CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2023; 58(03): 500-506
DOI: 10.1055/s-0042-1747975
Artigo Original
Quadril

Análise biomecânica da marcha de pacientes com osteonecrose da cabeça do fêmur

Artikel in mehreren Sprachen: português | English
1   Departamento de Ortopedia, Reumatologia e Traumatologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
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1   Departamento de Ortopedia, Reumatologia e Traumatologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
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1   Departamento de Ortopedia, Reumatologia e Traumatologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
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1   Departamento de Ortopedia, Reumatologia e Traumatologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
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Suporte Financeiro Não houve suporte financeiro de fontes públicas, comerciais ou sem fins lucrativos.
 

Resumo

Objetivos Embora a osteonecrose da cabeça do fêmur seja uma lesão prevalente, seus efeitos sobre os parâmetros da marcha não foram minuciosamente estudados e não estão bem estabelecidos na literatura atual. O objetivo principal do presente estudo é descrever a marcha em pacientes com osteonecrose.

Métodos Trata-se de um estudo transversal. Nove pacientes com diagnóstico de osteonecrose da cabeça do fêmur, sob acompanhamento regular em ambulatório, foram selecionados para o presente estudo e submetidos à análise da marcha com Vicon Motion Capture Systems. Os dados espaciais e temporais foram obtidos e os ângulos articulares foram calculados com o sistema de coordenadas angulares de Euler. Sistemas de coordenadas distais e plataformas de força foram utilizados para o cálculo de momentos articulares e de forças de reação ao solo, respectivamente.

Resultados Os pacientes com osteonecrose apresentaram menor velocidade (0,54 m/s ± 0,19) e menor cadência (83,01 passos/minuto ± 13,23) do que pacientes saudáveis. As amplitudes de movimento de obliquidade e rotação pélvica foram de 10,12° ± 3,03 e 18,23° ± 9,17, respectivamente. A média de flexão do quadril foi de 9,48° ± 3,40. O estudo das forças de reação ao solo revelou redução das forças de frenagem e propulsão. Os momentos articulares de flexão e adução caíram (0,42 Nm/kg ± 0,2 e 0,30 Nm/kg ± 0,11), mas o momento de abdução aumentou (0,42 Nm/kg ± 0,18).

Conclusões O presente estudo mostrou que a osteonecrose da cabeça do fêmur é associada a mecanismos compensatórios da marcha, com aumento da movimentação pélvica e diminuição da flexão do joelho para proteção da articulação do quadril. A redução dos momentos de flexão e adução do quadril também foi identificada e a fraqueza destes grupos musculares pode estar correlacionada à doença.


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Introdução

A osteonecrose da cabeça do fêmur (ONCF) é uma doença causada pela interrupção do suprimento sanguíneo para esta estrutura óssea, o que provoca morte do tecido ósseo medular e, depois, colapso do osso subcondral e deformidade da cabeça femoral.[1] [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9] Trata-se de uma lesão debilitante e progressiva que pode causar doença degenerativa do quadril e perda funcional.[1] [2] [10] A ONCF ocorre em pacientes com entre 30 e 50 anos de idade,[7] [9] com uma incidência de 10.000 a 20.000 casos por ano nos Estados Unidos.[7] [10] A ONCF é responsável por 10% de todas as artroplastias totais de quadril (ATQs) realizadas nos Estados Unidos.[3]

Embora sua patogênese não tenha sido esclarecida,[4] a ONCF é considerada uma doença multifatorial e sua evolução é influenciada por fatores genéticos e ambientais.[5] A isquemia pode ser causada por dano endotelial, trombose, aumento da pressão intraóssea, efeitos citotóxicos de medicamentos (como corticosteroides, que aumentam a apoptose de osteócitos) e eventos traumáticos.[3] A etiologia da ONCF pode ser idiopática, traumática e não traumática. De modo geral, a osteonecrose por traumatismo está relacionada a fraturas do colo do fêmur, luxações do quadril ou microtraumas repetitivos. Dentre os fatores de risco não traumáticos estão o tratamento com cortisona, abuso de álcool, discrasias sanguíneas (doença falciforme, mutação do fator V de Leiden, redução de proteína C ou S, aumento de lipoproteína sanguínea), lúpus eritematoso sistêmico, doença de Gaucher e doença de Caisson, além de alguns menos documentados, como a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana.[4] [6] [9]

Os pacientes geralmente são assintomáticos nos primeiros estágios da doença e, depois, apresentam dor na virilha ou sulco glúteo e diminuição da amplitude de movimento (ADM) do quadril, em especial em rotação interna.[4] [6] [9] O diagnóstico precoce é essencial para evitar a progressão em colapso. As radiografias são os primeiros métodos de imagem solicitados; no entanto, seus achados podem ser normais. Se houver suspeita clínica, mas não alterações radiográficas, deve-se realizar uma ressonância magnética, que tem até 100% de sensibilidade para o diagnóstico de ONCF.[2] [3]

Após o diagnóstico, o estadiamento define o tratamento. A classificação de Ficat e Arlet é a mais utilizada na clínica. Os sinais radiográficos definem o estadiamento entre 0 e IV no sistema de Ficat e Arlet.[11] O sistema de Steinberg também utiliza critérios radiográficos para classificação em estágio brando, moderado ou grave de acordo com a porcentagem de acometimento da cabeça do fêmur. O sistema Association Research Circulation Osseous (ARCO, na sigla em inglês) inclui achados de cintilografia, ressonância magnética (RM) e tomografia computadorizada (TC) que ajudam a determinar a posição e a área total de necrose.[10] [12]

A escolha do tratamento é baseada no estadiamento. Os tratamentos não cirúrgicos incluem medicamentos orais (principalmente bifosfonatos), câmara hiperbárica, terapia com ondas de choque extracorpóreas e campos eletromagnéticos pulsados.[8] [9] As alternativas de tratamento cirúrgico são descompressão central, osteotomias, enxerto ósseo e ATQ. As artroplastias de quadril são preferidas devido à sua alta taxa de sucesso; no entanto, há maior risco de soltura asséptica e infecção em pacientes mais jovens.[7] [8]

A análise biomecânica da marcha é uma das formas mais confiáveis de avaliar seus parâmetros cinéticos e cinemáticos[13] e produz dados adequados e detalhados para a avaliação de pacientes com comprometimento da marcha, suas condições funcionais e mecanismos compensatórios.[14]

Apesar da alta incidência, carga econômica e graves comprometimentos funcionais associados à ONCF, poucos estudos analisaram seu efeito sobre os parâmetros da marcha. O presente estudo transversal teve como objetivo avaliar e descrever os parâmetros de marcha em pacientes com ONCF, compará-los à literatura sobre análise de marcha em lesões com desfechos degenerativos semelhantes e descrever um possível mecanismo compensatório para os déficits identificados.


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Métodos

Participantes

O presente estudo é um estudo transversal aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (47578621.0.0000.5404). Nove pacientes que optaram por participar do estudo foram incluídos. Estes indivíduos tinham diagnóstico prévio de ONCF e estavam sob acompanhamento regular no Ambulatório de Patologias do Quadril Adulto do hospital clínico. Pacientes já submetidos a procedimentos cirúrgicos definitivos para tratamento de ONCF, que apresentavam outras patologias (como deformidades neurológicas, sindrômicas, ortopédicas ou de membros inferiores que pudessem afetar a marcha), que haviam passado por procedimentos que afetaram a marcha ou que sofreram traumatismo recente em membro inferior foram excluídos do estudo. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido do presente estudo.


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Análise da Marcha

Antes da análise da marcha, uma ficha de coleta de dados, contendo idade, gênero e classificações Ficat e Arlet e ARCO de acordo com dados clínicos, o prontuário do paciente e as últimas imagens no sistema do hospital, foi preenchida. As classificações foram revistas pelos autores. A massa corporal foi medida com balança e convertida em Newtons para normalização.

A análise da marcha foi realizada com sistema de captura de movimento Vicon de 12 câmeras (Vero) (Vicon, Oxford, Reino Unido) a 120 Hz para obtenção de dados cinéticos e cinemáticos e duas plataformas de força AMTI construídas em uma passarela fixa de 10 m de comprimento (Advanced Mechanical Technology Inc., Watertown, MA, Estados Unidos) para determinação das forças de reação ao solo. A reconstrução tridimensional (3D) e a análise dos dados foram realizadas com o sistema Motion Monitor xGen (Innovative Sports Training Inc., Chicago, IL, Estados Unidos). Sete grupos de sensores com quatro marcadores foram posicionados no sacro, na coxa direita e esquerda, na perna direita e esquerda e no pé direito e esquerdo de cada participante para seleção do segmento. Uma caneta foi usada para digitalizar os marcos anatômicos para a reconstrução 3D ([Fig. 1]) e identificação do segmento e do centro articular. Depois, pedimos para os participantes caminharem em ritmo confortável sobre a passarela por 30 segundos; os dados de 10 a 20 ciclos de marcha de cada paciente foram coletados. Um valor para cada variável foi coletado a cada 10 milissegundos.

Zoom Image
Fig. 1 Animação tridimensional da marcha durante um ensaio com o sistema The Motion Monitor xGen (Innovative Sports Training Inc., Chicago, IL, Estados Unidos).

Os centros articulares e segmentos corporais foram identificados com o The Motion Monitor (Innovative Sports Training Inc., Chicago, IL, Estados Unidos) e a massa e a inércia do segmento foram calculadas com equações de regressão não linear. Os ângulos de Euler foram usados para cálculo de ângulos articulares por meio de um sistema de coordenadas distais em uma sequência de flexão-extensão, abdução-adução e rotação interna-externa. Os ângulos da pelve, do quadril, do joelho e do tornozelo foram coletados bilateralmente; entretanto, apenas o membro acometido foi analisado. O momento foi calculado por dinâmica inversa e expresso no sistema de coordenadas do segmento distal; os dados de momento e força foram submetidos à normalização por divisão. Os autores usaram uma perspectiva interna para avaliação dos dados cinéticos e interpretação da função da marcha.


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Análise Estatística

A análise dos dados foi realizada no software IBM SPSS Statistics for Windows, versão 28.0 (IBM Corp., Armonk, NY, Estados Unidos). Todos os dados foram avaliados quanto à normalidade. Testes t de uma amostra compararam características de valores de pico em participantes saudáveis encontrados na literatura.[14] [15] [16] A significância foi estabelecida em p < 0,05.


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Resultados

Nove participantes que preencheram os critérios de elegibilidade foram incluídos no presente estudo, dos quais 66,7% (n = 6) apresentavam doença bilateral do quadril e 33,3% (n = 3) apresentavam acometimento unilateral do quadril. Assim, no total, 15 quadris foram analisados. Seis pacientes eram homens e a média de idade de todos os pacientes foi de 44,11 anos (±14,8; p = 0,101). O peso médio foi 76,1 ± 17,6 kg e a altura média foi 166,6 ± 6,7 cm. A classificação de Ficat e Arlet foi estágio IV em 13 quadris, estágio III em 1 quadril e estágio II em 1 quadril. A classificação ARCO foi 4 em 13 quadris, 3A em 1 quadril e 1 em 1 quadril. Em suma, houve uma preponderância significativa de avaliações após o colapso da cabeça femoral, o que explica o estágio IV de Ficat e Arlet e o estágio ARCO 4.

Os dados cinemáticos de velocidade da marcha, cadência, comprimento da passada, frequência da passada e duração do ciclo foram avaliados de forma linear, enquanto os ângulos articulares foram analisados de maneira angular. As [Tabelas 1], [2] e [3]> mostram os resultados da análise cinemática. A cinemática linear é apresentada em média e desvio padrão (DP) e os ângulos articulares são descritos em média, amplitude de movimento (ADM) e DP para cada movimento articular.

Tabela 1

Referência[*] [14]

Média

DP

valor-p

Velocidade da marcha (m/s)

1,32

0,54

0,19

< 0,01

Cadência (passos/minuto)

99

83,01

18,23

0,015

Comprimento da passada (m)

1,21

0,78

0,24

< 0,01

Frequência da passada (Hz)

0,69

0,15

Duração do ciclo (s)

1,22

1,51

0,35

0,019

Tabela 2

Referência[*] [15]

Ângulo

DP

valor-p

Unilateral

Inclinação pélvica

Média

11,4

40,66

19,88

0,63

Obliquidade

Média

0,1

5,56

4,64

0,89

ADM

10,3

10,29

4,44

0,49

Rotação

Média

0

10,28

5,18

0,03

ADM

12,5

15,70

5,94

0,22

Bilateral

Inclinação pélvica

Média

11,4

35,13

16,34

0,08

Obliquidade

Média

0,1

4,04

2,26

0,04

ADM

10,3

10,04

5,20

0,45

Rotação

Média

0

11,70

9,66

0,02

ADM

12,5

19,5

10,7

0,85

Total

Inclinação pélvica

Média

11,4

32,60

17,9

< 0,01

Obliquidade

Média

0,10

4,55

4,68

< 0,01

ADM

10,3

10,12

3,03

0,45

Rotação

Média

0

11,23

8,1

< 0,01

ADM

12,5

18,23

9,17

0,05

Tabela 3

Referência[*] [15]

Ângulo

DP

valor-p

Quadril

Flexão

Média

16,4

9,48

3,40

< 0,01

ADM

43,6

23,62

7,56

< 0,01

Extensão

Média

−7,4

7,29

3,66

< 0,01

ADM

42,0

18,24

8,45

< 0,01

Abdução

Média

−8,0

5,04

2,50

< 0,01

ADM

14,0

13,35

7,86

0,40

Adução

Média

−0,4

4,01

2,14

< 0,01

ADM

14,0

10,16

4,29

< 0,01

Rotação interna

Média

0,7

5,29

2,58

< 0,01

ADM

0,9

12,39

5,28

< 0,01

Rotação externa

Média

0,7

7,54

1,58

< 0,01

ADM

0,9

17,36

3,47

< 0,01

Joelho

Flexão

Média

20,6

16,21

2,58

< 0,01

ADM

61,2

51,9

6,69

0,02

Tornozelo

Dorsiflexão

Média

29,4

4,31

1,62

0,004

ADM

6,2

24,67

9,17

0,08

Flexão plantar

Média

−29,4

5,05

1,51

0,026

ADM

−6,2

25

6,61

0,041

Em resumo, a velocidade da marcha foi 0,54 ± 0,19 com cadência de 83,01 ± 13,23. A ADM da obliquidade pélvica foi de 10,12 ± 3,03 e de rotação, 18,23 ± 9,17. A média de flexão do quadril foi de 9,48 ± 3,40, com ADM de 23,62 ± 7,56.

Os dados cinéticos foram analisados conforme a força de reação ao solo (FRS) e o momento articular. A FRS foi normalizada pelo peso corporal (PC) e o momento pela massa corporal (kg).[13] [17] A FRS é mostrada na [Fig. 2] e os dados de momento articular estão na [Tabela 4].

Zoom Image
Fig. 2 Médias e desvios padrão das forças de reação do solo (FSR; N/peso corpóreo) em pacientes com osteonecrose da cabeça do fêmur. 1. FRS média no segundo pico de postura. 2. FRS média no primeiro pico de postura. O desvio padrão do componente mediolateral (ML) é de 0,01 (p = 0,29), do componente anteroposterior (AP) é de 0,04 (p = 0,015) e do componente vertical (V) é de 0,12 (p = 0,34).
Tabela 4

Referência[*] [16]

Média

DP

valor-p

Momento de flexão / Extensão do quadril (Nm/kg)

Resposta de carga

0,92

0,42

0,20

< 0,01

Postura terminal

0,65

0,51

0,20

0,06

Balanço terminal

0,34

0,09

Momento de abdução / Adução do quadril (Nm/kg)

Suporte único inicial

0,24

0,42

0,18

< 0,01

Suporte único medial

0,28

0,09

Suporte único terminal

0,83

0,30

0,11

< 0,01


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Discussão

A análise da marcha é uma boa ferramenta para avaliação da funcionalidade do paciente em doenças osteomusculares. Assim, o médico é capaz de avaliar uma atividade diária que pode prejudicar muito a qualidade de vida e investir em medidas não cirúrgicas imediatas para melhora da dor, da funcionalidade e, por fim, dos desfechos cirúrgicos. Embora existam vários sistemas para análise do desempenho do quadril,[18] eles são dependentes da autoavaliação pelo paciente e do exame físico e, muitas vezes, carecem de objetividade.

A ONCF tem incidência considerável e pode ter diversas etiologias; no entanto, poucos artigos avaliaram seu efeito na marcha, talvez devido aos desfechos clínicos semelhantes aos da osteoartrite (OA) do quadril. O presente estudo descreveu a cinética e a cinemática da marcha e comparou os resultados com a literatura relevante em participantes com ONCF e indivíduos saudáveis assintomáticos.

Observamos valores menores de velocidade da marcha, de cadência e de comprimento da passada e maior duração do ciclo em comparação aos relatos de Cho et al.[19] em 39 participantes com ONCF antes da ATQ. Todos os dados espaciais e temporais foram comparados com os encontrados por Holden et al.,[14] mostrando médias significativamente menores de parâmetros de distância e tempo em indivíduos saudáveis. Embora tais resultados fossem esperados em comparação com participantes fisicamente aptos, as diferenças encontradas entre os grupos com ONCF podem ser decorrentes da gravidade da doença nos pacientes analisados no presente estudo. A menor velocidade é comum em doenças degenerativas do quadril com diminuição da ADM articular e dor.

Os parâmetros angulares pélvicos gerais foram anormalmente diferentes daqueles encontrados em participantes saudáveis por Otayek et al.,[15] em especial em relação à obliquidade média para cima e ADM média de rotação. No entanto, estes parâmetros foram semelhantes aos observados no grupo com ONCF por Cho et al.,[19] o que pode significar um mecanismo compensatório para minimizar os efeitos da diminuição da ADM do quadril na marcha. Ao comparar os grupos de pacientes com ONCF, aqueles com doença unilateral apresentam aumento isolado da rotação pélvica média, enquanto aqueles com acometimento bilateral do quadril apresentam aumento tanto da obliquidade pélvica média quanto da rotação pélvica média.

A flexão e a ADM médias do quadril foram maiores em pacientes com ONCF de outro estudo,[19] bem como em participantes saudáveis.[15] [20] Observamos médias de extensão, abdução e adução do quadril significativamente maiores; nos dois últimos parâmetros, porém, a ADM foi menor do que nos quadris não acometidos de outros estudos, mas a diferença na ADM de abdução foi insignificante.[15] Também observamos maior rotação interna e externa média em pacientes do que em indivíduos não acometidos relatados por Otayek et al.,[15] mas similares aos de outros participantes com ONCF e ao grupo controle saudável de Cho et al.[19] O movimento limitado do quadril é frequentemente associado à ONCF, em especial após o colapso da cabeça femoral e, a princípio, em rotação interna. Embora o grupo avaliado no presente estudo tenha sido composto em sua maioria por pacientes com doença degenerativa avançada, o que já poderia reduzir a ADM, a limitação dos valores angulares também pode ser decorrente da dor.[4]

A flexão média e a ADM do joelho foram um pouco menores em comparação à cinemática de participantes fisicamente aptos. A dorsiflexão e a flexão plantar do tornozelo também foram discretamente diminuídas; no entanto, a diferença da ADM de dorsiflexão do tornozelo é insignificante.[15] [20] Como relatado por Bejek et al.[21] ao avaliar participantes com OA, o aumento do movimento pélvico e a redução da movimentação da articulação do joelho podem significar um mecanismo de ajuste para manter a velocidade geral e o comprimento da passada, além de para proteger a articulação do quadril acometido do excesso de movimento e da dor subsequente.

Nos dados cinéticos, as FRSs foram avaliadas nas fases de apoio da marcha. Os participantes apresentaram postura bimodal. O pico médio de impacto (primeiro pico) se aproximou do PC do participante, mostrando pouco componente muscular na geração desta força de reação, o que era esperado. O pico ativo médio (segundo pico) estava acima do peso corporal em 1,24 Nm/PC, traduzindo-se em impulsão durante a marcha. Os valores encontrados foram significativamente semelhantes aos encontrados por Nilsson et al. durante a caminhada em velocidade lenta em participantes saudáveis, indicando atividade muscular efetiva durante a impulsão.[16] Não houve diferença significativa na FRS mediolateral em comparação com os quadris normais. A FRS de frenagem e propulsão se traduz no componente anteroposterior obtido nas plataformas de força. Os segundos picos de frenagem e propulsão foram significativamente menores do que em indivíduos saudáveis.[16] Estes valores podem ser consequência da menor velocidade da marcha, uma vez que a força propulsora é diretamente proporcional à velocidade da marcha e condiz com uma tendência de preservação da articulação do quadril.

O momento articular foi analisado em todos os quadris acometidos. Os momentos de flexão em resposta à carga e balanço terminal, assim como os momentos de abdução em todas as fases de apoio simples, foram menores do que os encontrados por Cho et al. em outros participantes com ONCF.[19] Como já mencionado, isto pode ser devido à maior gravidade dos casos avaliados no presente estudo, embora as classificações de gravidade e os métodos de normalização não sejam divulgados no artigo supracitado. Em relação aos participantes saudáveis, todos os valores de momento de flexão foram menores. Não houve diferença significativa no momento máximo de extensão, que ocorre durante o apoio terminal, em comparação ao relatado por Moisio et al.[17] Há uma fraqueza muscular significativa na flexão, em especial do reto femoral e do ilíaco, que participam de forma mais ativa da marcha, principalmente nas fases de resposta de carga e balanço.[22] Por outro lado, o momento de extensão do quadril é bastante similar ao observado no grupo com ONCF por Cho et al.,[19] mas um pouco menor em comparação com indivíduos saudáveis.[17] Como o momento de abdução foi superior ao encontrado por Moisio et al.,[17] o presente estudo mostra a boa função do glúteo médio, que atua nas primeiras fases de apoio único da marcha.[22] Em contraste, o momento de adução foi significativamente menor em comparação com o movimento normal do quadril.[17] Nos pacientes com ONCF, a maior força de abdução pode ser decorrente da necessidade de estabilização da pelve durante a marcha, uma vez que é evidente que o movimento pélvico pode ser um dos principais mecanismos compensatórios da marcha destes indivíduos.


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Conclusão

De modo geral, os participantes com ONCF apresentaram parâmetros tempo-distância significativamente menores em comparação com indivíduos saudáveis. Na cinemática angular, os ângulos articulares médios de ADM média do quadril tendem a ser menores em pacientes com ONCF, que parecem apresentar mecanismos compensatórios. Houve um aumento do movimento pélvico tanto em obliquidade quanto em rotação e diminuição da flexão do joelho; além disso, parece haver redução do movimento do quadril para diminuir a dor e manter os parâmetros espaciais e temporais. As FRSs observadas foram compatíveis à FRS vertical bimodal em participantes saudáveis. As forças de frenagem e propulsão foram significativamente menores e podem estar relacionadas à menor velocidade de caminhada. Os pacientes do presente estudo apresentaram maior fraqueza em músculos flexores e adutores do quadril; no entanto, o aumento da força de abdução em fases de apoio único foi observado em participantes não acometidos.

O presente estudo concentrou-se principalmente em pacientes com ONCF após colapso da cabeça femoral; novos estudos poderiam se concentrar em um grupo com estágios mais variados da doença. Estudos futuros também poderão avaliar os parâmetros da marcha antes e após tratamentos cirúrgicos ou não.


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Conflito de Interesses

Os autores não têm conflitos de interesse a declarar.

Agradecimentos

O presente trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) por meio do laboratório de marcha e movimento (#2017/06147–4). A fonte de financiamento não influenciou o delineamento experimental, a coleta, análise e interpretação dos dados, a redação do artigo e a decisão de submetê-lo para publicação.

Trabalho desenvolvido no Hospital de Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, Brasil.


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Endereço para correspondência

Julia Silva e Lima Schleder
Departamento de Ortopedia, Reumatologia e Traumatologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, 13083-887, Campinas, SP
Brasil   

Publikationsverlauf

Eingereicht: 23. Oktober 2021

Angenommen: 18. Februar 2022

Artikel online veröffentlicht:
29. Juni 2023

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  • 22 Bonnefoy-Mazure A, Armand S. Normal Gait. In: Canavese F, Deslandes J. editors. Orthopedic Management of Children with Cerebral Palsy: A Comprehensive Approach. Hauppauge, NY: Nova Science Publishers, Inc.; 2015: 199-213

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Fig. 1 Animação tridimensional da marcha durante um ensaio com o sistema The Motion Monitor xGen (Innovative Sports Training Inc., Chicago, IL, Estados Unidos).
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Fig. 1 Three-dimensional animation of gait during one trial with The Motion Monitor xGen system (Innovative Sports Training Inc., Chicago, IL, USA).
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Fig. 2 Médias e desvios padrão das forças de reação do solo (FSR; N/peso corpóreo) em pacientes com osteonecrose da cabeça do fêmur. 1. FRS média no segundo pico de postura. 2. FRS média no primeiro pico de postura. O desvio padrão do componente mediolateral (ML) é de 0,01 (p = 0,29), do componente anteroposterior (AP) é de 0,04 (p = 0,015) e do componente vertical (V) é de 0,12 (p = 0,34).
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Fig. 2 Means and standard deviations for ground reaction forces (GRFs) (N/BW) in patients with osteonecrosis of the femoral head. 1. Average mean GRF in the second peak stance. 2. Average mean GRF in the first peak stance. Standard deviation for medial-lateral (ML) component of 0.01 (p = 0.29), anteroposterior (AP) component of 0.04 (p = 0.015) and vertical (V) component of 0.12 (p = 0.34).