CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2022; 57(01): 159-166
DOI: 10.1055/s-0041-1729932
Artigos Originais
Infectologia

Impacto da pandemia COVID-19 na prevalência de burnout entre residentes em ortopedia[*]

Artikel in mehreren Sprachen: português | English
1   Hospital Manoel Victorino, Salvador, BA, Brasil
,
1   Hospital Manoel Victorino, Salvador, BA, Brasil
,
1   Hospital Manoel Victorino, Salvador, BA, Brasil
,
2   Departamento de Anestesiologia e Cirurgia, Hospital Universitário Professor Edgard Santos, Salvador, BA, Brasil
,
1   Hospital Manoel Victorino, Salvador, BA, Brasil
,
1   Hospital Manoel Victorino, Salvador, BA, Brasil
› Institutsangaben
 

Resumo

Objetivo O objetivo principal do presente estudo é avaliar o impacto da pandemia de COVID-19 na prevalência da síndrome de burnout entre residentes de ortopedia Como objetivo secundário, foram avaliadas características associadas ao risco de desenvolver a forma grave da síndrome.

Método No presente estudo transversal, foram avaliados residentes antes e durante a pandemia de COVID-19. Estudantes de medicina formaram um grupo de controle. Os participantes responderam a um questionário sociodemográfico, ao Inventário Maslach Burnout, e à versão validada brasileira do Short Form Health Survey 36 (SF-36). Cinquenta e dois residentes foram avaliados antes da pandemia e 19 durante a pandemia.

Resultados Quarenta e quatro (84,6%) residentes tinham critérios para síndrome de burnout, e a forma grave da síndrome estava presente em 16 (30,7%). Não houve alteração significativa nos escores avaliados após o início da pandemia de COVID-19. Também não houve aumento na prevalência da síndrome de burnout ou da forma grave da síndrome. Observou-se correlação negativa entre os itens SF-36 e o desenvolvimento da forma grave da síndrome de burnout.

Conclusão A prevalência da síndrome de burnout e da forma grave da doença foi muito alta entre os residentes em cirurgia ortopédica. A pandemia de COVID-19 não aumentou o burnout nos residentes.


#

Introdução

O burnout ocupacional é uma síndrome composta de exaustão emocional, despersonalização e baixo senso de realização secundária ao estresse ocupacional crônico.[1] A síndrome afeta negativamente a vida pessoal e o desempenho profissional e é uma preocupação crescente entre os profissionais de saúde.[1] Cirurgiões ortopédicos frequentemente gerenciam casos complexos e precisam dominar uma ampla gama de técnicas cirúrgicas. Sua prática geralmente envolve carga de trabalho pesada, turnos noturnos e cirurgias longas.[2] Como resultado, o programa de treinamento em ortopedia é notoriamente difícil.[3] [4]

O surgimento de um vírus altamente contagioso em dezembro de 2019 alterou drasticamente as interações sociais em todo o mundo.[5] À medida que o COVID-19 se espalhou rapidamente, foi declarada uma pandemia, o que causou profundas mudanças nos sistemas de saúde, alterando drasticamente os programas de treinamento médico.[6] Os profissionais de saúde são a primeira linha de defesa contra o COVID-19 e estão sob alto risco de infecção. Os relatórios iniciais mostraram taxas de infecção que variam de 1,5 a 20,7% entre cirurgiões ortopédicos no estágio inicial do surto.[5] Esta nova realidade pode resultar em aumento da ansiedade entre os profissionais de saúde não apenas como resultado do trabalho, mas como resultado de profundas mudanças no estilo de vida impostas pela quarentena.[7]

O objetivo principal do presente estudo é avaliar o impacto da pandemia de COVID-19 na prevalência da síndrome de burnout entre residentes de ortopedia. Como objetivo secundário, foi avaliada a correlação entre características sociodemográficas e de saúde com o risco de desenvolver a forma grave da síndrome de burnout.


#

Método

No presente estudo transversal, foi avaliada a prevalência de síndrome de burnout em residentes realizando a residência em hospital de referência em ortopedia. O presente estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa e foi realizado de setembro de 2019 a junho de 2020. O estudo foi projetado para determinar fatores de risco para o desenvolvimento da síndrome de burnout. No entanto, com o surgimento do surto de COVID-19 no decorrer do estudo, foi possível expandir seu escopo. Foram coletadas informações referentes ao período COVID-19 entre março e junho de 2020, período em que a pandemia se espalhou rapidamente no Brasil.

Residentes em ortopedia foram incluídos no estudo. Como o hospital é uma unidade de referência para a rede pública local de saúde, a instituição também atua como campo de prática para residentes de ortopedia de outros programas. Eles são admitidos como residentes visitantes, e também foram incluídos no estudo. Normalmente, os residentes visitantes ficam por períodos que variam de 1 a 3 meses por ano e seguem a mesma rotina dos residentes da instituição. Também foi criado um grupo controle formado por estudantes de medicina do 4° ao 6° ano de graduação que passaram por estágio médico em ortopedia. Após o início da pandemia de COVID-19, o hospital adotou medidas de distanciamento social, que incluíram redução no número de residentes e de estudantes de medicina. Assim, a maioria dos residentes avaliados durante o período de pandemia eram residentes do programa da instituição.

Após a assinatura do termo de consentimento, os participantes responderam a um questionário sociodemográfico, ao Inventário de Burnout Maslach (MBI, na sigla em inglês)[8] [9] e à versão validada brasileira do questionário Short Form Health Survey 36 (SF-36).[10] [11] [12] [13] Os formulários foram entregues em conjunto na seguinte ordem: questionário sociodemográfico, MBI e SF-36. Os participantes responderam ao estudo em local reservado e tranquilo. Eles foram instruídos a não se identificarem e, após o preenchimento, depositaram os formulários em uma urna.

Os dados coletados foram: idade, gênero, local de nascimento, estado civil, se tinham filhos, características relacionadas à habitação, anos de prática médica, horas de trabalho por semana, se trabalhavam à noite, se tinham outro diploma universitário, horas de estudo por semana, horas dedicadas a atividades recreativas por semana, se já haviam considerado desistir da residência médica e se já haviam considerado desistir da profissão médica.

O MBI é uma ferramenta amplamente utilizada para a caracterização da síndrome de burnout e avalia os três componentes da síndrome: exaustão emocional (MBI_EE), despersonalização (MBI_DP) e realização pessoal (MBI_PA). Foram utilizados escores para caracterizar a síndrome de burnout quando: MBI_EE > 27 pontos, MBI_DP > 10 pontos e MBI_PA < 40 pontos.[9] [14] [15] [16] Os participantes com valores alterados em qualquer um dos componentes foram considerados afetados pela síndrome. A combinação de um alto MBI_EE, alta MBI_DP e um baixo MBI_PA foi usada para definir a forma grave da síndrome de burnout.[15] [17]

O SF-36 é um instrumento genérico para avaliar a saúde geral e a qualidade de vida. Ele consiste em um questionário multidimensional com oito domínios: capacidade funcional, limitação devido a aspectos físicos, dor, saúde geral, vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e saúde mental. Cada domínio tem uma pontuação final de 0 a 100, onde 0 corresponde ao pior e 100 ao melhor estado.[10] [11] [12] [13]

Análise Estatística

Os dados foram descritos como média, desvio-padrão (DP) e intervalo para variáveis contínuas. A normalidade foi testada com o teste de Shapiro-Wilk. A comparação entre grupos ou associações entre variáveis foi feita com o teste t, o teste Wilcoxon-Mann-Whitney ou o teste de Fisher. Os valores do MBI, bem como seus três componentes, foram testados com o teste t não pareado. Considerando os critérios para definição do burnout, os componentes do MBI também foram analisados como variáveis categóricas. Os domínios do SF-36 foram analisados como variáveis contínuas. A consistência interna das respostas ao MBI e ao SF-36 foi avaliada utilizando-se o coeficiente α de Cronbach, sendo um valor acima de 0,70 considerado satisfatório. A correlação entre o SF-36 e a forma grave da síndrome de burnout foi determinada utilizando-se o coeficiente de correlação de Spearman. A regressão logística multivariada foi utilizada para avaliar o efeito de variáveis não modificáveis (idade e gênero) nos componentes do MBI. Os dados foram analisados com o software Stata versão 16 (Stata Corporation, College Station, TX, EUA), e o nível de significância foi fixado em α = 0,05.


#
#

Resultados

Cinquenta e dois residentes participaram do estudo antes da pandemia de COVID-19, e 19 durante o período pandemia ([Tabela 1]).

Tabela 1

n (%)

Ano de treinamento

n (%)

Antes da pandemia

75 (80%)

 Estudante de medicina

23 (31%)

21

2

 Residentes do programa de treinamento hospitalar

33 (44%)

15

7

11

 Residentes visitantes

19 (25%)

10

8

1

Durante a pandemia

19 (20%)

 Residentes do programa de treinamento hospitalar

17 (89%)

7

5

5

 Residentes visitantes

2 (11%)

1

1

Prevalência de burnout antes da pandemia COVID-19

A comparação entre residentes e estudantes de medicina mostrou diferenças significativas em termos de características sociodemográficas (idade, gênero, local de nascimento, estado civil, condições de moradia, horas de trabalho por semana, turnos noturnos, horas de estudo por semana e horas de recreação por semana ([Material Suplementar 1, Tabela]). Apesar desses contrastes, os valores das categorias do MBI apresentaram diferença estatística apenas para o MBI_DE (p = 0,00). Houve diferença apenas no domínio de capacidade funcional do SF-36 entre estudantes de medicina e residentes (p = 0,02) ([Material Suplementar 2, Gráfico]).

Zoom Image
Fig. 1 Componentes do Inventário Maslach Burnout antes e durante o surto de COVID-19. MBI_EE, componente de exaustão emocional do Inventário Maslach Burnout; MBI_DP, componente de despersonalização do Inventário Maslach Burnout; MBI_PA, componente de realização pessoal do Inventário Maslach Burnout; Alfa, α de Cronbach.
Zoom Image
Fig. 2 Domínios do SF-36 antes e durante o surto de COVID-19. Alfa, α de Cronbach.

Trinta e seis (69,2%) residentes apresentaram valores para MBI_EE > 27. Vinte e quatro (46,1%) apresentaram valores para MBI_DE > 10, e 34 (65,4%) tinham valores para MBI_PA < 40. Mais uma vez, esses valores foram significativos em relação aos acadêmicos apenas para MBI_DE (p = 0,02). Assim, 44 (84,6%) residentes tinham critérios definidos para síndrome de burnout contra 18 (78,2%) alunos, e essa diferença não foi significativa. A forma grave da síndrome de burnout esteve presente em 16 (30,7%) residentes, e em nenhum dos alunos (p = 0,00).

A análise dos fatores de risco mostrou que ser residente (p = 0,00), realizar turnos noturnos (p = 0,05), e já ter considerado mudar de carreira (p = 0,05) foram fatores de risco para o desenvolvimento de burnout grave. A regressão logística não mostrou relação entre idade e gênero com valores elevados na escala MBI_EE (r = 0,04; p = 0,23), mas essas características foram correlacionadas com o aumento da MBI_DE (r = 0,12; p = 0,00).


#

Impacto do COVID-19 na prevalência de burnout em residentes

Comparando-se apenas os residentes no período pré-pandemia com os residentes durante a pandemia, observou-se redução na proporção de homens (p = 0,00), aumento significativo da jornada de trabalho (p = 0,00) e diminuição do tempo de estudo (p = 0,05). As características sociodemográficas dos residentes estão descritas na [Tabela 2] e não variam após o início da pandemia de COVID-19. Também não houve alteração significativa nas categorias MBI ou SF-36 após o início da pandemia de COVID-19, e os valores são mostrados nas [Figuras 1] e [2]. Além disso, também não houve aumento na prevalência da síndrome de burnout ou da forma grave da síndrome, como demonstrado pelos valores apresentados na [Tabela 3].

Tabela 2

Grupo de estudos

Residentes Pré

média ± DP (intervalo)

n (%)

Residentes durante

média ± DP (intervalo)

n (%)

valor-p

Participantes

52 (73,2%)

19 (26,7%)

Idade (anos)

29,8 ± 3,5 (24–38)

31 ± 4,6 (26–46)

0,36[a]

Gênero (masculino)

49 (94,2%)

13 (68,4%)

0,00[b]

Local de nascimento (local)

34 (65,3%)

12 (63,1%)

1,00[b]

Estado civil (solteiro)

37 (71,1%)

11 (57,8%)

0,39[b]

Filhos (não)

44 (84,6%)

15 (78,9%)

0,72[b]

Ano de treinamento

25 (48%)

7 (36,8%)

0,69[b]

Horas de trabalho (> 120h/semana)

43 (82,6%)

9 (50%)

0,00[b]

Turno da noite (sim)

34 (65,3%)

14 (73,6%)

0,57[b]

Outra graduação (não)

43 (82,6%)

14 (73,8%)

0,50[b]

Habitação (com os pais)

21 (40,3%)

7 (38,8%)

0,06[b]

Considerou desistir (não)

31 (59,6%)

11 (57,8%)

1,00[b]

Horas de estudo (> 6h/semana)

28 (53,8%)

5 (26,3%)

0,05[b]

Horas de recreação (> 6h/semana)

16 (30,7%)

3 (15,7%)

0,24[b]

Considerou mudar de carreira (não)

42 (80,7%)

16 (88,8%)

0,71[b]

Tabela 3

Grupo de estudos

Residentes pré

n (%)

Residentes pós

n (%)

p-valor

MBI_EE > 27

36 (69,2%)

10 (52,6%)

0,26[a]

MBI_DE > 10

24 (46,1%)

9 (47,3%)

1,00[a]

MBI_PA < 40

34 (65,3%)

14 (73,6%)

0,57[a]

Burnout por prevalência

44 (84,6%)

17 (89,4%)

0,71[a]

Burnout grave

16 (30,7%)

6 (31,5%)

1,00[a]

Uma análise excluindo os residentes visitantes não alterou os achados, exceto para reduções nas horas de estudo, que não foi mais estatisticamente significante (p = 0,07). A análise dos fatores de risco para burnout grave mostrou que os residentes com união estável apresentaram maior risco de apresentar a forma grave da síndrome durante a pandemia COVID-19 (p = 0,04).

Considerando que houve variação mínima na prevalência de burnout antes e durante a pandemia de COVID-19, foram avaliados fatores de risco para a forma grave da síndrome de burnout. Apenas o fato de já ter considerado mudar de carreira esteve associado ao desenvolvimento de burnout grave entre os residentes (p = 0,04). Observou-se correlação negativa entre os itens SF-36 e o desenvolvimento da forma grave da síndrome de burnout ([Fig. 3)] assim como valores mais baixos em quase todos os itens do SF-36 ([Tabela 4]). A regressão logística não mostrou relação entre idade, gênero, e altos valores nas escalas MBI_EE e MBI_DE entre os residentes.

Tabela 4

Domínios do SF-36

Sem burnout severo

média ± DP

Burnout severo

média ± DP

valor-p

Capacidade funcional

91,2 ± 11,1

81,1 ± 20,1

0,04[a]

Limitação física

64,7 ± 37,1

40,9 ± 38,2

0,01[a]

Dor

74,4 ± 20,5

63 + 21,2

0,02[a]

Saúde geral

76,1 ± 18,2

55,5 ± 18,8

0,00[a]

Vitalidade

55,6 ± 20,5

38,4 ± 17,2

0,00[a]

Aspectos sociais

67,3 ± 25,5

50,3 ± 18,1

0,00[a]

Aspectos emocionais

57,7 ± 38,4

40,8 ± 39,7

0,09[a]

Saúde mental

69,7 ± 17,8

53,2 ± 17,8

0,00[a]

Zoom Image
Fig. 3. Domínios do SF-36 de acordo com a presença ou não de burnout grave entre os residentes. r, coeficiente de correlação de grau de Spearman

#
#

Discussão

O estresse causa baixa qualidade de vida, queda na produtividade, absenteísmo, gastos consideráveis com assistência médica, e insatisfação pessoal. Burnout é a resposta a um estado prolongado de estresse, ocorrendo por sua cronificação quando os métodos de enfrentamento falharam ou foram insuficientes.[18] [19] [20] [21] A síndrome é geralmente acompanhada por uma série de sintomas como sentimentos de desamparo e desesperança, falta de entusiasmo no trabalho e na vida em geral, desilusão, autoconceito negativo, atitudes negativas em relação ao trabalho e parceiros, entre outros.[18] [19] [20] [21]

O instrumento mais utilizado para avaliar o burnout no trabalho é o MBI, e a escala foi validada em múltiplas populações médicas e não médicas.[15] [22] As três dimensões do MBI geram escores, e há uma variabilidade considerável na forma como os pesquisadores definem o burnout.[15] De acordo com Maslach et al.,[9] um alto grau de burnout é refletido em altas pontuações nas subescalas MBI_EE e MBI_DP e pontuações baixas na subescala MBI_PA. Doulougeri et al.[15] identificaram que a combinação de alta MBI_EE, alta MBI_DP e baixa MBI_PA ou alta MBI_EE e/ou alta MBI_DP é a mais utilizada em artigos publicados. Embora, em alguns estudos, os escores de corte difiram dos de Maslach et al.[9] em > 79% dos estudos, uma alta MBI_EE foi definida como ≥ 27. Em relação à análise dos dados, o MBI pode ser analisado como variável continua. Alternativamente, cada área pode ser classificada de acordo com as pontuações de corte e, finalmente, uma dicotomia de com burnout/sem burnout também é possível.[15] No presente estudo, os valores das categorias de MBI foram analisados como variáveis contínuas e categóricas, sem diferença de resultados independentemente do método de análise utilizado. Além disso, para analisar os fatores de risco para burnout grave, utilizou-se uma abordagem dicotomizada.

Acredita-se que os profissionais de saúde sejam particularmente suscetíveis ao burnout em comparação com o público em geral.[16] [22] Entre os cirurgiões ortopédicos, a prevalência de burnout varia de 50 a 60%, com burnout grave em até 10%.[1] [16] [17] A prevalência de burnout é maior no início da carreira dos cirurgiões ortopédicos.[1] [4] Sargent et al.[4] mostraram que estes estão mais exaustos emocionalmente, mais despersonalizados e têm menos realização pessoal do que seus docentes. Resultados semelhantes foram relatados em outros estudos.[23] [24] [25] No presente estudo, observou-se alta prevalência de síndrome de burnout entre os residentes. Embora os residentes tenham apresentado valores sempre superiores aos dos estudantes de medicina, estes valores foram significativos apenas para o MBI_DP. Uma possível interpretação destes achados é que não houve intenção deliberada por parte dos residentes de superestimar os efeitos do estresse no trabalho.

Crises agudas de saúde colocam os serviços de saúde sob pressão, tornando o ambiente ainda mais estressante. Dados de epidemias anteriores mostram que os profissionais de saúde podem experimentar uma ampla gama de morbidades psicológicas.[26] A pandemia de COVID-19 causou um tremendo impacto nos sistemas de saúde em todo o mundo. Como resultado, a atenção à segurança dos profissionais de saúde tornou-se uma preocupação.[27] Surpreendentemente, o estresse relacionado à pandemia não necessariamente aumenta a prevalência de burnout. Wu et al. reportaram que a frequência de burnout foi reduzida nos trabalhadores da linha de frente. Eles propuseram que, ao abordar diretamente o vírus, eles poderiam ter uma maior sensação de controle de situação, a qual diminui as chances de burnout.[28] No presente estudo, a pandemia de COVID-19 não aumentou a prevalência de burnout nos residentes. Cirurgiões ortopédicos não são a linha de frente no gerenciamento do COVID-19, mas muitos pacientes ortopédicos podem ser portadores do vírus. Os residentes no presente estudo eram em sua maioria jovens e, portanto, menos suscetíveis a casos graves de COVID-19. Este fato pode ter reduzido o estresse relacionado ao risco de infecção.

No presente estudo, foram avaliadas características sociodemográficas e fatores de risco entre os residentes para o desenvolvimento da forma grave da síndrome de burnout, presente em 30% dos residentes. Identificamos que valores baixos em quase todos os domínios SF-36 podem ser um preditor da forma grave da síndrome de burnout. O SF-36 é um instrumento de avaliação de qualidade de vida. Muitas ferramentas online permitem obter resultados individuais do SF-36 em poucos minutos. Assim, o SF-36 pode ser mais acessível para triagem e monitoramento de médicos residentes em risco de burnout. Os programas de residência variam amplamente entre países ou especialidades, o que deve ser levado em conta ao analisar nossos resultados. No Brasil, a residência médica em ortopedia tem duração mínima de 3 anos, com carga horária regulamentada pela lei de no máximo 60 horas semanais. Anos adicionais de treinamento são opcionais.

A pandemia de COVID-19 causou uma redução no número de cirurgias eletivas, o que pode ter gerado ansiedade entre os residentes devido à perda do tempo de treinamento. Medidas de distanciamento social também restringiram severamente as atividades clínicas, causando impacto na aprendizagem. No entanto, o uso de ferramentas tecnológicas permitiu que grande parte das atividades de ensino fosse transferida para o espaço virtual, reduzindo os danos à teoria. Este fato pode ter reduzido o estresse associado ao medo de perder tempo de treinamento na residência médica.

O presente estudo tem como limitações um pequeno tamanho amostral e o fato de ser restrito aos residentes que estavam treinando no mesmo hospital. No entanto, a adição de um grupo de controle formado por estudantes de medicina permitiu estabelecer parâmetros para avaliar se os residentes não superestimaram os efeitos do estresse no trabalho. Há muitas preocupações relacionadas com a interpretação dos resultados do MBI. O uso de uma segunda ferramenta de avaliação nos permitiu controlar os resultados e confirmar a relação entre qualidade de vida e burnout. Por fim, a possibilidade de realizar avaliações antes e depois de uma mudança drástica no ambiente de trabalho causada pela pandemia sugere que a síndrome de burnout é principalmente resultado do estresse crônico.


#

Conclusão

A prevalência de síndrome de burnout e da forma grave da doença foi elevada entre os residentes em cirurgia ortopédica. Valores baixos nos domínios SF-36 podem ser um preditor da forma grave da síndrome de burnout. A prevalência de burnout não mudou como resultado da pandemia de COVID-19.


#
#

Conflito de Interesses

Os autores não têm conflito de interesses a declarar.

Suporte Financeiro

Não houve suporte financeiro de fontes públicas, comerciais, ou sem fins lucrativos.


* Estudo realizado no Hospital Manoel Victorino, Salvador, BA, Brasil.


  • Referências

  • 1 Hui RWH, Leung KC, Ge S. et al. Burnout em cirurgiões ortopédicos: Uma revisão sistemática. J Clin Orthop Trauma 2019; 10 (Suppl. 01) S47-S52
  • 2 Marsh JL. Evitando o burnout em uma prática de trauma ortopédico. J Orthop Trauma 2012; 26 (09, Suppl 1): S34-S36
  • 3 Pellegrini Jr. VD. Uma perspectiva sobre o efeito da Semana de Trabalho de 80 Horas: Mudou o residente ortopédico graduado?. J Am Acad Orthop Surg 2017; 25 (06) 416-420
  • 4 Sargent MC, Sotile W, Sotile MO, Rubash H, Barrack RL. Qualidade de vida durante a formação ortopédica e a prática acadêmica. Parte 1: residentes em cirurgia ortopédica e professores. J Bone Joint Surg Am 2009; 91 (10) 2395-2405
  • 5 Guo X, Wang J, Hu D. et al. Pesquisa da Doença COVID-19 entre cirurgiões ortopédicos em Wuhan, República Popular da China. J Bone Joint Surg Am 2020; 102 (10) 847-854
  • 6 Chang Liang Z, Wang W, Murphy D, Po Hui JH. Novo Coronavírus e Cirurgia Ortopédica: Experiências Precoces de Cingapura. J Bone Joint Surg Am 2020; 102 (09) 745-749
  • 7 Santos CF. Reflexões sobre o impacto da pandemia SARS-COV-2/COVID-19 na saúde mental. Psiquiatria BR J 2020; 42 (03) 329-329
  • 8 Maslach C, Jackson SE, Leiter MP. Avaliando o Estresse: Um Livro de Recursos. 3ª ed. In: Zalaquett CP, Wood RJ. eds. Avaliação stress: A Book of Resources. Londres: Scarecrow Press, Inc.; 1997: 191-218
  • 9 Maslach C, Schaufeli WB, Leiter MP. Burnout de trabalho. Annu Rev Psychol 2001; 52 (01) 397-422
  • 10 Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. Tradução para o português e validação do questionário genérico de avaliação de qualidade de vida estudo 36-item de pesquisa de saúde de forma curta (SF-36). Rev Bras Reumatol 1999; 39 (03) 143-150
  • 11 Laguardia J, Campos MR, Travassos C, Najar AL, Anjos LA, Vasconcellos MM. Dados normativos brasileiros para o questionário Short Form 36, versão 2. Rev Bras Epidemiol 2013; 16 (04) 889-897
  • 12 Ware JE, Sherbourne CD. A Pesquisa de Saúde de Forma Curta MOS 36-ltem (SF-36). Med Care 1992; 30 (06) 473-483
  • 13 McHorney CA, Ware Jr JE, Lu JF, Sherbourne CD. MOS 36-item Pesquisa de Saúde de Forma Curta (SF-36): III. Testes de qualidade de dados, suposições de escala e confiabilidade em diversos grupos de pacientes. Med Care 1994; 32 (01) 40-66
  • 14 Maslach C, Leiter MP, Schaufeli WB. Medindo burnout. In: Cartwright S, Cooper CL. ed. O Manual de Bem-Estar Organizacional de Oxford. Oxford University Press; 2008: 86-108
  • 15 Doulougeri K, Georganta K, Montgomery A. "Diagnosticando burnout" entre os profissionais de saúde: Podemos encontrar consenso?. Cogent Med 2016;3
  • 16 Arora M, Diwan AD, Harris IA. Burnout em cirurgiões ortopédicos: uma revisão. ANZ J Surg 2013; 83 (7-8): 512-515
  • 17 Faivre G, Marillier G, Nallet J, Nezelof S, Clment I, Obert L. Os cirurgiões ortopédicos e de trauma franceses são afetados pelo burnout? Resultados de uma pesquisa nacional. Orthop Traumatol Surg Res 2019; 105 (02) 395-399
  • 18 Horn DJ, Johnston CB. Burnout e Autocuidado para praticantes de cuidados paliativos. Med Clin North Am 2020; 104 (03) 561-572
  • 19 Kaschka WP, Korczak D, Broich K. Burnout: um diagnóstico da moda. Dtsch Arztebl Int 2011; 108 (46) 781-787
  • 20 Thomas NK. Residente burnout. JAMA 2004; 292 (23) 2880-2889
  • 21 Danhof-Pont MB, van Veen T, Zitman FG. Biomarcadores em burnout: uma revisão sistemática. J Psychosom Res 2011; 70 (06) 505-524
  • 22 Shanafelt TD, Boone S, Tan L. et al. Burnout e satisfação com o equilíbrio entre a vida profissional e profissional entre os médicos dos EUA em relação à população geral dos EUA. Arch Intern Med 2012; 172 (18) 1377-1385
  • 23 van Vendeloo SN, Marca PLP, Verheyen CCPM. Burnout e qualidade de vida entre os estagiários ortopédicos em um programaeducacional moderno: importância do clima de aprendizagem. Articulação óssea J 2014; 96-B (08) 1133-1138
  • 24 Benson S, Sammour T, Neuhaus SJ, Findlay B, Hill AG. Burnout in Australasian Younger Fellows. ANZ J Surg 2009; 79 (09) 590-597
  • 25 Siddiqui AA, Jamil M, Kaimkhani GM. et al. Burnout entre cirurgiões ortopédicos e residentes no Paquistão. Cureus 2018; 10 (08) e3096
  • 26 Galbraith N, Boyda D, McFeeters D, Hassan T. The mental health of doctors during the COVID-19 pandemic. BJPsych Bull 2021; 45 (02) 93-97
  • 27 Raudenská J, Steinerová V, Javěrková A. et al. Síndrome de burnout ocupacional e estresse pós-traumático entre profissionais de saúde durante a nova doença coronavírus 2019 (COVID-19) pandemia. Melhor Pract Res Clin Anestesiológico 2020; 34 (03) 553-560
  • 28 Wu Y, Wang J, Luo C. et al. Uma comparação da frequência de burnout entre médicos e enfermeiros de oncologia que trabalham na linha de frente e enfermarias habituais durante a epidemia COVID-19 em Wuhan, China. J Pain Symptom Manage 2020; 60 (01) e60-e65

Endereço para correspondência

Matheus Lemos Azi, MD, Ph.D
Hospital Manoel Victorino
Secretaria de Saúde do estado da Bahia, Praça Conselheiro Almeida Couto, S/N, Salvador, Bahia, 40050-410
Brasil   

Publikationsverlauf

Eingereicht: 19. August 2020

Angenommen: 01. Dezember 2020

Artikel online veröffentlicht:
11. September 2021

© 2021. Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution-NonDerivative-NonCommercial License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit. Contents may not be used for commecial purposes, or adapted, remixed, transformed or built upon. (https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/)

Thieme Revinter Publicações Ltda.
Rua do Matoso 170, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20270-135, Brazil

  • Referências

  • 1 Hui RWH, Leung KC, Ge S. et al. Burnout em cirurgiões ortopédicos: Uma revisão sistemática. J Clin Orthop Trauma 2019; 10 (Suppl. 01) S47-S52
  • 2 Marsh JL. Evitando o burnout em uma prática de trauma ortopédico. J Orthop Trauma 2012; 26 (09, Suppl 1): S34-S36
  • 3 Pellegrini Jr. VD. Uma perspectiva sobre o efeito da Semana de Trabalho de 80 Horas: Mudou o residente ortopédico graduado?. J Am Acad Orthop Surg 2017; 25 (06) 416-420
  • 4 Sargent MC, Sotile W, Sotile MO, Rubash H, Barrack RL. Qualidade de vida durante a formação ortopédica e a prática acadêmica. Parte 1: residentes em cirurgia ortopédica e professores. J Bone Joint Surg Am 2009; 91 (10) 2395-2405
  • 5 Guo X, Wang J, Hu D. et al. Pesquisa da Doença COVID-19 entre cirurgiões ortopédicos em Wuhan, República Popular da China. J Bone Joint Surg Am 2020; 102 (10) 847-854
  • 6 Chang Liang Z, Wang W, Murphy D, Po Hui JH. Novo Coronavírus e Cirurgia Ortopédica: Experiências Precoces de Cingapura. J Bone Joint Surg Am 2020; 102 (09) 745-749
  • 7 Santos CF. Reflexões sobre o impacto da pandemia SARS-COV-2/COVID-19 na saúde mental. Psiquiatria BR J 2020; 42 (03) 329-329
  • 8 Maslach C, Jackson SE, Leiter MP. Avaliando o Estresse: Um Livro de Recursos. 3ª ed. In: Zalaquett CP, Wood RJ. eds. Avaliação stress: A Book of Resources. Londres: Scarecrow Press, Inc.; 1997: 191-218
  • 9 Maslach C, Schaufeli WB, Leiter MP. Burnout de trabalho. Annu Rev Psychol 2001; 52 (01) 397-422
  • 10 Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. Tradução para o português e validação do questionário genérico de avaliação de qualidade de vida estudo 36-item de pesquisa de saúde de forma curta (SF-36). Rev Bras Reumatol 1999; 39 (03) 143-150
  • 11 Laguardia J, Campos MR, Travassos C, Najar AL, Anjos LA, Vasconcellos MM. Dados normativos brasileiros para o questionário Short Form 36, versão 2. Rev Bras Epidemiol 2013; 16 (04) 889-897
  • 12 Ware JE, Sherbourne CD. A Pesquisa de Saúde de Forma Curta MOS 36-ltem (SF-36). Med Care 1992; 30 (06) 473-483
  • 13 McHorney CA, Ware Jr JE, Lu JF, Sherbourne CD. MOS 36-item Pesquisa de Saúde de Forma Curta (SF-36): III. Testes de qualidade de dados, suposições de escala e confiabilidade em diversos grupos de pacientes. Med Care 1994; 32 (01) 40-66
  • 14 Maslach C, Leiter MP, Schaufeli WB. Medindo burnout. In: Cartwright S, Cooper CL. ed. O Manual de Bem-Estar Organizacional de Oxford. Oxford University Press; 2008: 86-108
  • 15 Doulougeri K, Georganta K, Montgomery A. "Diagnosticando burnout" entre os profissionais de saúde: Podemos encontrar consenso?. Cogent Med 2016;3
  • 16 Arora M, Diwan AD, Harris IA. Burnout em cirurgiões ortopédicos: uma revisão. ANZ J Surg 2013; 83 (7-8): 512-515
  • 17 Faivre G, Marillier G, Nallet J, Nezelof S, Clment I, Obert L. Os cirurgiões ortopédicos e de trauma franceses são afetados pelo burnout? Resultados de uma pesquisa nacional. Orthop Traumatol Surg Res 2019; 105 (02) 395-399
  • 18 Horn DJ, Johnston CB. Burnout e Autocuidado para praticantes de cuidados paliativos. Med Clin North Am 2020; 104 (03) 561-572
  • 19 Kaschka WP, Korczak D, Broich K. Burnout: um diagnóstico da moda. Dtsch Arztebl Int 2011; 108 (46) 781-787
  • 20 Thomas NK. Residente burnout. JAMA 2004; 292 (23) 2880-2889
  • 21 Danhof-Pont MB, van Veen T, Zitman FG. Biomarcadores em burnout: uma revisão sistemática. J Psychosom Res 2011; 70 (06) 505-524
  • 22 Shanafelt TD, Boone S, Tan L. et al. Burnout e satisfação com o equilíbrio entre a vida profissional e profissional entre os médicos dos EUA em relação à população geral dos EUA. Arch Intern Med 2012; 172 (18) 1377-1385
  • 23 van Vendeloo SN, Marca PLP, Verheyen CCPM. Burnout e qualidade de vida entre os estagiários ortopédicos em um programaeducacional moderno: importância do clima de aprendizagem. Articulação óssea J 2014; 96-B (08) 1133-1138
  • 24 Benson S, Sammour T, Neuhaus SJ, Findlay B, Hill AG. Burnout in Australasian Younger Fellows. ANZ J Surg 2009; 79 (09) 590-597
  • 25 Siddiqui AA, Jamil M, Kaimkhani GM. et al. Burnout entre cirurgiões ortopédicos e residentes no Paquistão. Cureus 2018; 10 (08) e3096
  • 26 Galbraith N, Boyda D, McFeeters D, Hassan T. The mental health of doctors during the COVID-19 pandemic. BJPsych Bull 2021; 45 (02) 93-97
  • 27 Raudenská J, Steinerová V, Javěrková A. et al. Síndrome de burnout ocupacional e estresse pós-traumático entre profissionais de saúde durante a nova doença coronavírus 2019 (COVID-19) pandemia. Melhor Pract Res Clin Anestesiológico 2020; 34 (03) 553-560
  • 28 Wu Y, Wang J, Luo C. et al. Uma comparação da frequência de burnout entre médicos e enfermeiros de oncologia que trabalham na linha de frente e enfermarias habituais durante a epidemia COVID-19 em Wuhan, China. J Pain Symptom Manage 2020; 60 (01) e60-e65

Zoom Image
Fig. 1 Componentes do Inventário Maslach Burnout antes e durante o surto de COVID-19. MBI_EE, componente de exaustão emocional do Inventário Maslach Burnout; MBI_DP, componente de despersonalização do Inventário Maslach Burnout; MBI_PA, componente de realização pessoal do Inventário Maslach Burnout; Alfa, α de Cronbach.
Zoom Image
Fig. 2 Domínios do SF-36 antes e durante o surto de COVID-19. Alfa, α de Cronbach.
Zoom Image
Fig. 3. Domínios do SF-36 de acordo com a presença ou não de burnout grave entre os residentes. r, coeficiente de correlação de grau de Spearman
Zoom Image
Fig. 1 Maslach Burnout Inventory components before and during the COVID-19 outbreak. MBI_EE, Maslach Burnout Inventory emotional exhaustion component; MBI_DP, Maslach Burnout Inventory depersonalization component; MBI_PA, Maslach Burnout Inventory personal fulfillment component; Alpha, Cronbach's α,
Zoom Image
Fig. 2 SF-36 domains before and during the COVID-19 outbreak. Alpha, Cronbach's α,
Zoom Image
Fig. 3. SF-36 domains according to the presence or not of severe burnout within residents. r, Spearman's rank correlation coefficient