Palavras-chave
artroplastia do joelho - artrose - prótese do joelho - cimentação
Introdução
A osteoartrose (OA) é uma doença articular degenerativa que evolui com processo inflamatório crônico, causando degeneração articular. Caracteriza-se por dor, rigidez matinal, crepitação, atrofia muscular e, no que tange aos aspectos radiográficos, observa-se estreitamento do espaço articular, formações de osteófitos, esclerose do osso subcondral e formações císticas.[1]
A etiologia pode ser idiopática ou pós-traumática. A pós-traumática pode acometer qualquer idade. A idiopática, com fortes indícios genéticos, acomete principalmente indivíduos mais idosos, embora também ocorra em adultos de meia idade, em especial mulheres, entre a 5ª e a 6ª décadas de vida e no período pós-menopausa. É interessante que, abaixo dos 40 anos, sua ocorrência é praticamente igual para ambos os sexos. Estima-se que a maioria da população acima dos 65 anos irá sofrer com algum grau de OA, que é, no envelhecimento, a principal causa de incapacitação funcional quando comparada a qualquer outra enfermidade. E nessa faixa etária, cerca de 50% apresentará artrose no joelho.[1]
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Na falha do tratamento conservador, a artroplastia total do joelho (ATJ) tem sido bem estabelecida restaurando a função, aliviando a dor e corrigindo as deformidades e instabilidades, tornando-se uma opção mesmo para pacientes mais jovens com artrite grave de joelho.[1]
As taxas anuais de ATJ estão aumentando progressivamente em razão da longevidade da população, atrelado ao fato de que cirurgias vem sendo realizadas em pacientes cada vez mais jovens. Um importante estudo mostrou que as revisões de ATJ nos Estados Unidos duplicaram no ano de 2015 e terão aumento da ordem de 600% até o ano de 2030.[2]
Pacientes mais jovens, com maior expectativa de vida, nível mais alto de atividade e exigência do implante, requerem uma fixação segura para garantir a longevidade dos componentes e a redução das revisões. Contudo, a utilização de fixação cimentada, embora demonstre excelentes resultados, tem sido reexaminada.[3]
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A fixação ideal de uma ATJ ainda é debatida. A principal questão é se o uso de cimento é mais eficiente do que a fixação press-fit em termos de assegurar a estabilidade durável. O uso de cimento em ATJ tem sido associado com excelentes resultados clínicos e baixos índices de soltura asséptica em longo prazo de seguimento, sendo o método mais comum de fixação. No entanto, alterações da interface cimento-osso, considerada zona crítica de estresse e soltura, fomentaram a busca de novos métodos de fixação dos componentes.[5]
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Os potenciais benefícios da fixação não cimentada incluem a preservação do osso, menor tempo de cirurgia, facilidade de revisão e eliminação de complicações associadas à fixação cimentada, incluindo desgaste e retenção de fragmentos soltos de cimento, extrusão do mesmo, resposta biológica ao polimetilmetacrilato, trombose venosa profunda, choque, além de necrose térmica devido à sua polimerização. Por fim, as revisões de artroplastias cimentadas são tecnicamente mais complicadas em relação aos implantes não cimentados, particularmente por conta da perda óssea frequente após a remoção dos componentes e cimento residual.[9]
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A fixação cimentada é conhecida por proporcionar uma boa fixação inicial e não migrar no período pós-operatório imediato, embora possa apresentar micro movimento em 60 meses. Já a interface não cimentada pode migrar mais cedo, ou seja, nos primeiros 3 meses de pós-operatório, geralmente atingindo estabilidade após esse intervalo; porém, após a osteointegração entre o osso e o metal, há formação de uma ligação biológica que tende a proporcionar melhores resultados em longo prazo.[12]
[13] A soltura tibial precoce ainda é o principal problema apontado pelos críticos da técnica sem cimento.
O principal parâmetro para avaliar a soltura dos componentes das artroplastias é a presença de linhas de radioluscência nas radiografias pós-operatórias, situadas na periferia dos componentes descritos pela The Knee Society[14] ([Figuras 1] e [2]). Sendo significantes radioluscências com mais de 1 mm de aumento da sua largura observado na evolução e migração dos componentes. As linhas de radioluscência podem estar presentes desde o pós-operatório imediato e só se tornarão uma preocupação quando houver modificação de seu padrão ao longo do acompanhamento, o que pode significar a soltura dos componentes e a necessidade de revisão da artroplastia.
Fig. 1 Zonas ao redor dos componentes da prótese onde deve-se observar radioluscências no componente tibial. 1 e 2 - platô medial; 3 e 4 - platô lateral; 5, 6 e 7 - ao redor da haste.
Fig. 2 Zonas ao redor dos componentes da prótese onde deve-se observar radioluscências no componente femoral. 1 e 2 - região anterior; 3 e 4 - área posterior; 5, 6 e 7 - haste e porção central.
Desse modo, neste estudo, objetivou-se avaliar em curto prazo se houve soltura precoce de componentes da prótese de joelho não cimentada Score (Amplitude Surgical SAS, Valence, France).
Casuística e Método
O trabalho foi submetido para avaliação do comitê de ética em pesquisa desta instituição e aprovado para execução conforme o número certificado de apresentação de apreciação ética (CAAE) - 27786119.2.0000.5625, parecer: 3.814.869.
Este é um estudo longitudinal descritivo de caráter observacional, não comparativo, de série de casos, em um único centro, todos operados pelo mesmo cirurgião (S. M.), avaliando soltura precoce dos componentes de próteses não cimentadas através de estudo radiográfico estático de controle anual.
Utilizou-se como critérios de inclusão:
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Artroplastia total não cimentada;
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Índice de massa corporal (IMC) ˂ 35 kg/m2;
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Tempo de seguimento pós-operatório mínimo de 2 anos;
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Ter lido e assinado o termo de consentimento livre e esclarecido (formulado obedecendo às recomendações da Resolução n° 466 de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde), declarando ter compreendido todas as explicações e ter concordado plenamente com a pesquisa.
Excluindo-se pacientes:
-
Que tiveram artroplastia anterior a esta cirurgia;
-
Doenças metabólicas e reumatológicas;
-
Infecção ou malignidade ativa.
Foram incluídas todas as artroplastias não cimentadas que se enquadraram nos critérios de inclusão e exclusão realizadas no período de março de 2012 a outubro de 2014.
Todas as cirurgias foram realizadas através de via de acesso parapatelar medial, sacrificando o ligamento cruzado posterior utilizando prótese total de joelho não cimentada de plataforma rotatória Score, com estabilização ultra-congruente, em que os componentes femorais e tibiais são de cromo-cobalto com duplo revestimento de titânio e revestimento poroso de 80 micrômetros de hidroxiapatita. O componente patelar de polietileno, em cúpula, com três pinos de fixação, cimentado, só não foi utilizado em dois pacientes, três joelhos. Foi colocado dreno a vácuo em todos os casos, sendo retirado quando o débito era menor que 50 ml em 24 horas, não ultrapassando 48 horas, independente do débito.
Os pacientes receberam alta hospitalar no 3° dia pós-operatório, permitindo carga total com auxílio de andador para equilíbrio e iniciando fisioterapia ambulatorial para ganho de amplitude de movimentos. Foram avaliados com 1, 3, 6 e 12 e 24 semanas. Após esta fase inicial, tiveram retorno ambulatorial a cada 6 meses até 1 ano, quando foi realizado controle radiográfico de rotina.
As radiografias do joelho operado, na posição de frente ortostática e em perfil absoluto do joelho com 30 graus de flexão, foram analisadas por 2 cirurgiões com experiência em artroplastia, cegos entre si, com ênfase no padrão de possíveis linhas de radioluscência no fêmur e na tíbia, utilizando os parâmetros da The Knee Society para avaliação dos implantes e progressão da radioluscência[15] ([Tabela 1]; [Figuras 1] e [2]).
Tabela 1
Linha de radioluscência
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Interpretação
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≤ 0,4 mm
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Normal
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De 0,5–0,9 mm
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Acompanhar a cada 3 meses se há progressão
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≥ 1 mm
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Possível ou iminente falha
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Resultados
Foram avaliadas 46 artroplastias em 40 pacientes (6 bilaterais) não cimentadas, com plataforma rotatória Score, realizadas no período de março de 2012 a outubro de 2014. As características dessa população são apresentadas na [Tabela 2].
Tabela 2
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Idade (anos)
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Sexo
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Lado
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Tempo de seguimento
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40 pacientes
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Mínima: 46,9
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F: 30
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D: 26
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Mínimo: 2 anos
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46 artroplastias
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Máxima: 83,0
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M: 10
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E: 20
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Máximo: 5,75 anos
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(6 bilaterais)
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Média: 60,8
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Médio: 3,75 anos
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Na análise das radiografias, não encontramos linhas de radioluscência ao redor do fêmur. Na análise do componente tibial, foram observadas linhas de radioluscência em 6 (13,0%) artroplastias, sendo 5 (10,8%) na visão ânteroposterior (AP) e 1 (2,2%) na visão em perfil (P), ocorrendo principalmente nas zonas 1 e 4, com espessura média de 1 mm, presentes desde o início e não progressivas ([Tabela 3], [Figuras 1]
[2]
[3]).
Tabela 3
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Linhas de radioluscência (AP)
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Linhas de radioluscência (P)
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Total
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Fêmur
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0
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0
|
0
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Tíbia
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5 (10,8%)
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1 (2,2%)
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6 (13,0%)
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Fig. 3 Radiografias demostrando prótese total do joelho sem cimentação e sem linhas radioluscentes ao redor dos componentes.
Portanto, nenhum caso apresentou suspeita de soltura ou instabilidade dos componentes e nenhuma revisão de artroplastia devido à falha mecânica foi realizada.
Houve necessidade de revisão por infecção, e não por soltura da prótese, após 7 meses, em um paciente com válvula cardíaca em uso de anticoagulante oral e descontrole da coagulação, evoluindo com hemartroses de repetição e infecção hematogênica, pois em momento algum foi realizada punção articular. Após insucesso com limpeza e conservação do implante, optou-se pela sua retirada, quando foi observada ótima osteointegração dos componentes femoral e tibial, estando, portanto, fixos ([Figuras 4] e [5]).
Fig. 4 Componentes da prótese do paciente n°20, que foi retirada devido a infecção. Observa-se integração óssea nas superfícies porosas da prótese.
Fig. 5 Radiografia da paciente n° 22, demonstrando prótese total do joelho esquerdo e osteossíntese no fêmur ipsilateral.
Outro paciente, com 3 anos de pós-operatório, sofreu trauma com fratura femoral periprotética, e foi submetido à redução e fixação interna com placa bloqueada, mantendo a fixação do componente e boa evolução ([Figura 6]).
Fig. 6 Demonstrando discreta linha de radioluscência ao redor do componente tibial da prótese, que não foi progressiva, portanto não constitui caso de soltura do implante.
Discussão
O estudo da fixação sem cimento na ATJ começou a ser utilizado em meados dos anos 80 depois de estudos laboratoriais mostrarem que o crescimento ósseo para a estabilidade da interface implante-osso interfere na durabilidade do componente fixado.[16]
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Em estudos que analisaram a migração de implantes sem cimento, foi demonstrado haver algum grau de migração dos componentes nos primeiros 6 meses até que ocorra a osteointegração e sua estabilização. Já os implantes cimentados apresentam migração inicial menor, porém constante ao longo de 5 anos.[12]
A presença de radioluscência ao redor do implante sem cimento não significa necessariamente a soltura do componente ([Figura 6]), sendo possivelmente decorrente da migração inicial do mesmo, podendo não apresentar soltura dos implantes,[13] ou mesmo radioluscência em região de osso ebúrneo presente antes da cirurgia, que acontece tanto nas próteses cimentadas como nas não cimentadas.[18]
Existem inúmeros parâmetros de avaliação e quantificação das linhas de radioluscência e da soltura dos componentes da artroplastia. O mais utilizado atualmente é a classificação da The Knee Society (Sociedade do Joelho americana) baseada em radiografias do joelho de frente e perfil, em que as linhas de radioluscência são quantificadas de acordo com sua localização ao redor dos componentes tibial e femoral.[14] Geralmente, esta avaliação é realizada por cirurgiões experientes que determinam se os componentes são estáveis ou instáveis. Estudos com radiostereografia ou radiografias dinâmicas podem sensibilizar o diagnóstico de instabilidade e soltura dos componentes da prótese.[10]
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Na literatura encontra-se uma média de 1.4 mm de radioluscência no fêmur, principalmente nos segmentos 1 e 2, em seguimentos de longo prazo. Não observamos essas linhas no fêmur nos nossos casos avaliados em curto período pós-operatório. Já na tíbia, a literatura mostra essas linhas radioluscentes de 1,4 mm, principalmente nas zonas 1 e 4, ou seja, na periferia medial e lateral do implante, num seguimento médio de 10 anos. Esse resultado é semelhante ao encontrado em nossa série, sendo que obtivemos uma média de 1 mm nas mesmas localizações.
Ao longo de décadas, estudos in vitro demonstraram que a utilização de plataformas rotatórias em ATJs não cimentadas estão associadas com um melhor desempenho fisiológico e sobrevivência do implante, bem como com a redução das tensões na interface osso-metal. Vários estudos no cenário clínico também mostraram sobrevivência em longo prazo de press-fit com plataformas rotativas, com aumento de 83% para 99,4%.[21] Em nossa série, usamos em todos os casos a prótese Score não cimentada com plataforma rotatória. Não temos experiência para compará-la com próteses sem cimento com plataforma fixa.
Para uma osteointegração adequada, é fundamental que os cortes ósseos sejam muito precisos e a prótese de teste apresente um ótimo press-fit. Caso isso não ocorra, é melhor mudar o planejamento e colocar a prótese cimentada. Por isso é importante dispor dos dois tipos de implante na sala de cirurgia.
Por fim, outro ponto importante para bons resultados nas artroplastias sem cimento é o revestimento bioativo dos componentes, principalmente o componente tibial, proporcionando menos migração. Os estudos de análise radiostereográfica têm mostrado resultados diferentes quando se avalia componentes tibiais não cimentados revestidos com hidroxiapatita em comparação com componentes tibiais cimentados.[10] Em um estudo prospectivo de pacientes jovens e ativos, Tai e Cross avaliaram 118 joelhos com implantes sem cimento revestidos com hidroxiapatita (Ativo; DJ Ortho, Sydney, Austrália) por um período de 5 a 12 anos.[16] Duas revisões da tíbia por soltura asséptica e troca de um polietileno foram realizadas. A taxa de sobrevivência cumulativa foi 92,1% (incluindo o caso da troca de polietileno).[14]
Apesar da artroplastia sem cimento do joelho ter sido desenvolvida voltada para jovens com maior nível de atividade física, estudos recentes mostraram resultados semelhantes quanto à sobrevida deste tipo de implante na população acima dos 75 anos.[22] E, em pacientes obesos mórbidos, os resultados foram melhores do que os das cirurgias com implantes cimentados.[23]
Portanto, faz-se necessário aprofundar o estudo nessa linha de artroplastias, a qual pode ser uma tendência nas próteses de joelho, sobretudo em pacientes jovens, ativos, com alta demanda, com possibilidade de estender essa indicação num futuro próximo.
Conclusão
Não obstante, a geração atual de implantes sem cimento apresenta resultados excelentes não somente em relação ao press-fit, mas também em proporcionar estabilidade inicial aos componentes e permitir uma interface implante-osso mais biológica.
Apesar das limitações do nosso estudo – curto tempo de seguimento, não-randomização da amostra e o fato de um único cirurgião ter realizado todas as cirurgias – o ponto relevante evidenciado no estudo foi a ausência de soltura das próteses no período acompanhado.