Palavras-chave
adolescente - articulação do cotovelo - criança - luxações articulares - ossificação heterotópica
Introdução
O cotovelo é a articulação que mais comumente apresenta luxação traumática na infância; embora a lesão seja relativamente rara, representa entre 3% e 25% de todas as lesões pediátricas do cotovelo.[1] As luxações pediátricas do cotovelo são lesões complexas, associadas a fraturas em 75% dos casos, ao passo que as luxações simples (puramente ligamentares) em crianças estão associadas a vários graus de lesões dos tecidos moles.[1]
[2]
Após luxação do cotovelo, os pacientes podem apresentar perda variável da amplitude de movimento (ADM) associada ou não à ossificação heterotópica (OH).[3] A OH é o desenvolvimento do osso lamelar maduro dentro de tecidos além do periósteo, como músculo esquelético, componentes fibrosos, capsuloligamentares, e tecido subcutâneo.[4] Na maioria dos casos, a OH é assintomática, podendo ser detectada como um achado de imagem incidental. No entanto, pode ser dolorosa e estar associada a disestesia focal, sinais inflamatórios, e redução da ADM. A OH sintomática na região do cotovelo em crianças é um achado incomum, especialmente sem uma fratura associada ou histórico de cirurgia.[4]
[5] Aqui, nós descrevemos o caso de uma menina de 11 anos com OH após uma luxação traumática do cotovelo sem fraturas associadas, mas com ruptura parcial do músculo braquial. Durante o acompanhamento, a paciente apresentou perda persistente da flexão, sendo submetida a excisão cirúrgica da OH, que resultou na normalização do movimento do cotovelo, e não houve recorrência.
Relato de caso
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (sob o protocolo n° 36203120.6.0000.0023), com a anuência da participante e de seus pais.
Uma menina de 11 anos deu entrada no pronto-socorro relatando queda de pequena altura, com trauma indireto no cotovelo esquerdo. Não havia histórico de lesão musculoesquelética no braço acometido. Durante o exame físico, apresentou dor intensa, edema, sensibilidade, deformidade do cotovelo, sem déficit neurovascular. As radiografias mostraram luxação posterolateral do cotovelo sem fraturas concomitantes. Foi realizada a redução fechada sob anestesia, e imobilizada com tala gessada posterior com 90o de flexão e rotação neutra do cotovelo durante uma semana, seguida de duas semanas com tipoia de ombro. Porém, devido a edema e equimose importantes do cotovelo, foi realizada uma ressonância magnética (RM), que evidenciou ruptura parcial das fibras do músculo braquial e acúmulo de sangue ([Fig. 1]). Nenhum tratamento específico foi realizado para tratar a lesão do músculo braquial. Após seis meses de fisioterapia, a paciente apresentou ADM indolor, com aproximadamente 90° (flexão de 95° e déficit de extensão de 5°). Não foi observada nenhuma perda nos movimentos de pronação e supinação. Uma massa sólida considerável era palpável na extremidade distal do úmero. As radiografias e a tomografia computadorizada do cotovelo mostravam OH na face anterior do úmero distal, provocando potencial impacto articular ([Fig. 2]). Por causa da perda residual do ADM, decidiu-se ressecar a OH cirurgicamente.
Fig. 1 (A) Radiografia de menina de 11 anos de idade com incidências de perfil (B) e anteroposterior (AP), mostrando luxação posterolateral do cotovelo sem fraturas concomitantes; (C) radiografia com incidência de perfil e (D) AP, mostrando articulação congruente sem fraturas, após redução fechada. (E) Ressonância magnética: corte sagital ponderado em T2 do cotovelo esquerdo, após a luxação traumática e a redução fechada. A ressonância magnética mostra ruptura parcial das fibras do músculo braquial e acúmulo de sangue de 3,1 cm × 1,8 cm com baixa resolução.
Fig. 2 (A) Imagem radiográfica em perfil, (B) tomografia computadorizada em corte sagital, (C) corte axial, e (D) em 3D do cotovelo, mostrando ossificação heterotópica (OH) na face anterior do úmero distal, provocando potencial impacto articular.
A paciente recebeu anestesia geral e bloqueio do plexo braquial. Foi realizada abordagem lateral direta, seguida de excisão da OH, por meio de osteotomia e osteoplastia ([Fig. 3]). Foi restaurado o ADM completo após a excisão da OH. No dia seguinte à cirurgia, a paciente foi orientada a realizar cinesioterapia ativa e passiva, iniciando a reabilitação física após sete dias. Nenhuma profilaxia adicional foi administrada para a OH. Aos 12 meses do pós-operatório, a paciente apresentava ADM simétrica, indolor, sem instabilidade residual, força preservada, e radiografias sem evidência de recorrência da OH ([Figs. 4] e [5]).
Fig. 3 (A) Imagem do intraoperatório mostrando a ossificação heterotópica do úmero distal por meio da abordagem lateral direta. (B) Visualização radiológica intraoperatória em perfil do cotovelo, após a excisão da OH.
Fig. 4 Aos 12 meses de pós-operatório, a paciente apresentava amplitude de movimento simétrica, sem instabilidade residual.
Fig. 5 (A) Radiografias em AP (A) e perfil (B) do cotovelo 12 meses após a cirurgia, sem evidências de recorrência de OH.
Discussão
A luxação da articulação do cotovelo é uma lesão incomum em crianças mais novas, que geralmente apresentam luxação do cotovelo em associação a fraturas, particularmente do epicôndilo medial, do rádio proximal e do processo coronoide.[1]
[2]
[3] As luxações pediátricas do cotovelo sem fraturas concomitantes são raras; há poucos casos relatados na literatura.[1]
[3]
[6]
[7]
[8] As complicações da luxação do cotovelo estão principalmente relacionadas a lesões neurológicas (10%) e vasculares (6% a 8%), OH, perda de movimento, luxações recorrentes, sinostose radioulnar, e cubitus recurvatum.[1]
[6]
[7]
[8]
[9]
As lesões pós-traumáticas são as causas mais comuns da OH, geralmente após fraturas, luxações e procedimentos cirúrgicos, sendo responsáveis por até 75% dos casos.[5]
[7]
[9] No entanto, não é comum que a OH apresente sintomas, especialmente na faixa etária pediátrica.[5]
[6]
[8]
[9] Nesse cenário, o dano às fibras do músculo braquial e a formação de um hematoma focal podem predispor ao desenvolvimento da OH.[5]
[9] Além disso, um estudo recente[5] sugeriu que o sobrepeso e a obesidade em pacientes pediátricos podem ser fatores de risco para a OH. No caso apresentado, a criança apresentava sobrepeso, fator que pode ter contribuído para a ocorrência da OH.
Susnjar et al.[8] relataram o caso de uma menina de 9 anos, com formação de OH no cotovelo, após o tratamento cirúrgico de uma fratura do côndilo lateral do úmero. A OH foi removida cirurgicamente oito meses após a primeira cirurgia. Araoojis et al.[6] relataram caso único de luxação medial total do cotovelo em um menino de 10 anos submetido a redução fechada sob anestesia geral. Após acompanhamento de 2 anos, o exame radiográfico mostrou OH amadurecida, junto com a cápsula anterior, mas o paciente apresentava ADM completo do cotovelo, e não houve necessidade de tratamento cirúrgico.
Na literatura, a profilaxia e a prevenção medicamentosa para a OH são controversas. A profilaxia medicamentosa com indometacina ou outros anti-inflamatórios não esteroides tem sido defendida nos estágios iniciais e após a excisão cirúrgica.[4] Em contraste, a indometacina foi relatada como profilaxia não eficaz para OH após cirurgia para fraturas acetabulares.[10] A radioterapia também tem sido sugerida como eficaz para prevenir a OH, caso seja realizada nas primeiras 24 horas do período pré-operatório, ou até 72 horas no pós-operatório.[4] No entanto, a população pediátrica carece de evidências profiláticas relacionadas à indometacina ou à radioterapia com o objetivo de prevenir a OH pós-traumática.[1]
[6]
[8]
Descrevemos o caso único de uma criança que apresentou luxação do cotovelo e ruptura parcial do músculo braquial, e evoluiu com OH e perda do ADM. A paciente foi submetida a tratamento cirúrgico e ressecção da OH com excelentes resultados, sem recidiva. Recomendamos aguardar a maturação da OH, a fim de que um tratamento cirúrgico possa ser programado, não administrando profilaxia para a OH além da cinesioterapia precoce.