Palavras-chave
descompressão cirúrgica - traumatismos da medula espinal - inquéritos e questionários
Introdução
A lesão medular aguda (LMA) é uma doença devastadora com consequências dramáticas para o paciente, a família e a sociedade. Apesar de todos os esforços, o manejo ideal destes pacientes ainda é incerto. A recuperação neurológica varia conforme a gravidade da lesão medular; as lesões incompletas têm resultados melhores do que as completas (Escala de Disfunção da American Spinal Injury Association [ASIA, na sigla em inglês] D > C > B > A).[1]
Embora se concorde que pacientes com lesões agudas e instabilidade precisam de descompressão cirúrgica urgente, há controvérsias quanto ao momento ideal do procedimento. Evidências acumuladas sugerem que a descompressão precoce está associada a uma melhor recuperação neurológica.[2]
[3]
[4] Um artigo recente relatou que as primeiras 24 a 36 horas após a lesão são cruciais para a realização da descompressão e uma boa recuperação neurológica.[5]
O manejo de pacientes com lesão medular traumática sem evidência radiológica de instabilidade (a chamada síndrome medular central) é ainda mais controverso. Enquanto alguns defendem a descompressão precoce, outros difundem a cirurgia após a estabilização clínica.[6]
[7]
[8]
[9]
Em 2017, Fehlings et al.[10] publicaram uma revisão sistemática da literatura sobre o tempo (24 horas versus > 24 horas) para a realização da cirurgia de descompressão. Este grupo sugere considerar a cirurgia precoce como opção em pacientes com LMA independentemente do nível e naqueles com síndrome medular central traumática apesar da baixa qualidade das evidências em ambos os casos.
A descompressão ultra precoce, em até 12 horas, tem ganhado relevância, principalmente nas lesões cervicais; alguns estudos sugerem que esta abordagem pode permitir melhores desfechos neurológicos em relação à descompressão precoce (12 a 24 horas).[11]
[12] No entanto, mais estudos são necessários para sustentar este argumento.
O objetivo do presente estudo foi avaliar a prática atual em termos de momento de realização da cirurgia entre cirurgiões de coluna de países ibero-americanos.
Materiais e Métodos
O presente estudo é um estudo descritivo e transversal.
Um link para o questionário foi enviado três vezes por correio eletrônico para membros da Sociedad Ibero Latinoamericana de Columna (SILACO, na sigla em espanhol) e sociedades associadas e ficou ativo de 6 de maio a 30 de junho de 2020. Havia versões do questionário em português e espanhol. A maioria das questões era de escolha múltipla e todas de resposta obrigatória. A pesquisa foi composta por três partes: dados demográficos, tempo para realização da cirurgia para tratamento da lesão medular e uso de succinato sódico de metilprednisolona (MPSS) na LMA (cujos resultados fazem parte de um estudo separado).
A análise estatística foi feita no software IBM SPSS Statistics for Windows (IBM Corp., Armonk, NY, EUA) e a significância foi estabelecida em p < 0,05. Os grupos foram comparados com o teste de Fisher e qui-quadrado de Pearson (variáveis qualitativas). Uma regressão logística foi realizada caso mais de uma variável alcançasse significância estatística.
Resultados
Dados Demográficos
No total, 162 cirurgiões ortopédicos e neurocirurgiões participaram deste estudo; 62,3% (101) eram cirurgiões ortopédicos e 37,7% (61), neurocirurgiões. Mais de 50% dos participantes eram de Portugal ou do Brasil; os países com < 30 participações foram agrupados como Espanha + América Central e América do Sul; destes, 28 eram da Espanha (17,3%), 15 do Equador (9,3%), 12 do Paraguai (7,4%), 5 da Bolívia (3,1%), 2 do Chile (1,2%), 2 da República Dominicana (1,2%), 2 da Argentina (1,2%), 1 do México (0,6) e 1 do Uruguai (0,6%). A maioria (58,0%) dos cirurgiões tinha > 10 anos de experiência em cirurgia de coluna. Cento e um (62,3%) trabalhavam em uma instituição com unidade vertebromedular ([Tabela 1]).
Tabela 1
Características
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(n = 162)
|
Especialidade
Ortopedia
Neurocirurgia
|
101 (62,3%)
61 (37,7%)
|
País
Portugal
Brasil
Espanha + América Central e do Sul (
n
< 30)
|
48 (29,6%)
46 (28,4%)
68 (42,0%)
|
Experiência em cirurgia de coluna
< 5 anos
5–10 anos
> 10 anos
|
32 (19,8%)
36 (22,2%)
94 (58,0%)
|
Unidade vertebromedular
Sim
Não
|
101(62,3%)
61 (37,7%)
|
Disponibilidade de ressonância magnética em < 12 horas
Sim
Não
|
128 (79,0%)
34 (21,0%)
|
Questões:
Sessenta e oito (42,0%) dos entrevistados acreditavam que a LMA com lesão neurológica completa deveria ser tratada em 12 horas, 54 (33,3%) concordavam com a descompressão precoce em 24 horas e 40 (24,7%) com a descompressão em 48 horas.
Não houve diferenças significativas entre a experiência do cirurgião (p = 0,509) ou o tipo de instituição (com ou sem unidade vertebromedular) (p = 0,690) quanto à descompressão precoce (em ≤ 24 horas). Houve diferença significativa entre países (p = 0,017) e especialidade (p = 0,023), com cirurgiões de Portugal e neurocirurgiões defendendo a descompressão mais precoce do que cirurgiões de outros países e ortopédicos, respectivamente. Após a regressão logística, a associação com país e especialidade continuou estatisticamente significativa ([Tabela 2]).
Tabela 2
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< 24 horas
|
> 24 horas
|
Proporção de descompressão precoce (%)
|
valor-p
|
País
Portugal
Brasil
Espanha + América Central e do Sul (
n
< 30)
|
42
36
44
|
6
10
24
|
87,5
78,2
64,7
|
< 0,01
|
Especialidade
Ortopedia
Neurocirurgia
|
70
52
|
31
9
|
69,3
85,2
|
< 0,01
|
Não houve diferenças significativas entre a experiência do cirurgião (p = 0,412) ou o tipo de instituição (com ou sem unidade vertebromedular) (p = 0,647) quanto à descompressão ultra precoce. A diferença significativa entre países (p < 0,01) e especialidades (p < 0,01) também foi observada em relação à descompressão ultra precoce ([Tabela 3]), com cirurgiões de Portugal ou do Brasil e neurocirurgiões defendendo a descompressão ultra precoce em oposição a cirurgiões de outros países e ortopédicos, respectivamente.
Tabela 3
|
< 12 horas
|
> 12 horas
|
Proporção de descompressão ultra precoce (%)
|
valor-p
|
País
Portugal
Brasil
Espanha + América Central e do Sul (
n
< 30)
|
25
27
16
|
23
19
52
|
52,1
58,7
23,5
|
< 0,01
|
Especialidade
Ortopedia
Neurocirurgia
|
33
35
|
68
26
|
32,7
57,4
|
< 0,01
|
Cento e cinquenta (71,0%) dos entrevistados fariam a cirurgia em < 12 horas, 40 (24,7%) em até 24 horas e 7 (4,3%) em até 48 horas. Não houve diferenças significativas em relação à descompressão precoce e ultra precoce entre países (p = 0,712 e p = 0,716), especialidade (p = 0,712 e p = 0,803), experiência do cirurgião (p = 0,961 e p = 0,656) ou tipo de instituição (com ou sem unidade vertebromedular) (p = 0,712 e p = 0,411).
Houve diferença significativa na proporção de cirurgiões que operariam pacientes com LMA em ≤ 24 horas quanto ao tipo de lesão (lesão completa [122] versus lesão incompleta [155]; p<0.01) ([Tabela 4]).
Tabela 4
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< 24 horas
|
> 24 horas
|
Proporção de descompressão precoce (%)
|
valor-p
|
AIS
A
B-D
|
122
155
|
40
7
|
74,3
95,7
|
< 0,01
|
Nos casos de lesão medular traumática sem evidência radiológica de instabilidade (síndrome medular central), 152 cirurgiões (93,8%) realizariam a descompressão cirúrgica: 1 (0,6%) nas primeiras 12 horas, 63 (38,9%) nas primeiras 24 horas, 4 (2,5%) nas primeiras 48 horas, 66 (40,7%) no internamento inicial, o mais rápido possível, e 18 (11,1%) após a estabilização neurológica (semanas ou meses após o traumatismo). Dez (6,2%) cirurgiões não considerariam o tratamento cirúrgico independentemente do momento.
Não houve diferenças significativas entre países (p = 0,817), experiência do cirurgião (p = 0,172) ou o tipo de instituição (com ou sem unidade vertebromedular) (p = 0,051). Houve diferença significativa entre as especialidades (p < 0,01), com os neurocirurgiões defendendo a descompressão mais precoce do que os cirurgiões ortopédicos ([Tabela 5]).
Tabela 5
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Assim que possível ou menos
|
Depois da estabilização ou mais
|
valor-p
|
Especialidade
Ortopedia
Neurocirurgia
|
76
58
|
25
3
|
< 0,01
|
Cento e trinta e um cirurgiões (80,9%) acreditavam que o momento de realização da cirurgia não deveria ser influenciado pela região da lesão. Trinta (18,5%) relataram cirurgias precoces em lesões cervicais e 1 (0,6%) as relatou em lesões torácicas. Não houve diferenças significativas entre países (p = 0,457), especialidade (p = 0,587), experiência do cirurgião (p = 0,104) ou o tipo de instituição (com ou sem unidade vertebromedular) (p = 0,723).
Noventa e três (57,4%) dos cirurgiões consideravam que a cirurgia era realizada depois do ideal devido a restrições inerentes à sua instituição (disponibilidade de RM, centro cirúrgico etc.), enquanto 69 (42,6%) não referiram nenhuma limitação.
Discussão
Os achados do presente estudo mostram que a descompressão precoce é a abordagem preferencial em lesões completas e incompletas. A descompressão precoce tem associação significativa com o país – os cirurgiões portugueses revelaram uma tendência a preferir a descompressão mais precoce; com a especialidade – um número significativamente maior de neurocirurgiões do que de cirurgiões ortopédicos prefere a descompressão precoce; e com lesão neurológica incompleta, já que houve consenso significativo em favor da descompressão precoce nos pacientes com esta lesão.
Estes achados são condizentes com um estudo holandês de 2018, com 55 cirurgiões, que preferiam realizar o procedimento em 24 horas e distinguiam o momento de realização da cirurgia com base na lesão neurológica inicial (57% – ASIA A; 75% – ASIA B; 78% – ASIA C/D).[13]
Como esperado, houve menos consenso em relação ao tratamento cirúrgico da lesão medular central, como revelado por uma pesquisa de 2010 com 971 cirurgiões de coluna.[14]
Mais da metade dos participantes acredita que a cirurgia é realizada depois do ideal devido a restrições inerentes à sua instituição (disponibilidade de RM, centro cirúrgico etc.), o que está de acordo com uma pesquisa canadense de 2017 que descobriu que, embora a maioria dos cirurgiões acreditasse que a descompressão precoce deveria ser realizada, o procedimento era feito em menos da metade dos pacientes; o acesso ao centro cirúrgico e o transporte urgente de pacientes foram identificados como as principais barreiras.[15]
Embora o questionário tenha sido enviado a todos os membros da SILACO, a maioria dos participantes era de Portugal e do Brasil e alguns países foram subrepresentados na presente análise. Portanto, nossos dados podem não refletir com precisão a prática em relação ao momento da cirurgia em todos os países ibero-americanos, mas em grupos de profissionais desses países.
Apesar dos crescentes avanços no conhecimento e do aumento do consenso sobre a necessidade de descompressão precoce na LMA, barreiras continuam a ser identificadas. Estas barreiras estão relacionadas principalmente à disponibilidade de RM e do centro cirúrgico. A criação de protocolos de atendimento rápido para estes pacientes e de centros de referência equipados para tratá-los em tempo hábil pode permitir a melhora no manejo. Além disso, a descompressão ultra precoce pode ter vantagens sobre a descompressão precoce, mas somente estudos futuros elucidarão esta questão.
Conclusão
O presente estudo relata o manejo cirúrgico atual da LMA em países ibero-americanos. Todos os cirurgiões que responderam a este questionário favorecem a descompressão precoce em pacientes com LMA e a grande maioria realiza a cirurgia nas primeiras 24 horas. A descompressão é feita antes em casos de lesões incompletas em comparação com lesões completas. Nos casos de síndrome medular central sem evidência radiológica de instabilidade, há uma tendência à descompressão cirúrgica precoce, mas o momento de realização do procedimento ainda é extremamente variável. Estudos futuros são necessários para identificar o momento ideal para descompressão neste subconjunto de pacientes com LMA.