Palavras-chave
artroplastia do joelho - ácido tranexâmico - perda sanguínea
Introdução
O sangramento intra e pós-operatório continua sendo uma questão essencial na artroplastia total do joelho, pois, além de impactar no tempo de internação e nos aspetos econômicos, pode causar dor, edema, anemia e risco de necessidade de transfusão sanguínea, que, por sua vez, pode gerar transtornos, como reação imunológica, transmissão de patógenos e complicações cardíacas e pulmonares.[1]
[2]
[3]
[4] Diversas estratégias já foram propostas na tentativa de diminuir a dependência do sangue alogênico em cirurgias de grande porte. Dentre elas estão o armazenamento de sangue autólogo pré-operatório, a hemodiluição normovolêmica, a anestesia hipotensiva, o uso da máquina de recuperação celular e o uso de drogas com propriedades antifibrinolíticas, como a aprotinina, o ácido épsilon-aminocaproico e o ácido tranexâmico (ATX).[2]
O ATX é uma droga anti-fibrinolítica sintética, cujo efeito resulta da formação de um complexo reversível com o plasminogênio e a plasmina, inibindo a fibrinólise e prevenindo a lise do coágulo de fibrina. Além de atuar, também, no bloqueio parcial da agregação plaquetária induzida pela plasmina.[4]
[5]
[6]
Diversos trabalhos vêm sendo realizados para comprovar a eficácia e a segurança dessa medicação durante os procedimentos de artroplastia total de joelho (ATJ).[5] Em uma metanálise recente,[7] foi demonstrado que a quantidade de perda sanguínea e o número de transfusões por paciente foram menores, e a proporção de pacientes que necessitaram de uma transfusão de sangue foi menor no grupo que fez uso de ácido tranexâmico em comparação com o grupo placebo. Do mesmo modo, não foi encontrada diferença significativa no tempo de protrombina, tempo de tromboplastina parcial, trombose venosa profunda e embolia pulmonar.[7] Um estudo prospectivo e randomizado chegou à conclusão que o uso do ATX pode reduzir não só a perda sanguínea, mas também o derrame articular pós operatório.[8] Da mesma forma, em um trabalho retrospectivo,[9] no qual comparou-se, em pacientes com história prévia de trombose venosa profunda (TVP), o uso de ácido tranexâmico, ou não, em pacientes em artroplastia de joelho ou quadril, não se encontrou evidente aumento de risco de recorrência naqueles que usaram o ATX
Diferentes metodologias de estudos também já foram utilizadas para a comprovação da eficácia do medicamento. A maioria destas pesquisas não demonstrou superioridade das técnicas em relação à aplicação IA ou EV.[10]
[11]
[12]
[13]
[14]
[15]
Em uma metanálise de 2018,[16] afirmou-se que fortes evidências suportam a eficácia do ATX para diminuir a perda de sangue e o risco de transfusão após a ATJ primária; porém, nenhuma formulação, dosagem, ou número de doses forneceu vantagem evidente do uso do ATX. Nesta mesma metanálise, os autores relataram que evidências moderadas suportam a administração pré-incisão de ATX para melhorar a eficácia desta substância.
O objetivo desse trabalho é comparar a perda sanguínea em pacientes submetidos à ATJ, utilizando o ATX endovenoso e intra-articular (EV + IA) versus intra-articular isolado (IA). Desta forma, pretende-se, verificar se há diferença nos marcadores de perda sanguínea entre os grupos de tratamento e colaborar no conhecimento sobre o uso dessa importante droga para o aperfeiçoamento da cirurgia de artroplastia de joelho.
Materiais e métodos
O desenho do presente estudo consiste em um ensaio clínico duplo-cego, randomizado.
O protocolo de pesquisa e termo de consentimento livre e esclarecido foram submetidos e aprovados pelo comitê de ética do hospital Moinhos de Vento de Porto Alegre (CAEE n°: 63283216.6.0000.5330). Foram incluídos pacientes com indicação de artroplastia primária de joelho, sem deformidades complexas, que necessitem próteses com maiores graus de constrição (prótese primária utilizada). Estes foram captados em clínica especializada e avaliados sempre pelo mesmo profissional. Os procedimentos foram realizados no centro cirúrgico do nosso hospital, pelo mesmo cirurgião, através da mesma técnica cirúrgica, utilizando garrote pneumático, e dreno portovac no pós-operatório.
Durante o procedimento, utilizou-se abordagem para patelar medial, seguida de balanceamento de tecidos moles e cortes ósseos (utilizou-se sempre o mesmo instrumental e o mesmo tipo de prótese), com o objetivo de atingir a equalização dos espaços de flexão e extensão e a estabilidade da prótese. Utilizou-se, em todos os procedimentos, tampão ósseo no canal femoral. Não foi realizado, em nenhum caso, liberação do retináculo lateral, e em todos os procedimentos a patela foi substituída.
O tempo máximo de garrote considerado foi 120 minutos. A soltura ocorreu sempre após o fechamento final da pele.
Os pacientes foram submetidos ao mesmo protocolo pós-operatório, já com início de fisioterapia e mobilização no 1° dia. O dreno portovac, mantido fechado por 2 horas, e então aberto, foi retirado e quantificado em 24 horas, sempre pelo mesmo avaliador. Essa conduta não apresenta forte respaldo na literatura, visto que não há evidência forte quanto ao uso do dreno, ou o tempo para mantê-lo fechado e quando abrí-lo.[17]
[18]
[19]
Os indivíduos selecionados foram randomizados, com a utilização do site RESEARCH RANDOMIZER (www.randomizer.org) para dois grupos: O grupo intra-articular + endovenoso (IA + EV) foi submetido à aplicação de ATX EV, 15 mg/kg, após a indução anestésica e antes da incisão cirúrgica e infiltração IA de 2 g (8 ampolas), após o fechamento do retináculo articular. O grupo intra-articular (IA) isolado foi submetido apenas à aplicação de ATX IA, 2 g, após o fechamento do retináculo medial. Ressalta-se, que nem o cirurgião e nem o paciente tinham conhecimento sobre a composição dos grupos. As doses utilizadas foram baseadas na literatura, onde não se encontra consenso absoluto sobre as doses exatas a serem utilizadas. Estudos mostram que doses de 1 a 3 g IA têm efeitos similares, assim como doses de 10 a 20 mg/kg.[20]
[21]
A randomização foi controlada por técnica auxiliar, que informava o anestesista sobre quais pacientes deveriam receber a medicação com aplicação EV.
Não foi utilizado grupo controle, pois já é bem estabelecido na literatura o benefício do ATX durante o procedimento de artroplastia de joelho, restando dúvidas apenas quanto à metodologia de uso.[7]
[8]
[10]
[15]
[16]
Para a coleta de dados, foi aplicado um questionário aos pacientes, foram solicitados hemogramas de 24 e 48 horas, e o volume do dreno portovac foi mensurado após 24 horas de pós-operatório, sempre pelo mesmo avaliador.
A comparação da perda sanguínea foi realizada através de hemograma pré-operatório e pós-operatório (24 e 48 horas), quantificação do volume total de sangue drenado em 24 horas pós-operatório, e da estimativa da perda sanguínea (cálculos de GROSS e NADLER). Para fim de padronização, adotou-se a conduta de tolerar um tempo de 2 horas, para mais ou para menos, na coleta do exame de hemograma 24 e 48 horas pós-operatório.
Sessenta pacientes se enquadraram nos requisitos para realização do procedimento, mas apenas 40 indivíduos tiveram todos os dados disponíveis no final da coleta para a realização das comparações necessárias. Vinte pacientes foram excluídos por problemas na coleta dos dados, gerados por erros na mesma. Desses, 8 pacientes tiveram exame de hemograma de 24 horas PO coletados fora do prazo de tolerância, 6 dos exames de 48 horas foram coletados fora do prazo, e 6 pacientes tiveram o conteúdo do dreno portovac descartado de forma incorreta ou mensurado por outro profissional. Não foi realizado cálculo amostral para determinação do número de participantes.
Foram considerados como critérios de exclusão história de lesão neurovascular, história de evento tromboembólico, coagulopatias, uso contínuo de medicação que interfira na cascata de coagulação e diagnóstico de doença articular degenerativa secundária, além de qualquer erro ocasionado na coleta dos dados.
Para a análise estatística, foi realizado teste t para avaliação das diferenças entre as variáveis pré-operatórias, a fim de avaliar as condições de igualdade dos grupos em peso, altura, nível de hemoglobina, eritrócitos e hematócrito.
Para avaliar a diferença entre os grupos de tratamento, bem como a interação entre o tratamento e o tempo, foi realizada uma análise de variância (ANOVA). O valor de probabilidade (valor de p) foi definido como α = 0,05.
Resultados
Dentre os 40 pacientes da amostra, 18 foram alocados no grupo IA + EV, e 22 no grupo IA isolado
A [Tabela 1] mostra os dados da amostra antes da realização dos procedimentos, evidenciando que não existiram diferenças entre os grupos no que diz respeito à altura (t46 = −0,585; p = 0,562), peso (t44 = −0,306; p = 0,761), nível de hemoglobina (t48 = −0,536, p = 0,595), eritrócitos (t48 = −0,925, p = 0,360) e hematócrito (t48 = −0,616, p = 0,541).
Tabela 1
|
Média (±SD)
|
|
|
IA
|
IA + EV
|
Valor de p
|
Altura (m)
|
1,63 (±0,096)
|
1,64 (±0,093)
|
0,761
|
Peso (Kg)
|
81,36 (±11,26)
|
83,48 (±13,27)
|
0,562
|
Hemoglobina (g/dL)
|
13,23 (±1,20)
|
13,43 (±1,41)
|
0,595
|
Eritrócitos (millions/mm3)
|
4,48 (±0,38)
|
4,59 (±0,45)
|
0,360
|
Hematócrito (%)
|
39,92 (±3,43)
|
40,54 (±3,77)
|
0,541
|
A [Tabela 2] mostra as diferenças dos desfechos entre os grupos de tratamento no período pós-operatório.
Tabela 2
|
IA
|
IA + EV
|
IA
|
IA + EV
|
|
24h
|
48h
|
Hemoglo bina (g/dL)
|
10,56 (±1,00)
|
10,65 (±1,27)
|
10,31 (±1,22)
|
10,49 (±1,07)
|
Hematocrito (%)
|
32,14 (±3,10)
|
32,60 (±3,57)
|
30,91 (±3,43)
|
31,86 (±3,25)
|
EBL
|
1.002,46 (±226,59)
|
980,092 (±429,89)
|
1.161,92 (±279,00)
|
1.137,51 (±466,85)
|
Eritrócitos (milhões/mm3)
|
3,627 (±0,37)
|
3,734 (±0,46)
|
|
|
Volume do dreno (mL)
|
197,0 (±81,32)
|
173,6 (±76,66)
|
|
|
Não foram encontradas diferenças entre os grupos IA e IA + EV quando comparados os níveis de hemoglobina, tanto no período de 24 horas de pós-operatório (PO), quanto no período de 48 horas (F1,39 = 0,63, p = 0,429). Da mesma forma, não houve diferença nos níveis de hematócritos no período de 24 horas e 48 horas PO (F1,39 = 1,39, p = 0,240), EBL no período de 24 horas e 48 horas PO (F1,39 = 0,09, p = 0,770), níveis de eritrócitos no período 24 horas PO (F1,39 = 0,90, p = 0,346) e volume de sangue drenado no período de 24 horas PO (F1,39 = 3,38 p = 0,069).
Foi realizada ainda uma ANOVA para verificar a interação entre o tempo e os grupos de tratamento. O tempo foi fator significativo para a mudança de níveis médios de hemoglobina (F1,39 = 116,45; p < 0,001), hematócrito (F1,39 = 132,78; p < 0,001), eritrócitos (F1,39 = 99,61; p < 0,001) e EBL (F1,39 = 4,00; p = 0,049). Porém, não houve interação entre o fator tempo e tratamento, demonstrando que o tratamento não modificou o efeito do tempo para mudança de níveis médios de hemoglobina (F1,39 = 0,02; p = 0,877), hematócrito (F1,39 = 0,01; p = 0,928), eritrócitos (F1,39 = 0,00; p = 0,990) e EBL (F1,39 = 0,00 p = 0,990).
Durante o período do trabalho, não existiu qualquer ocorrência de evento trombo embólico ou necessidade de transfusão sanguínea nos indivíduos envolvidos.
Discussão
A presente pesquisa teve o objetivo de comparar o efeito da aplicação do ATX EV + IA com a aplicação IA isolada no procedimento de artroplastia primária de joelho. Como resultado do trabalho, não foi encontrada diferença nos parâmetros de perdas sanguíneas, avaliados dentro do grupo de aplicação combinada, quando comparada a aplicação isolada IA.
Durante a última década, foi dada maior atenção ao manejo da perda sanguínea nos procedimentos de ATJ em virtude dos desfechos desfavoráveis possivelmente associados.[22]
Estima-se que a perda sanguínea durante o procedimento varie entre 1.450 e 1.790 mL levando muitos pacientes à anemia e necessidade de transfusões pós-operatórias.[23] Estudos podem confirmar a hipótese de que a perda de sangue é maior em pacientes submetidos à artroplastia de joelho não tratados com ATX.[24]
Em pesquisa recente, a eficácia e segurança do ATX em reduzir a perda sanguínea e a necessidade de transfusões foi evidenciada,[25] o que entrou em concordância com metanálises sobre o assunto.[7]
[16]
[26] Inúmeras metodologias já foram utilizadas para avaliar o efeito e a segurança da medicação. A aplicação tópica comparada ao grupo controle demonstrou uma redução de 20 a 25% na perda sanguínea, sem elevar o risco de eventos tromboembólicos.[10] Este resultado corrobora o achado de um estudo duplo cego randomizado que fez a mesma comparação e demonstrou redução da necessidade de transfusão sanguínea, e diminuição da perda sanguínea, sem alterar significativamente os efeitos adversos.[11] Quando comparada a aplicação EV com a aplicação IA isolada, não se demonstrou qualquer superioridade entre as duas metodologias.[12]
[13]
[27]
Em um estudo,[28] comparou-se o uso de ácido IV isolado, com o uso IA isolado e com a formulação por via oral. Este estudo controlado randomizado indicou que 2 g de ATX oral resulta em perda de sangue semelhante à perda registrada com o uso de 20 mg/kg de ATX IV ou 2 g de ATX IA em ATJ sem dreno de sucção fechado e torniquete.
Em uma pesquisa na qual comparou-se a utilização da aplicação IV + IA, com aplicação IA isolada e IV isolada, constatou-se que a aplicação combinada levou a uma menor perda sanguínea total, perda oculta, menor redução da hemoglobina pós-operatória, bem como redução nos produtos de degradação da fibrina e d-dímeros, indicando uma superioridade na prevenção da perda sanguínea e hiperfibrinólise durante a ATJ.[29]
Quando comparado à aplicação combinada, IV + IA, dividindo o grupo em dose de 1 ou 2g de aplicação IA, um estudo duplo cego randomizado não demonstrou maior eficácia com aumento da dose.[30]
Em um trabalho recente, afirmou-se que a administração tópica de ATX tem algumas vantagens, sendo a principal delas a possibilidade de usar doses mais baixas. Além disso, podendo evitar os riscos associados à absorção sistêmica da medicação, com o possível risco de estado de hipercoagulação.[27]
Em relação a sua segurança, em metanálise já citada, demonstrou-se que o ATX não ocasionou diferenças no tempo de protrombina, tempo de tromboplastina parcial ativada e na prevalência de trombose venosa profunda e tromboembolismo pulmonar.[7] No entanto, o mesmo trabalho cita que estudos randomizados controlados de maior qualidade são necessários para fortalecer a conclusão de que o ATX não aumenta as taxas de complicações durante a ATJ.
No presente estudo, os desfechos tiveram uma direção semelhante à literatura disponível. Nos 40 pacientes avaliados, em nenhum ocorreu desfecho desfavorável, como trombose venosa profunda, tromboembolismo pulmonar ou necessidade de transfusão sanguínea. Também, quando comparados os grupos, não houve diferenças nos parâmetros avaliados: volume do dreno, estimativa de perda sanguínea em 24 e 48 h PO, níveis de hemoglobina 24 e 48 h PO, hematócrito 24 e 48 h PO e eritrócitos 48 h PO.
Porém, este estudo deve ser interpretado à luz de suas limitações. Primeiro, o fato deste estudo não apresentar grupo controle com placebo pode limitar a interpretação da eficácia do ATX. Porém, vasta literatura prévia demonstra sua eficácia, e gerar um grupo de tratamento apenas com placebo, pode ser considerado como um problema ético, no sentido de haver um grupo em benefício de tratamento já estabelecido. Em segundo lugar, este ensaio clínico possui amostra de apenas um centro de pesquisa com limitado tamanho amostral, visto que não foi aplicado cálculo de tamanho de amostra. É possível que o tamanho de efeito da adição do ATX EV seja pequeno e maior amostra seja necessária para detectar diferença.
Desta forma, pode-se concluir que é provável que o uso isolado do ATX IA, na dose de 2 g, infiltrado após o fechamento do retináculo medial do joelho, pode ser usado de forma segura, e sem necessidade de adição de dose EV, para reduzir o sangramento nos procedimentos de artroplastia, evitando possíveis efeitos sistêmicos do uso endovenoso da substância.
Conclusão
O ácido tranexâmico é um fármaco que vem sendo estudado de forma mais frequente nas últimas décadas, com o intuito de minimizar as perdas sanguíneas nas cirurgias ortopédicas de grande porte. Várias pesquisas, com diferentes metodologias, já demonstraram a sua eficácia e segurança. Este estudo contribui com a literatura ao demonstrar que o uso isolado do ATX intra-articular pode ser utilizado para reduzir as perdas sanguíneas nas artroplastias primárias de joelho, minimizando a necessidade de dose adicional EV durante o procedimento.