CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2022; 57(04): 675-681
DOI: 10.1055/s-0041-1731798
Artigo Original
Joelho

Estudo epidemiológico das lesões multiligamentares do joelho[*]

Article in several languages: português | English
1   Centro de Atenção Especializada ao Joelho, Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
,
Igor Stefano Menescal Pedrinha
1   Centro de Atenção Especializada ao Joelho, Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
,
Phelippe Augusto Valente Maia
1   Centro de Atenção Especializada ao Joelho, Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
,
André Rodrigues de Oliveira Cortes
1   Centro de Atenção Especializada ao Joelho, Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
,
Rodrigo Pires e Albuquerque
1   Centro de Atenção Especializada ao Joelho, Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
,
João Maurício Barretto
1   Centro de Atenção Especializada ao Joelho, Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
› Author Affiliations
 

Resumo

Objetivo Descrever e associar as características das lesões multiligamentares de joelho com o perfil do paciente e mecanismo de trauma.

Métodos Trata-se de um estudo transversal que avaliou 82 pacientes com lesões multiligamentares do joelho de setembro de 2016 até setembro de 2018. As variáveis coletadas foram idade, gênero, eixo mecânico, lateralidade, arco de movimento, mecanismo do trauma, lesões associadas, ligamentos afetados e afastamento do trabalho.

Resultados A amostra incluiu pacientes de 16 a 58 anos, com média de 29,7 anos, e os homens foram os mais afetados, correspondendo a 92,7% dos casos. O mecanismo de trauma mais comum foi acidente motociclístico (45,1%). O ligamento mais lesado foi o ligamento cruzado anterior (80,5%), seguido do ligamento cruzado posterior (77,1%), do canto posterolateral (61,0%) e do ligamento colateral tibial (26,8%). O tipo de luxação mais frequente era o KD IIIL (30,4%). Apenas 1 paciente apresentou lesão vascular, e 13 (15,9%) apresentaram lesões neurológicas. A maioria das vítimas foi afastada do trabalho (52,4%).

Conclusão Há grande diferença entre os pacientes que apresentam lesão multiligamentar no Brasil em relação ao encontrado nos estudos internacionais. Desta forma, convém realizar mais estudos específicos sobre o tema com a nossa população, de modo a aperfeiçoar o tratamento destes pacientes.


#

Introdução

As lesões multiligamentares do joelho são patologias complexas, raras e de difícil tratamento, que geralmente resultam de uma luxação traumática do joelho. Após esse evento, comumente ocorrem lesões de múltiplas estruturas, incluindo os estabilizadores do joelho e estruturas neurovasculares. As lesões multiligamentares são caracterizadas pelo acometimento de dois ou mais ligamentos do joelho, como os ligamentos cruzados, colateral tibial e canto posterolateral, gerando grande instabilidade.[1] [2] [3]

O deslocamento completo da articulação tibiofemoral tem alto potencial para complicações graves, como as lesões neurovasculares (artéria poplítea, nervo fibular e nervo tibial), síndrome compartimental, instabilidade multidirecional e dor crônica.[2]

As luxações de joelho são classificadas por Schenck,[4] que leva em consideração a quantidade e quais ligamentos foram afetados, conforme mostra o [Quadro 1].

Quadro 1

Classificação

Lesão

KD I

Envolvendo apenas um ligamento cruzado associado à lesão de um ligamento colateral

KD II

Envolvendo ambos os ligamentos cruzados

KD III M

Lesão dos dois ligamentos cruzados e do ligamento colateral tibial

KD III L

Lesão dos dois ligamentos cruzados e do ligamento colateral fibular

KD IV

Todos os quatro ligamentos envolvidos

KD V

Luxação do joelho com fratura associada

Estudos relatam, conforme o trabalho de Arom et al.[5] e o de Wilson et al.,[3] uma incidência < 0,2% das lesões ortopédicas, variando entre 7/10.000 e 1/100.000 pacientes por ano. Entretanto, é difícil obter dados para identificar a correta incidência de luxação do joelho, visto se tratar de uma lesão rara na qual a metade dos casos encontra-se reduzida no momento do atendimento inicial. Dessa maneira, a luxação do joelho deve ser avaliada em todo paciente que apresenta lesão em dois ou mais ligamentos desta articulação.[2] [3] [5] [6] [7] [8] [9] [10]

O mecanismo de lesão mais frequente é um trauma de alta energia direto ou indireto no joelho, sendo a maior parte causada por acidentes por veículos motorizados. Também estão relacionados com queda de altura e traumas esportivos, geralmente futebol americano, esqui, futebol e rugby. Além disso, pode acometer obesos em lesão de baixa velocidade após entorse do joelho. O mecanismo de trauma mais comum é a hiperextensão do joelho, resultando em luxação anterior.[5] [6] [7] [11]

Lesão vascular apresenta uma incidência variada na literatura, entre 5 e 80%, enquanto a incidência de lesão neurológica varia de 16 a 50%. Medina et al.[12] citam em seu trabalho uma incidência de 18% de lesões vasculares e de 25% de lesões neurológicas.

Essas variações estão relacionadas ao tipo de energia do trauma ao qual a população de cada estudo está exposta. Além disso, a raridade desta lesão dificulta obtenção do número de pacientes (N) suficiente para dados mais precisos, o que causa bastante divergência entre os estudos.[2] [3] [12]

A rigidez articular secundária e a falha na reconstrução ligamentar são as complicações precoces mais comuns. Grande parte desses pacientes desenvolverá osteoartrite pós-traumática, como demonstrado no estudo de Engebretsen et al.,[13] que encontraram presença de osteoartrite no joelho em 34% dos pacientes após 9 anos do trauma. Isso implica grandes limitações ao paciente, que na maioria das vezes é jovem e economicamente ativo. O tratamento dessa lesão complexa envolve um grande investimento da saúde pública e/ou suplementar, além de um longo período de afastamento do trabalho.[10] [12] [13] [14] [15] [16]

Na fase aguda, o objetivo é a redução e estabilização da articulação, as quais devem ser realizadas imediatamente. A avaliação neurovascular é fundamental e não deve ser retardada. O exame físico vascular é realizado através da palpação dos pulsos periféricos, aferição da temperatura do membro, perfusão capilar e índice tornozelo-braquial (o qual, quando < 0,9, representa alta suspeição de lesão arterial). A gravidade dessas lesões vasculares está enfatizada pelo fato de que, independentemente do tratamento, a incidência de amputações nesses pacientes é de 12% dos casos.[3] [6] [8] [9] [12] [14]

Dessa forma, é necessário conhecer as características demográficas dos pacientes que apresentam essas lesões do joelho para otimizar o tratamento e traçar estratégias preventivas. Com isso, foi realizada, no primeiro momento, uma busca na bibliografia nacional por meio de bancos de dados (PubMed e Scielo) e revistas (RBO) sobre o assunto lesões multiligamentares e luxação do joelho. Após essa análise, foi identificada escassez de estudos nacionais abordando o tema em questão. Dentre eles, o mais relevante é o de Kupczik et al.,[10] no qual foram analisados 23 pacientes.

Diante disso, o presente estudo transversal tem como objetivo a análise epidemiológica das lesões multiligamentares do joelho e suas associações com patologias neurovasculares e fraturas, além de correlacionar estes dados com mecanismo de trauma, gênero, idade e tempo de afastamento do trabalho.


#

Materiais e Métodos

Trata-se de um estudo transversal que avaliou 82 casos de instabilidade no joelho em pacientes atendidos no ambulatório de Lesões Multiligamentares do Joelho durante o período de setembro 2016 até setembro de 2018. Foram coletados dados de idade no trauma, gênero, eixo mecânico do joelho, lado, arco de movimento (ADM), mecanismo do trauma, lesões associadas (neurológicas, vasculares, luxações e fraturas), ligamentos afetados, marcha e afastamento do trabalho pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Foram incluídos no estudo os pacientes que apresentaram instabilidade multiligamentar do joelho com lesão de dois ou mais ligamentos. Foram excluídos os pacientes que apresentaram lesão de apenas um ligamento e os pacientes que não realizaram exame físico completo, fosse por dor, fosse por presença de fixador externo.

A partir dos dados coletados, foi construído um banco de dados em planilha eletrônica, o qual foi analisado pelo programa IBM SPSS Statistics for Windows, versão 22.0 (IBM Corp., Armonk. NY, EUA) e pelo aplicativo Microsoft Excel 2007 (Microsoft Corp., Redmond, WA, EUA). Para caracterização da amostra e análise descritiva do comportamento das variáveis, os dados foram sintetizados por meio de estatísticas descritivas (média, mediana, mínimo, máximo, desvio padrão [DP], coeficiente de variação [CV] e proporções de interesse das variáveis quantitativas), distribuições de frequências simples e em tabelas cruzadas para as variáveis qualitativas.[17] [18]


#

Resultados

Conforme os resultados exibidos na [Tabela 1], a partir dos 82 casos desta amostra, observa-se o seguinte perfil típico dos pacientes que apresentam lesões multiligamentares no joelho: paciente do sexo masculino (92,7%), com idade entre 20 e 40 anos (75,6%), com sobrepeso ou obeso (71,4%), o lado esquerdo mais acometido (52,4%), e o eixo mecânico genuvaro (34,1%) é mais frequente do que genuvalgo (18,3%). Durante a marcha, observou-se presença de marcha escarvante em 10 paciente (12,2%) e flambagem lateral em 12 pacientes (14,6%).

Tabela 1

Variável

Frequência

F

%

Gênero

 Feminino

6

7,3%

 Masculino

76

92,7%

Idade no dia da lesão (anos)

 10 |— 20

8

9,8%

 20|30

37

45,1%

 30 |40

25

30,5%

 40 |— 50

9

11,0%

 50 |—60

3

3,7%

Classificação do corpo segundo o IMC[*]

 Adequado

14

28,6%

 Sobrepeso

19

38,8%

 Obesidade Grau I

12

24,5%

 Obesidade Grau II

3

6,1%

 Obesidade Grau III

1

2,0%

Lado do joelho com a lesão

 Direito

39

47,6%

 Esquerdo

43

52,4%

Eixo

 Neutro

39

47,5%

 Valgo

15

18,3%

 Varo

28

34,1%

Marcha Escarvante

10

12,2%

Flambagem

12

14,6%

Fratura

22

26,8%

Luxação

18

22,8%

Lesão Neurológica

13

15,9%

Lesão Vascular

1

1,2%

Tipo de Lesão

 KD I

19

23,1%

 KD II

10

12,1%

 KD III M

12

14,6%

 KD III L

25

30,4%

 KD IV

6

7,3%

 KD V

10

12,1%

Arco de Movimento

 - 5 a 110°

1

1,2%

 - 5 a 140°

2

2,4%

 - 5 a 128°

1

1,2%

 0 a 70°

1

1,2%

 0 a 90°

3

3,7%

 0 a 100°

7

8,5%

 0 a 105°

1

1,2%

 0 a 110 °

28

34,1%

 0 a 120°

11

13,4%

 0 a 130°

18

22,0%

 0 a 135°

1

1,2%

 0 a 136°

1

1,2%

 0 a 140°

4

4,9%

 5 a 100°

1

1,2%

 10 a 110°

1

1,2%

 20 a 100°

1

1,2%

Afastado do trabalho pelo INSS

43

52,4%

A incidência de fratura associada foi de 26,8% e a de lesão neurológica associada foi de 15,9%. Um total de 18 pacientes (22,8%) apresentaram luxação do joelho que necessitou de manobra de redução, e apenas 1 paciente (1,2%) apresentou lesão vascular da artéria poplítea. O tipo de lesão mais frequente foi o KD IIIL (30,4%). Um total de 40 pacientes (48,8%) apresentaram ADM < 110° e 43 pacientes (52,4%) estão afastados do trabalho pelo INSS devido à lesão multiligamentar no joelho.

Observa-se que os pacientes com lesão multiligamentar do joelho tinham idades no intervalo de 16 a 58 anos, média de 29,7 anos, mediana de 28 anos, DP de 8,9 anos, o que resultou em um CV igual a 0,30, evidenciando moderada variabilidade da idade dos pacientes que apresentam lesão multiligamentar no joelho, conforme disposição da distribuição da idade dos pacientes exibida na [Figura 1]. O diagrama de caixa mostra que as duas maiores idades, 52 e 58 anos, são idades atípicas para portadores de lesões multiligamentares no joelho, marcados com o símbolo ° no gráfico.

Zoom Image
Fig. 1 Diagrama de caixa da distribuição de idade dos pacientes portadores de lesões multiligamentares no joelho.

A [Tabela 2] traz a distribuição do mecanismo gerador das lesões. Tanto no global quanto para os grupos definidos segundo as idades dos pacientes (< 30 anos e ≥ 30 anos), o principal mecanismo gerador das lesões foi o acidente motociclístico em 45,1% dos casos, com 51,1% desses pacientes < 30 anos de idade. Destacam-se também o acidente de carro, o futebol e a luta como mecanismos de trauma importantes. Agrupando o acidente de motocicleta, o acidente automobilístico e o atropelamento, tem-se que o acidente de trânsito foi o responsável por 61,0% dos casos de lesões multiligamentares no joelho. As lesões relacionadas à prática esportiva ocorreram em 23,2% dos casos; os demais traumas representam somente 15,8%, incluindo quedas, acidentes de trabalho, coice de boi e trauma torcional.

Tabela 2

Mecanismo gerador da lesão

Global

n = 82

Idade < 30 anos

n = 45

Idade ≥ 30 anos

n = 37

Acidente de motocicleta

37

45,1%

23

51,1%

14

37,8%

Acidente de automóvel

9

11,0%

4

8,9%

5

13,5%

Futebol

9

11,0%

6

13,3%

3

8,1%

Luta

8

9,8%

3

6,6%

5

13,5%

Queda de altura

6

7,3%

3

6,6%

3

8,1%

Atropelamento

4

4,9%

1

2,2%

3

8,1%

Acidente de trabalho

2

2,4%

2

4,4%

0

0,0%

Coice de boi

2

2,4%

1

2,2%

1

2,7%

Queda de elevador

1

1,2%

0

0,0%

1

2,7%

Queda em buraco

1

1,2%

0

0,0%

1

2,7%

Skate

1

1,2%

1

2,2%

0

0,0%

Jogo de paintball

1

1,2%

0

0,0%

1

2,7%

Trauma torcional

1

1,2%

1

2,2%

0

0,0%

A [Tabela 3] demonstra que o ligamento mais afetado, independente da faixa etária, foi o ligamento cruzado anterior (LCA) (80,5%), seguido do ligamento cruzado posterior (LCP) (77,1%). Os ligamentos do canto posterolateral são lesionados mais frequentemente que o LCM, com 61,0 e 26,8%, respectivamente. Os meniscos mediais foram lesionados mais frequentemente que os meniscos laterais, com 25,6 e 14,6%, respectivamente. Os valores-p exibidos na tabela, todos > 5%, mostram que nenhuma das lesões está associada ao grupo etário, pois não há diferença significativa entre as incidências das lesões dos 2 grupos etários.

Tabela 3

Lesões

Global

Idade < 30 anos

Idade ≥ 30 anos

Valor-p do

n = 82

n = 45

n = 37

teste qui-quadrado

comparando as frequências dos dois grupos etários

LCA

66

80,50%

33

73,30%

33

89,20%

0,071

LCP

64

77,10%

33

73,30%

31

82,80%

0,408

CPL

50

61,0%

27

60,0%

23

73,00%

0,842

LCM

22

21,00%

10

22,20%

12

32,40%

0,299

LCL

7

8,5%

5

11,1%

2

5,40%

0,449[*]

MM

21

25,60%

10

22,20%

11

29,70%

0,438

ML

12

14,60%

4

8,90%

8

21,60%

0,105

N. fibular

2

2,40%

0

0,00%

2

5,40%

0,201[*]

Platô posterior

1

1,20%

0

0,00%

1

2,70%

0,451[*]

Avulsão Biceps

1

1,20%

1

2,20%

0

0,00%

1,000[*]

A [Tabela 4] demonstra que 18 pacientes (22%) apresentaram luxação do joelho que necessitou de manobra de redução e que 22 pacientes (26,8%) apresentaram fraturas associadas. Também foi verificado se a ocorrência de luxação e fraturas registradas no incidente de trauma estavam associadas ao grupo etário. Os valores-p exibidos na tabela, todos > 5%, mostram que a ocorrência de luxação, de fratura ou de qualquer tipo de fratura individualmente não está associada ao grupo etário e que não há diferença significativa entre as incidências das luxações e fraturas entre os 2 grupos.

Tabela 4

Luxação e fraturas

Global n = 82

Idade < 30 anos n = 45

Idade ≥ 30 anos n = 37

Teste qui-quadrado comparando as frequências dos dois grupos etários

Luxação do joelho

18 (22,0%)

7 (15,6%)

11 (29,7%)

0,180

Pelo menos 1 fratura

22 (26,8%)

12 (26,7%)

10 (27,0%)

0,908

Fratura de Acetábulo

4 (4,9%)

2 (4,4%)

2 (5,4%)

1,000[*]

Fratura de Tíbia

4 (4,9%)

4 (8,9%)

0 (0,0%)

0,123[*]

Fratura de Tornozelo

4 (4,9%)

1 (2,2%)

3 (8,1%)

0,323[*]

Fratura de Fêmur

3 (3,7%)

2 (4,4%)

1 (2,7%)

1,000[*]

Fratura do joelho

3 (3,7%)

1 (2,2%)

2 (5,4%)

0,586[*]

Fratura do Planalto Tibial

2 (2,4%)

1 (2,2%)

1 (2,7%)

0,201[*]

Sindrome compartimental

1 (1,2%)

1 (2,2%)

0 (0,0%)

1,000[*]

Fratura da Fíbula

1 (1,2%)

0 (0,0%)

1 (2,7%)

0,451[*]

Fratura do maléolo medial

1 (1,2%)

1 (2,2%)

0 (0,0%)

1,000[*]

Fratura da diafise tibial

1 (1,2%)

1 (2,2%)

0 (0,0%)

1,000[*]

A prevalência de lesões neurológicas foi de 15,9% (13 pacientes), sendo que 12 casos apresentaram lesão do nervo fibular, sendo 2 casos com lesão dos nervos fibular e tibial, e um paciente apresentou lesão neurológica do nervo radial, não relacionada ao trauma específico do joelho. Os valores-p exibidos na [Tabela 5], todos > 5%, mostram que a ocorrência de lesões neurológicas, global ou por tipo, não está associada ao grupo etário e que não há diferença significativa entre as incidências das lesões neurológicas entre os 2 grupos.

Tabela 5

Lesão neurológica

Global

n = 82

Idade

< 30 anos

n = 45

Idade ≥ 30 anos

n = 37

Valor-p do teste qui-quadrado comparando as

frequências dos dois grupos

etários

Lesão neurológica

13 (15,9%)

8 (17,7%)

5 (13,5%)

0,599

Nervo fbular

12 (14,6%)

8 (17,7%)

4 (10,8%)

0,674[*]

Nervo tibial

2 (1,2%)

2 (4,4%)

0 (0,0%)

0,451[*]

A luxação do joelho está significativamente associada a lesão neurológica. A luxação do joelho foi observada em 15,9% dos casos sem lesão neurológica e em 53,8% dos casos com lesão neurológica. A lesão neurológica ocorreu em 9,4% dos casos sem luxação do joelho e em 38,9% dos casos com luxação no joelho. A diferença entre estas proporções é significativa sob o ponto de vista estatístico (p = 0,006; teste exato de Fisher). A razão de chances é igual a 6,2, com intervalo de confiança (IC) de 1,7 a 21,8. Estima-se que a chance de um paciente que tem luxação do joelho apresentar lesão neurológica é 6,2 vezes a chance de um paciente que não tem luxação do joelho apresentar lesão neurológica.

Foi investigado se a obesidade estava associada a alguma variável do estudo. Nenhuma associação com significância estatística foi encontrada.


#

Discussão

Foi observado que a lesão multiligamentar é mais frequente em homens (92,7%). Essa diferença entre os gêneros é esperada, uma vez que os homens estão, em sua maioria, mais expostos a lesões de alta energia, como pelo uso de motocicleta e pela prática de esportes de maior intensidade. Os estudos que corroboram este achado são o de Wilson et al.[3] e de Medina et al.,[12] que identificaram em suas populações uma porcentagem de 72 e 78%, respectivamente, de pacientes do sexo masculino, enquanto no estudo de Kupczik et al.[10] apenas 65% dos casos eram homens, talvez devido a características culturais locais e ao tamanho da amostra.

O mecanismo de trauma mais comum é o acidente de trânsito, acometendo 61,0% dos pacientes. Dentre esses, o mais prevalente é o acidente de moto (45,1%), seguido de acidentes de carro (11,0%) e atropelamento (4,9%). As lesões relacionadas à prática esportiva são responsáveis por 23,2% dos casos, sendo que as principais atividades físicas são futebol (11,0%) e lutas (9,8%). Esses dados assemelham-se com os resultados do estudo nacional de Kupczik et al.[10] que relatam 60% dos casos associados a acidente motociclístico. Entretanto, esses dados divergem da literatura internacional.

O ligamento mais acometido foi o LCA (80,5%) seguido do LCP (77,1%), enquanto os ligamentos do canto posterolateral foram lesionados mais frequentemente que o LCM, com 61,0 e 26,8%, respectivamente. O padrão de lesão mais comum foi o KD III-L (30,4%) pela classificação de Schenck, o qual representa lesão de ambos os ligamentos cruzados associada à lesão dos ligamentos do canto posterolateral. Acreditamos que a baixa prevalência de lesão do LCM encontrada seja devido à cicatrização deste ligamento, o que é possível após o tratamento conservador adequado na fase inicial. Como a maioria dos pacientes do presente estudo chegou na fase crônica ao ambulatório de lesões multiligamentares, isso explica o achado, sendo esta uma das limitações do estudo.

Foi encontrado apenas 1 paciente com lesão da artéria poplítea (1,2%), o que está abaixo dos achados na literatura. Medina et al.[12] observaram uma prevalência 15% de lesão da artéria poplítea, e 17% desses pacientes evoluíram para amputação do membro. Tal diferença pode ter ocorrido devido à característica do ambulatório de lesões multiligamentares, que é um local referenciado e não uma emergência. Com isso, muitos dos casos que evoluem mal clinicamente, como amputações, não são indicados ao tratamento cirúrgico no local de referência, e sim solucionados no hospital de emergência durante o atendimento inicial, diminuindo, portanto, a prevalência das lesões da artéria poplítea em nossa população.

Foi identificada uma associação entre instabilidade multiligamentar do joelho e lesão neurológica de 14,6%. Desse grupo de pacientes, todos apresentavam lesão do nervo fibular, e apenas dois destes pacientes apresentaram lesão do nervo tibial associada, enquanto Medina et al.[12] encontraram associação de 25% de lesão neurológica com a luxação do joelho. Uma das possíveis explicações para tal achado é que alguns pacientes podem ter melhorado dos seus sintomas de neuropraxia antes de chegar ao ambulatório de referência ou podem ter evoluído com complicações que contraindicam cirurgia e, portanto, não foram encaminhados ao serviço de referência.

A prevalência de pacientes afastados do trabalho com benefícios do governo pelo INSS foi de 52,4% dos casos. Tal dado está acima dos valores internacionais, como no estudo de Levy et al.,[14] que demonstra o retorno de 50% ao trabalho após tratamento conservador e de 72% após tratamento cirúrgico. Isso pode ser explicado devido às características socioeconômicas do Brasil, que contém um alto índice de desemprego, o que pode favorecer a simulação pelos pacientes do agravo da clínica das lesões com intuito de manter o benefício financeiro. Além disso, ainda há déficit de acessibilidade no ambiente de trabalho para pessoas com dificuldade de locomoção. Neste contexto, a lesão multiligamentar do joelho tem impacto financeiro, uma vez que o grupo mais afetado são jovens economicamente ativos.

O presente estudo apresentou limitações durante a sua realização, sendo uma delas o viés de seleção, pois o trabalho avaliou os pacientes encaminhados para o ambulatório de lesões multiligamentares do joelho, que é um local referenciado para o tratamento deste tipo de agravo. São encaminhados para este ambulatório os casos com indicação cirúrgica, o que pode excluir pacientes com contraindicações para reconstrução ligamentar, como os pacientes que evoluíram com complicações graves, como amputações e outras lesões neurovasculares. Além disso, outra limitação do presente estudo é que muitos pacientes já apresentavam a doença na fase crônica, podendo apresentar uma cicatrização parcial dos ligamentos colateral tibial e cruzado posterior.


#

Conclusão

Há uma diferença significativa entre os gêneros, sendo o sexo masculino mais afetado do que o feminino na proporção de 13:1. Já em relação à dinâmica do trauma, os acidentes de trânsito são responsáveis por 61,0% dos casos; traumas motociclísticos são os mais prevalentes, compreendendo 45,1% dos casos.

Com isso, há uma grande diferença entre as características dos pacientes que apresentam lesão multiligamentar do joelho no Brasil quando comparadas com o perfil dos pacientes encontrado nos estudos internacionais. Dessa forma, devemos realizar mais estudos específicos sobre o tema com a população brasileira de modo aperfeiçoar o tratamento dos nossos pacientes.


#
#

Conflito de Interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Suporte Financeiro

Não houve suporte financeiro de fontes públicas, comerciais, ou sem fins lucrativos.


* Trabalho desenvolvido no Centro de Atenção Especializada ao Joelho, Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad -INTO/ MS, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


  • Referências

  • 1 Ferrari MB, Chahla J, Mitchell JJ. et al. Multiligament Reconstruction of the Knee in the Setting of Knee Dislocation With a Medial-Sided Injury. Arthrosc Tech 2017; 6 (02) e341-e350
  • 2 Levy BA, Dajani KA, Whelan DB. et al. Decision making in the multiligament-injured knee: an evidence-based systematic review. Arthroscopy 2009; 25 (04) 430-438
  • 3 Wilson SM, Mehta N, Do HT, Ghomrawi H, Lyman S, Marx RG. Epidemiology of multiligament knee reconstruction. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2603-2608
  • 4 Schenck Jr RC. The dislocated knee. Instr Course Lect 1994; 43: 127-136
  • 5 Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, Terrell RD, McAllister DR. The changing demographics of knee dislocation: a retrospective database review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2609-2614
  • 6 Hegyes MS, Richardson MW, Miller MD. Knee dislocation. Complications of nonoperative and operative management. Clin Sports Med 2000; 19 (03) 519-543
  • 7 Henrichs A. A review of knee dislocations. J Athl Train 2004; 39 (04) 365-369
  • 8 Goyal A, Tanwar M, Joshi D, Chaudhary D. Practice Guidelines for the Management of Multiligamentous Injuries of the Knee. Indian J Orthop 2017; 51 (05) 537-544
  • 9 Fanelli GC, Stannard JP, Stuart MJ. et al. Management of complex knee ligament injuries. J Bone Joint Surg Am 2010; 92 (12) 2235-2246
  • 10 Kupczik F, Shiavon ME, Vieira L, Genius D, Fávaro R. Luxação do joelho: Estudo descritivo das lesões. Rev Bras Ortop 2013; 48 (02) 145-151
  • 11 Vaidya R, Roth M, Nanavati D, Prince M, Sethi A. Low-Velocity Knee Dislocations in Obese and Morbidly Obese Patients. Orthop J Sports Med 2015; 3 (04) 2325967115575719
  • 12 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2621-2629
  • 13 Engebretsen L, Risberg MA, Robertson B, Ludvigsen TC, Johansen S. Outcome after knee dislocations: a 2-9 years follow-up of 85 consecutive patients. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc 2009; 17 (09) 1013-1026
  • 14 Levy BA, Fanelli GC, Whelan DB. et al. Knee Dislocation Study Group. Controversies in the treatment of knee dislocations and multiligament reconstruction. J Am Acad Orthop Surg 2009; 17 (04) 197-206
  • 15 Howells NR, Brunton LR, Robinson J, Porteus AJ, Eldridge JD, Murray JR. Acute knee dislocation: an evidence based approach to the management of the multiligament injured knee. Injury 2011; 42 (11) 1198-1204
  • 16 LaPrade RF, Muench C, Wentorf F, Lewis JL. The effect of injury to the posterolateral structures of the knee on force in a posterior cruciate ligament graft: a biomechanical study. Am J Sports Med 2002; 30 (02) 233-238
  • 17 Medronho R, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL. editores. 2 a. ed.. São Paulo: Atheneu; 2009
  • 18 Pagano M, Gauvreau K. Princípios de Bioestatísitca. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2004

Endereço para correspondência

Igor Natário Pinheiro, MD
Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad -INTO/ MS
Rio de Janeiro, RJ
Brasil   

Publication History

Received: 11 November 2020

Accepted: 08 March 2021

Article published online:
11 March 2022

© 2022. Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution-NonDerivative-NonCommercial License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit. Contents may not be used for commecial purposes, or adapted, remixed, transformed or built upon. (https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/)

Thieme Revinter Publicações Ltda.
Rua do Matoso 170, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20270-135, Brazil

  • Referências

  • 1 Ferrari MB, Chahla J, Mitchell JJ. et al. Multiligament Reconstruction of the Knee in the Setting of Knee Dislocation With a Medial-Sided Injury. Arthrosc Tech 2017; 6 (02) e341-e350
  • 2 Levy BA, Dajani KA, Whelan DB. et al. Decision making in the multiligament-injured knee: an evidence-based systematic review. Arthroscopy 2009; 25 (04) 430-438
  • 3 Wilson SM, Mehta N, Do HT, Ghomrawi H, Lyman S, Marx RG. Epidemiology of multiligament knee reconstruction. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2603-2608
  • 4 Schenck Jr RC. The dislocated knee. Instr Course Lect 1994; 43: 127-136
  • 5 Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, Terrell RD, McAllister DR. The changing demographics of knee dislocation: a retrospective database review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2609-2614
  • 6 Hegyes MS, Richardson MW, Miller MD. Knee dislocation. Complications of nonoperative and operative management. Clin Sports Med 2000; 19 (03) 519-543
  • 7 Henrichs A. A review of knee dislocations. J Athl Train 2004; 39 (04) 365-369
  • 8 Goyal A, Tanwar M, Joshi D, Chaudhary D. Practice Guidelines for the Management of Multiligamentous Injuries of the Knee. Indian J Orthop 2017; 51 (05) 537-544
  • 9 Fanelli GC, Stannard JP, Stuart MJ. et al. Management of complex knee ligament injuries. J Bone Joint Surg Am 2010; 92 (12) 2235-2246
  • 10 Kupczik F, Shiavon ME, Vieira L, Genius D, Fávaro R. Luxação do joelho: Estudo descritivo das lesões. Rev Bras Ortop 2013; 48 (02) 145-151
  • 11 Vaidya R, Roth M, Nanavati D, Prince M, Sethi A. Low-Velocity Knee Dislocations in Obese and Morbidly Obese Patients. Orthop J Sports Med 2015; 3 (04) 2325967115575719
  • 12 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2621-2629
  • 13 Engebretsen L, Risberg MA, Robertson B, Ludvigsen TC, Johansen S. Outcome after knee dislocations: a 2-9 years follow-up of 85 consecutive patients. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc 2009; 17 (09) 1013-1026
  • 14 Levy BA, Fanelli GC, Whelan DB. et al. Knee Dislocation Study Group. Controversies in the treatment of knee dislocations and multiligament reconstruction. J Am Acad Orthop Surg 2009; 17 (04) 197-206
  • 15 Howells NR, Brunton LR, Robinson J, Porteus AJ, Eldridge JD, Murray JR. Acute knee dislocation: an evidence based approach to the management of the multiligament injured knee. Injury 2011; 42 (11) 1198-1204
  • 16 LaPrade RF, Muench C, Wentorf F, Lewis JL. The effect of injury to the posterolateral structures of the knee on force in a posterior cruciate ligament graft: a biomechanical study. Am J Sports Med 2002; 30 (02) 233-238
  • 17 Medronho R, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL. editores. 2 a. ed.. São Paulo: Atheneu; 2009
  • 18 Pagano M, Gauvreau K. Princípios de Bioestatísitca. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2004

Zoom Image
Fig. 1 Diagrama de caixa da distribuição de idade dos pacientes portadores de lesões multiligamentares no joelho.
Zoom Image
Fig. 1 Box diagram showing the age distribution of patients with multiligament knee injuries.