Palavras-chave
escoliose - toracotomia - artrodese vertebral
Introdução
Escoliose é definida como uma deformidade tridimensional da coluna com uma angulação no plano coronal > 10°, tendo a escoliose idiopática do adolescente como o seu tipo mais comum.[1]
O acesso cirúrgico historicamente indicado para tratar deformidades escolióticas graves em pacientes com maturidade esquelética é a via de abordagem dupla, onde faz-se o acesso tanto anterior quanto posterior (VAP).[1]
[2]
Em alguns países, VAP é o acesso recomendado para abordagem cirúrgica de escolioses de etiologia neuromuscular, com curvaturas rígidas e que não corrigem para menos de 60° nas radiografias com inclinação.[1]
[2]
A abordagem anterior foi proposta com o objetivo de fornecer melhores taxas de correção da deformidade.[2]
[3]
[4] Entretanto, devido à necessidade de invasão de caixa torácica e abdome em alguns casos, o acesso anterior tem sido apontado como causa de complicações e morbidades significativas em pacientes adultos.[5]
A via posterior de acesso (VP) para artrodese de coluna torácica e lombar com instrumentação através de parafusos pediculares é o padrão-ouro para o tratamento de escoliose idiopática progressiva.[3]
A técnica cirúrgica de fusão vertebral posterior encontra-se em constante atualização. O uso de instrumentação segmentar tem sido aprimorado, a princípio com fios de Luque, e após, com ganchos múltiplos e instrumentação híbrida.[6]
[7]
[8]
[9]
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Recentemente, foram criadas bandas sublaminares, com ação semelhante aos fios sublaminares e que agregam, em casos selecionados, na correção da escoliose associadas aos parafusos pediculares.[3]
As construções atuais utilizam parafusos pediculares em coluna lombar e torácica, tornando-se grandes aliados na correção de deformidades. No tratamento de escoliose idiopática progressiva severa, apresentam boas taxas corretivas da angulação de defeitos severos, com quantidade pequena de complicações. Neste contexto, tem-se questionado a relevância da via anterior, mesmo em escolioses graves.[3]
O objetivo do presente estudo é realizar uma análise comparativa entre as abordagens cirúrgicas por via posterior isolada e por via anteroposterior para tratamento de escoliose severa
Materiais e Métodos
O presente trabalho foi aprovado pelo comitê de ética e pesquisa da nossa instituição sob o número CAAE: 46852321.7.0000.5040 e sob o parecer 4.732.781
Foram analisados, retrospectivamente, os registros clínicos e radiográficos de 32 pacientes com escoliose com curvatura ≥ 70o acompanhados em um serviço de ortopedia em hospital terciário.
A seleção dos pacientes submetidos a abordagem anterior e posterior ou somente posterior foi realizada de forma aleatória e alternada, sendo abordados pelo mesmo cirurgião, com sua equipe, de 2009 a 2019, no referido serviço. Todos os pacientes tiveram planejamento pré-operatório, procedimento cirúrgico e acompanhamento pós-operatório de pelo menos 2 anos no ambulatório de Ortopedia.
Os pacientes foram divididos em 2 grupos. O grupo de pacientes operados por VP continha 17 indivíduos (Grupo VP) e no grupo abordado por VAP havia 15 pacientes (Grupo VAP). Todos os pacientes operados por dupla via realizaram o procedimento em dois tempos cirúrgicos, com intervalo médio de 15 dias entre os procedimentos.
A cirurgia pela via anterior foi feita por meio de toracotomia ou toracofrenolombotomia realizada no hemitórax correspondente à convexidade da curva, associada a discectomia de três a cinco níveis no ápice da deformidade e artrodese anterior com utilização de enxerto ósseo de costela retirado na via cirúrgica.
A via posterior foi realizada através de incisão longitudinal mediana e instrumentação com parafusos pediculados bilaterais em todos os segmentos possíveis, associados a manobra de redução e fixação com duas hastes longitudinais e enxerto ósseo autólogo das lâminas e processos espinhosos.
Os pacientes foram submetidos a avaliação antropométrica e a exames radiográficos da coluna total com incidências posteroanterior e perfil em ortostase, e inclinações laterais em posição supina.
Radiografias foram realizadas para a avaliação das deformidades: cálculo dos ângulos de Cobb, determinação das curvas estruturadas e para planejamento cirúrgico. Os parâmetros antropométricos foram peso, altura no pré- e no pós-operatório. O tempo cirúrgico, peso, altura, duração da cirurgia e valor do ângulo de Cobb foram avaliadas.
Em todos os pacientes, foi usada monitorização neurofisiológica intraoperatória. O uso de Cell-saver para prevenção da perda sanguínea foi realizado de forma randomizada em virtude de outro estudo em andamento. Todos os pacientes tiveram suporte de UTI pós-operatória e deambularam até o terceiro dia do pós-operatório.
Critérios de Inclusão e Exclusão
Foram excluídos da pesquisa pacientes com escoliose de etiologia congênita ou neuromuscular e aqueles com curvas principais < 70°. Os critérios de inclusão utilizados foram escoliose de curvas estruturadas e rígidas com ângulo de Cobb ≥ 70o.
Análise de Dados
Os dados foram expressos em forma de média e desvio padrão (DP), submetidos ao teste de normalidade de Kolmogorov-Smirnov e analisados por meio dos testes T de Student (análise intergrupos) e t pareado (análise intragrupos) (dados paramétricos). Todas as análises foram realizadas adotando uma confiança de 95% no software IBM SPSS Statistics for Windows, versão 20.0 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA).
Resultados
No grupo de abordagem VP, a média do ângulo de Cobb (curva principal) pré-operatório foi de 96,00°. Após a cirurgia, a média do ângulo de Cobb foi de 43,08°, tendo uma média de variação de 52,27°. A média da taxa de correção foi de 54% ([Tabela 1]).
Tabela 1
Vias de acesso
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Grupo VP
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Grupo VAP
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Valor-p
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Idade
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16,86 ± 7,82
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17,71 ± 4,59
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0,710[a]
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Peso
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43,17 ± 8,76
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50,34 ± 7,73
|
0,036[a]
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Sexo (M/F)
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5/10
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1/16
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0,76b
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Altura
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Pré-operatória
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1,50 ± 0,12
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1,54 ± 0,09
|
0,226[a]
|
Pós-operatória
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1,58 ± 0,08
|
1,61 ± 0,08
|
0,324[a]
|
Valor-p
|
< 0,001c
|
< 0,001c
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Duração
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228,64 ± 95,50
|
367,94 ± 83,76
|
< 0,001[a]
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Segmentos VP
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12,82 ± 1,99
|
12,12 ± 1,83
|
0,348[a]
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COBB coronal
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Pré-operatória
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96,06 ± 8,45
|
83,12 ± 11,60
|
0,001[a]
|
Pós-operatória
|
43,80 ± 17,36
|
34,59 ± 9,37
|
0,067[a]
|
Valor-p
|
< 0,001c
|
< 0,001c
|
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Variação de COBB
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52,27 ± 15,18
|
48,53 ± 10,76
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0,424[a]
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Taxa de correção
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54 ± 16%
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58% ± 11%
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0,443b
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No grupo de abordagem VAP, a média do ângulo de Cobb (curva principal) pré-operatório foi de 83,2°. Após a cirurgia, a média do ângulo de Cobb foi de 34,59°, tendo uma média da variação de 48,53°. A média da taxa de correção foi de 58% ([Tabela 1]).
Não houve significância estatística na variação da taxa de correção entre o grupo de dupla abordagem (anterior e posterior) em comparação com o grupo de abordagem única (posterior) ([Tabela 1]).
Discussão
A fusão espinhal com instrumentação é indicada em adolescentes com escoliose, com esqueleto imaturo, quando o ângulo de Cobb da curva primária exceder 45°.[11] Entretanto, escolher a abordagem, via única versus dupla via, para escolioses rígidas e severas ainda é controverso. Bullman et al.[12] e Shao et al.[9] consideram que a abordagem combinada é segura, efetiva e leva a uma boa correção tridimensional das curvas graves com menos complicações neuromusculares, infecção e pseudoartrose.
Yamin et al.[13] concluíram que liberação anterior e tração halo pélvica seguida de instrumentação posterior e artrodese foi uma forma segura e efetiva de tratar escolioses rígidas. Sucato et al.[14] revelaram que a correção do plano coronal era menor no grupo de abordagem única comparado com o grupo de dupla via. O procedimento de liberação anterior via toracoscopia não afetou a função pulmonar e foi recomendada no tratamento de escoliose idiopática. Entretanto, Good et al.[15] e Lin et al.[8] sugeriram que o acesso de via única é efetivo para corrigir curvas moderadas e severas, evitando os efeitos colaterais da dupla abordagem. No presente estudo, realizou-se dupla via e via posterior isolada com boas correções em ambas, conforme demonstrado nas [Figs. 1] e [2].
Fig. 1 Pré- e pós-operatório de escoliose grave > 70° com dupla via.
Fig. 2 Pré- e pós-operatório de escoliose grave > 70° com via única.
No presente trabalho, evidenciou-se que o acesso posterior único pode alcançar resultados similares de correção angular comparado ao tratamento de dupla via ([Fig. 3]).
Fig. 3 Gráfico comparativo do ângulo de Cobb entre os grupos VP e VAP pré- e pós-operatório, e da taxa de correção.
Muitos trabalhos chegaram à conclusão de que a técnica de correção apenas por via posterior pode reduzir a perda de sangue, tempo de cirurgia, tempo de hospitalização e gastos hospitalares.[7]
[16]
[17]
[18]
[19]
[20] Estes achados corroboram os resultados do presente trabalho, no qual o tempo de cirurgia é significativamente maior na técnica por dupla via, aumentando os riscos referentes às cirurgias de grande porte ([Fig. 4]).
Fig. 4 Gráfico comparativo de tempo cirúrgico entre os grupos VP e VAP.
Segundo Chen et al.[21]
, o ângulo de Cobb é um parâmetro muito importante para julgar a efetividade da cirurgia em escoliose de alto grau; em sua metanálise, não houve relevância estatística na diferença entre os grupos de via dupla e via única, independentemente do quão severas eram as curvas avaliadas.
Conclusão
No nosso trabalho, não houve diferença estatística significante entre as médias de taxas de correção das curvas principais entre os 2 grupos estudados. Inclusive a via única posterior apresentou uma melhor média de variação do ângulo de Cobb.
Vale ressaltar que a técnica de via única posterior possui menor taxa de complicações cirúrgicas, perda de sangue, tempo cirúrgico, tempo de internação e gastos hospitalares, segundo vários estudos literários.[12]
[18]
[19]
[20]
[21]
Em conclusão, o acesso posterior único, realizado por cirurgiões experientes, parece ser efetivo e seguro no tratamento das escolioses severas, não havendo um benefício estatisticamente comprovado da via combinada em relação à taxa de correção pós-operatória.