Fig. 3 Centers for Disease Control and Prevention (British Orthopaedic Associtaion recommended) risk stratification for vulnerability to COVID-19.
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Fig. 4
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Fig. 4