CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2021; 56(06): 813-818
DOI: 10.1055/s-0041-1739404
Relato de Caso
Artroscopia e Traumatologia do Esporte

Triatleta com múltiplas fraturas por estresse nos membros inferiores: Relato de um caso e revisão da literatura[*]

Artikel in mehreren Sprachen: português | English
1   Ambulatório de Trauma do Esporte, Hospital Universitário, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
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2   Programa de Residência Médica em Ortopedia e Traumatologia, Hospital Universitário, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
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3   Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
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4   Disciplinas de Medicina de Urgência e Emergência e Medicina do Esporte, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
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5   Departamento de Medicina do Esporte, Esporte Clube Vitória, Salvador, BA, Brasil
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Suporte Financeiro Não houve suporte financeiro de fontes públicas, comerciais, ou sem fins lucrativos.
 

Resumo

Fraturas por estresse recorrentes num mesmo atleta são raras. Apresentamos o caso de uma triatleta que sofreu múltiplas fraturas por estresse na tíbia bilateral, na fíbula direita e no colo femoral esquerdo. O tratamento conservador foi instituído em todos os episódios, com repouso, redução da carga de treino e reabilitação fisioterápica. Foi identificada como fator de risco a síndrome da deficiência energética relativa no esporte, com distúrbio alimentar, sobrecarga de treino e osteopenia. Mesmo que seja raro, múltiplas fraturas por estresse podem ocorrer em mulheres triatletas, nas quais é importante avaliar os fatores de risco associados à biomecânica, nutrição e ao treinamento para arquitetar um programa de prevenção e tratamento efetivos.


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Introdução

Fraturas por estresse recorrentes num mesmo atleta são raras. De forma isolada, representam 10% das lesões esportivas.[1] São considerados casos atípicos, que necessitam investigação para identificar fatores predisponentes.[2] [3] O termo tríade da mulher atleta foi redefinido para um espectro mais amplo denominado síndrome da deficiência energética relativa no esporte (RED-S, na sigla em inglês),[3] sobretudo pelo impacto do desequilíbrio nutricional no desenvolvimento das alterações metabólicas. Atletas com RED-S têm risco aumentado de fraturas, pois há associação desta condição com disfunção hormonal e redução da densidade mineral óssea (DMO).[3]

Este estudo descreve o caso de uma triatleta com RED-S que sofreu múltiplas fraturas por estresse, e revisa os fatores de risco associados. A paciente assinou o termo de consentimento livre e esclarecido foi obtido. Este manuscrito foi redigido conforme as diretrizes CARE para relatos de caso[4] e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE 22982819.8.0000.5133).


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Relato do Caso

A paciente descrita no presente relato de caso é triatleta, do sexo feminino, com 34 anos de idade, índice de massa corporal (IMC) de 20 kg/cm2, com antecedente de síndrome de ovários policísticos, bulimia (sic), irregularidade menstrual e transtorno de ansiedade.

Há 8 anos, após 6 meses de prática de corrida (4 vezes por semana) orientada por educador físico, a paciente se queixou de dor atraumática e progressiva na face anterior de perna direita, que piorou tornando-se bilateral e impedindo a manutenção deste treino. Em avaliação com médico ortopedista, houve suspeita de fratura por estresse, e exames de cintilografia óssea e ressonância magnética (RM) evidenciaram lesão na cortical posterior da diáfise tibial bilateralmente ([Figura 1]). Na época, afirmou que se submetia, por escolha própria, à dieta com déficit calórico para emagrecimento, associada à comportamento bulímico. Foi optado por tratamento conservador, com afastamento do esporte por 2 meses. A paciente iniciou acompanhamento com nutricionista esportivo para readequação energética dietética, mas não fez nenhum tratamento específico para a bulimia. Refere que procurou ginecologista, que lhe afirmou normalidade de seus exames hormonais (sic). O retorno à atividade física ocorreu primeiro com caminhada e ciclismo, progredindo sob supervisão do treinador, tendo como critério para intensificar o treino a ausência de dor. A paciente retornou à corrida após 8 meses, praticando natação e ciclismo sem queixas. Ela manteve acompanhamento com nutricionista, referindo alimentação com aporte energético adequado. A despeito de não procurar orientação médica para o quadro bulímico, ela afirmou que não houve recidiva destes sintomas após tratamento nutricional.

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Fig. 1 Imagens de exames com fratura por estresse da tíbia. (A, B e C) Imagens de cintilografia óssea, (D) Imagem de ressonância magnética, ponderação T2.

Após 3 anos, em treinos diários de alta intensidade para o triatlon, a paciente se queixou, durante uma corrida, de dor insidiosa na face lateral da perna direita, incapacitante para correr. Uma avaliação médica ortopédica foi realizada e a RM evidenciou fratura por estresse da diáfise da fíbula direita. A paciente referiu que havia iniciado uso de palmilha para pisada pronada, prescrita por um fisioterapeuta. A prática da corrida foi interrompida por 8 meses, mas foi mantido o treino de fortalecimento muscular e propriocepção dos membros inferiores, natação e ciclismo em intensidade reduzida, com incremento de carga progressivo, acompanhado pelo treinador. No retorno à corrida, a paciente foi orientada a não utilizar mais as palmilhas e usar calçado (tênis) confortável para treinos e provas. Após 1 ano, em consulta médica, afirmava-se assintomática; os exames bioquímicos não apresentaram alterações, e o exame de densitometria óssea evidenciou osteopenia. Foi optado por suplementação oral de cálcio (500 mg) e vitamina D (1.000 UI) diários.

Dois anos após a última fratura, sem sintomas e mantendo cuidados nutricionais, durante um ciclo de alta intensidade de treinos sob orientação de um treinador, a paciente relatou, durante a corrida, dor progressiva no quadril esquerdo, refratária à diminuição de volume de treino. Uma nova avaliação médica ortopédica diagnosticou fratura por estresse na cortical medial do colo femoral esquerdo ([Figura 2]). Como tratamento, a paciente foi orientada a restringir carga no membro afetado e a usar o auxílio de muletas. Após 15 dias, ela retornou à natação (estilo livre), em 2 treinos por semana. Após 2 meses, a paciente estava sem dor e retornou ao ciclismo, com progressão lenta da carga e volume de treino. Após 4 meses do diagnóstico, em consulta médica, foi solicitada uma nova RM ([Figura 3]), que evidenciou consolidação da fratura. Foi iniciado o retorno à corrida, com progressão semanal de 10% do volume de treino, acompanhada pelo educador físico. Após 8 meses do diagnóstico da fratura no colo femoral, a paciente retornou ao triátlon, e participou de duas competições, sem queixas ([Figura 4]).

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Fig. 2 Imagem de ressonância magnética, ponderação T2, com hipersinal no cortical medial do colo do fêmur.
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Fig. 4 Linha do tempo.
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Fig. 3 Imagem de ressonância magnética, ponderação T2, confirmando consolidação da fratura do colo do fêmur.

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Discussão

Fraturas por estresse ocorrem em atletas saudáveis submetidos à sobrecarga física cíclica, com desequilíbrio do turnover ósseo, predomínio da atividade osteoclástica, resultando em microfraturas e, eventualmente, em fratura completa.[5] O caso descreve uma atleta, aparentemente saudável, que desenvolveu quatro fraturas por estresse. O sintoma mais comum é a dor mecânica,[6] e os membros inferiores são mais afetados, respondendo por quase 90% dos casos.[7] Na corrida, existe associação com sobrecarga de treino, principalmente em alta quilometragem semanal.[6] [7] A corrida foi o treino comum a todas as ocorrências, o que destaca atenção a este fator de risco.

Outros fatores de risco descritos para fraturas recorrentes são níveis reduzidos de vitamina D, distúrbios alimentares, ansiedade, déficit calórico, desordens menstruais, IMC < 21 kg/m2 e baixa DMO.[2] [6] [7] A associação entre estes constitui uma entidade conhecida como RED-S.[3] O desequilíbrio entre a ingesta e o gasto energético, associado a treinos exaustivos e à preocupação excessiva com performance e estética, culmina em disfunção hormonal, com aumento do risco de fratura por estresse.[3] [8] Acreditamos que apesar da ocorrência de outras fraturas, a continuidade da boa nutrição para a prática auxiliou sobretudo no tratamento da primeira fratura e no seguimento dos casos subsequentes. Alterações biomecânicas do arco plantar e tipos de pisada são apontados como possíveis fatores de risco para fraturas por estresse, mas de baixa evidência clínica.[8] Foi optado por não utilizar as palmilhas prescritas, e não houve recidiva da fratura na fíbula.

Na investigação de múltiplas fraturas realiza-se exames bioquímicos como cálcio, 25(OH) D3 e albumina.[9] Quanto ao diagnóstico por exames de imagem, o padrão-ouro é a RM, com sensibilidade de 100% e especificidade de 85%.[10] A DMO é indicada na suspeita de RED-S.[2] [3] No caso descrito, apesar de os exames bioquímicos não demonstrarem alterações, foi optado por suplementação de cálcio e vitamina D devido à osteopenia.

Fraturas por estresse são diferenciadas em “baixo” e “alto” risco de pseudoartrose e refratura sem tratamento cirúrgico.[9] As fraturas da paciente foram classificadas como de “baixo risco”, não acometendo cortical de tensão. São passíveis de tratamento conservador,[9] como realizado. Para evitar que a fratura se torne completa os pacientes devem realizar um período de repouso ou redução de carga sem imobilização.[9] [10] O retorno gradual ao esporte ocorre após 10 a 14 dias sem dor, com normalidade radiográfica.[2] A reabilitação física contempla o condicionamento físico sem impacto, e treino adaptado do gesto esportivo, com 25% menos volume de treino e aumento semanal de 10% na carga tolerada.[2] [3] A diminuição dos ciclos de alta intensidade é preconizada, associada a adequado aporte energético.[3] [6] A autorização médica para prática irrestrita somente após nova RM evidenciar consolidação óssea.[9] [10]

Os pontos fortes do relato apresentado foram a raridade do caso, a ocorrência das fraturas no mesmo gesto (corrida), e a evolução favorável com o tratamento e prevenção secundária. A principal limitação do estudo foi a dificuldade de acesso ao programa de treinamento implementado, pois seus detalhes poderiam demonstrar a associação da sobrecarga ao desenvolvimento das múltiplas fraturas por estresse.

Múltiplas fraturas por estresse em mulheres atletas praticantes de triátlon são raras. A presença de fatores de risco como nutrição inadequada, comportamento bulímico e sobrecarga de treino podem associar-se à ocorrência. Identificar estes fatores é primordial para o tratamento das lesões, e prevenção secundária efetiva na prática do triátlon.


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Agradecimento

Os autores agradecem a Professora Anelise Monteiro na formatação deste artigo.

* Trabalho desenvolvido no Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil.


  • Referências

  • 1 Romani WA, Gieck JH, Perrin DH, Saliba EN, Kahler DM. Mechanisms and management of stress fractures in physically active persons. J Athl Train 2002; 37 (03) 306-314
  • 2 Astur DC, Zanatta F, Arliani GG. et al. Fraturas por estresse: definição, diagnóstico e tratamento. Rev Bras Ortop 2016; 51 (01) 3-10
  • 3 Mountjoy M, Sundgot-Borgen J, Burke L. et al. The IOC consensus statement: beyond the Female Athlete Triad–Relative Energy Deficiency in Sport (RED-S). Br J Sports Med 2014; 48 (07) 491-497
  • 4 Riley DS, Barber MS, Kienle GS. et al. CARE guidelines for case reports: explanation and elaboration document. J Clin Epidemiol 2017; 89: 218-235
  • 5 Harrast MA, Colonno D. Stress fractures in runners. Clin Sports Med 2010; 29 (03) 399-416
  • 6 Royer M, Thomas T, Cesini J, Legrand E. Stress fractures in 2011: practical approach. Joint Bone Spine 2012; 79 (Suppl. 02) S86-S90
  • 7 Korpelainen R, Orava S, Karpakka J, Siira P, Hulkko A. Risk factors for recurrent stress fractures in athletes. Am J Sports Med 2001; 29 (03) 304-310
  • 8 Goolsby MA, Boniquit N. Bone health in athletes. Sports Health 2017; 9 (02) 108-117
  • 9 Miller TL, Kaeding CC. ISAKOS clinical update on stress fractures: Classification and management. ISAKOS Newsletter 2015; 1: 24-27
  • 10 McInnis KC, Ramey LN. High-risk stress fractures: diagnosis and management. PM R 2016; 8 (3, Suppl) S113-S124

Endereço para correspondência

Adriano Fernando Mendes Júnior, MD, MSc.
Rua Luiz Perry, 165, apto. 703, Santa Helena. Juiz de Fora, MG, 36015-380
Brasil   

Publikationsverlauf

Eingereicht: 05. Mai 2020

Angenommen: 08. März 2021

Artikel online veröffentlicht:
07. Dezember 2021

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  • 10 McInnis KC, Ramey LN. High-risk stress fractures: diagnosis and management. PM R 2016; 8 (3, Suppl) S113-S124

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Fig. 1 Imagens de exames com fratura por estresse da tíbia. (A, B e C) Imagens de cintilografia óssea, (D) Imagem de ressonância magnética, ponderação T2.
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Fig. 2 Imagem de ressonância magnética, ponderação T2, com hipersinal no cortical medial do colo do fêmur.
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Fig. 4 Linha do tempo.
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Fig. 3 Imagem de ressonância magnética, ponderação T2, confirmando consolidação da fratura do colo do fêmur.
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Fig. 1 Test images revealing tibial stress fractures. (A, B and C). Bone scintigraphy scan images, (D) T2-weighted magnetic resonance imaging scan.
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Fig. 2 T2-weighted magnetic resonance imaging scan revealing a hypersignal at the medial cortex of the femoral neck.
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Fig. 3 T2-weighted magnetic resonance imaging scan confirming femoral neck fracture consolidation.
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Fig. 4 Timeline.