Palavras-chave
fraturas de estresse - síndrome da tríade da mulher atleta - relatos de casos
Introdução
Fraturas por estresse recorrentes num mesmo atleta são raras. De forma isolada, representam 10% das lesões esportivas.[1] São considerados casos atípicos, que necessitam investigação para identificar fatores predisponentes.[2]
[3] O termo tríade da mulher atleta foi redefinido para um espectro mais amplo denominado síndrome da deficiência energética relativa no esporte (RED-S, na sigla em inglês),[3] sobretudo pelo impacto do desequilíbrio nutricional no desenvolvimento das alterações metabólicas. Atletas com RED-S têm risco aumentado de fraturas, pois há associação desta condição com disfunção hormonal e redução da densidade mineral óssea (DMO).[3]
Este estudo descreve o caso de uma triatleta com RED-S que sofreu múltiplas fraturas por estresse, e revisa os fatores de risco associados. A paciente assinou o termo de consentimento livre e esclarecido foi obtido. Este manuscrito foi redigido conforme as diretrizes CARE para relatos de caso[4] e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE 22982819.8.0000.5133).
Relato do Caso
A paciente descrita no presente relato de caso é triatleta, do sexo feminino, com 34 anos de idade, índice de massa corporal (IMC) de 20 kg/cm2, com antecedente de síndrome de ovários policísticos, bulimia (sic), irregularidade menstrual e transtorno de ansiedade.
Há 8 anos, após 6 meses de prática de corrida (4 vezes por semana) orientada por educador físico, a paciente se queixou de dor atraumática e progressiva na face anterior de perna direita, que piorou tornando-se bilateral e impedindo a manutenção deste treino. Em avaliação com médico ortopedista, houve suspeita de fratura por estresse, e exames de cintilografia óssea e ressonância magnética (RM) evidenciaram lesão na cortical posterior da diáfise tibial bilateralmente ([Figura 1]). Na época, afirmou que se submetia, por escolha própria, à dieta com déficit calórico para emagrecimento, associada à comportamento bulímico. Foi optado por tratamento conservador, com afastamento do esporte por 2 meses. A paciente iniciou acompanhamento com nutricionista esportivo para readequação energética dietética, mas não fez nenhum tratamento específico para a bulimia. Refere que procurou ginecologista, que lhe afirmou normalidade de seus exames hormonais (sic). O retorno à atividade física ocorreu primeiro com caminhada e ciclismo, progredindo sob supervisão do treinador, tendo como critério para intensificar o treino a ausência de dor. A paciente retornou à corrida após 8 meses, praticando natação e ciclismo sem queixas. Ela manteve acompanhamento com nutricionista, referindo alimentação com aporte energético adequado. A despeito de não procurar orientação médica para o quadro bulímico, ela afirmou que não houve recidiva destes sintomas após tratamento nutricional.
Fig. 1 Imagens de exames com fratura por estresse da tíbia. (A, B e C) Imagens de cintilografia óssea, (D) Imagem de ressonância magnética, ponderação T2.
Após 3 anos, em treinos diários de alta intensidade para o triatlon, a paciente se queixou, durante uma corrida, de dor insidiosa na face lateral da perna direita, incapacitante para correr. Uma avaliação médica ortopédica foi realizada e a RM evidenciou fratura por estresse da diáfise da fíbula direita. A paciente referiu que havia iniciado uso de palmilha para pisada pronada, prescrita por um fisioterapeuta. A prática da corrida foi interrompida por 8 meses, mas foi mantido o treino de fortalecimento muscular e propriocepção dos membros inferiores, natação e ciclismo em intensidade reduzida, com incremento de carga progressivo, acompanhado pelo treinador. No retorno à corrida, a paciente foi orientada a não utilizar mais as palmilhas e usar calçado (tênis) confortável para treinos e provas. Após 1 ano, em consulta médica, afirmava-se assintomática; os exames bioquímicos não apresentaram alterações, e o exame de densitometria óssea evidenciou osteopenia. Foi optado por suplementação oral de cálcio (500 mg) e vitamina D (1.000 UI) diários.
Dois anos após a última fratura, sem sintomas e mantendo cuidados nutricionais, durante um ciclo de alta intensidade de treinos sob orientação de um treinador, a paciente relatou, durante a corrida, dor progressiva no quadril esquerdo, refratária à diminuição de volume de treino. Uma nova avaliação médica ortopédica diagnosticou fratura por estresse na cortical medial do colo femoral esquerdo ([Figura 2]). Como tratamento, a paciente foi orientada a restringir carga no membro afetado e a usar o auxílio de muletas. Após 15 dias, ela retornou à natação (estilo livre), em 2 treinos por semana. Após 2 meses, a paciente estava sem dor e retornou ao ciclismo, com progressão lenta da carga e volume de treino. Após 4 meses do diagnóstico, em consulta médica, foi solicitada uma nova RM ([Figura 3]), que evidenciou consolidação da fratura. Foi iniciado o retorno à corrida, com progressão semanal de 10% do volume de treino, acompanhada pelo educador físico. Após 8 meses do diagnóstico da fratura no colo femoral, a paciente retornou ao triátlon, e participou de duas competições, sem queixas ([Figura 4]).
Fig. 2 Imagem de ressonância magnética, ponderação T2, com hipersinal no cortical medial do colo do fêmur.
Fig. 4 Linha do tempo.
Fig. 3 Imagem de ressonância magnética, ponderação T2, confirmando consolidação da fratura do colo do fêmur.
Discussão
Fraturas por estresse ocorrem em atletas saudáveis submetidos à sobrecarga física cíclica, com desequilíbrio do turnover ósseo, predomínio da atividade osteoclástica, resultando em microfraturas e, eventualmente, em fratura completa.[5] O caso descreve uma atleta, aparentemente saudável, que desenvolveu quatro fraturas por estresse. O sintoma mais comum é a dor mecânica,[6] e os membros inferiores são mais afetados, respondendo por quase 90% dos casos.[7] Na corrida, existe associação com sobrecarga de treino, principalmente em alta quilometragem semanal.[6]
[7] A corrida foi o treino comum a todas as ocorrências, o que destaca atenção a este fator de risco.
Outros fatores de risco descritos para fraturas recorrentes são níveis reduzidos de vitamina D, distúrbios alimentares, ansiedade, déficit calórico, desordens menstruais, IMC < 21 kg/m2 e baixa DMO.[2]
[6]
[7] A associação entre estes constitui uma entidade conhecida como RED-S.[3] O desequilíbrio entre a ingesta e o gasto energético, associado a treinos exaustivos e à preocupação excessiva com performance e estética, culmina em disfunção hormonal, com aumento do risco de fratura por estresse.[3]
[8] Acreditamos que apesar da ocorrência de outras fraturas, a continuidade da boa nutrição para a prática auxiliou sobretudo no tratamento da primeira fratura e no seguimento dos casos subsequentes. Alterações biomecânicas do arco plantar e tipos de pisada são apontados como possíveis fatores de risco para fraturas por estresse, mas de baixa evidência clínica.[8] Foi optado por não utilizar as palmilhas prescritas, e não houve recidiva da fratura na fíbula.
Na investigação de múltiplas fraturas realiza-se exames bioquímicos como cálcio, 25(OH) D3 e albumina.[9] Quanto ao diagnóstico por exames de imagem, o padrão-ouro é a RM, com sensibilidade de 100% e especificidade de 85%.[10] A DMO é indicada na suspeita de RED-S.[2]
[3] No caso descrito, apesar de os exames bioquímicos não demonstrarem alterações, foi optado por suplementação de cálcio e vitamina D devido à osteopenia.
Fraturas por estresse são diferenciadas em “baixo” e “alto” risco de pseudoartrose e refratura sem tratamento cirúrgico.[9] As fraturas da paciente foram classificadas como de “baixo risco”, não acometendo cortical de tensão. São passíveis de tratamento conservador,[9] como realizado. Para evitar que a fratura se torne completa os pacientes devem realizar um período de repouso ou redução de carga sem imobilização.[9]
[10] O retorno gradual ao esporte ocorre após 10 a 14 dias sem dor, com normalidade radiográfica.[2] A reabilitação física contempla o condicionamento físico sem impacto, e treino adaptado do gesto esportivo, com 25% menos volume de treino e aumento semanal de 10% na carga tolerada.[2]
[3] A diminuição dos ciclos de alta intensidade é preconizada, associada a adequado aporte energético.[3]
[6] A autorização médica para prática irrestrita somente após nova RM evidenciar consolidação óssea.[9]
[10]
Os pontos fortes do relato apresentado foram a raridade do caso, a ocorrência das fraturas no mesmo gesto (corrida), e a evolução favorável com o tratamento e prevenção secundária. A principal limitação do estudo foi a dificuldade de acesso ao programa de treinamento implementado, pois seus detalhes poderiam demonstrar a associação da sobrecarga ao desenvolvimento das múltiplas fraturas por estresse.
Múltiplas fraturas por estresse em mulheres atletas praticantes de triátlon são raras. A presença de fatores de risco como nutrição inadequada, comportamento bulímico e sobrecarga de treino podem associar-se à ocorrência. Identificar estes fatores é primordial para o tratamento das lesões, e prevenção secundária efetiva na prática do triátlon.