Palavras-chave atletas - cavidade glenoide - enxerto ósseo - instabilidade articula - falha óssea - ombro
Introdução
A escolha do melhor tratamento para uma doença é um desafio constante para o cirurgião ortopedista, bem como o desenvolvimento de métodos efetivos para a determinação dessas escolhas. Instabilidade anterior traumática do ombro é uma doença comum,[1 ] especialmente em atletas jovens, o que leva à discussão a respeito de diversas técnicas possíveis para o seu tratamento. O objetivo desses procedimentos é alcançar um ombro estável e funcional, e prevenir o desenvolvimento de osteoartrose, algo particularmente importante quando tratamos de atletas que irão buscar um retorno para a atividade de alta performance.
A falha óssea da glenoide (do inglês "Glenoid Bone Loss" ou GBL) é um parâmetro que vem sendo considerado fator de risco para falhas no reparo artroscópico da instabilidade anterior do ombro.[2 ]
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[8 ]
[9 ] Atletas de contato apresentam piores taxas de recorrência e pior prognóstico decorrente da progressão da instabilidade anterior do ombro após cirurgia de Bankart, geralmente levando a necessidade de cirurgias de enxertia óssea da glenoide, especialmente quando o defeito ósseo da glenoide é maior que 20-25%.[10 ]
[11 ] No entanto, Dekker et al.[3 ] demonstraram que defeitos maiores que 15% da superfície da glenoide já aumentam significativamente essas taxas em pacientes ativos.
O objetivo desse estudo foi avaliar se os pacientes com defeitos ósseos maiores do que 15% apresentariam piores resultados em relação a arco de movimento, complicações e resultados funcionais em relação a falhas ósseas menores, em pacientes atletas de alta demanda submetidos a cirurgias de bloqueio ósseo.
Metodologia
Trata-se de um estudo retrospectivo dos exames de tomografia computadorizada dos participantes de um estudo prospectivo prévio dos autores desse estudo, no qual os participantes foram randomizados em dois grupos para cirurgia (Bristow e Latarjet), e acompanhados por cinco anos. Foram 19 ombros no grupo da cirurgia de Bristow e 22 no grupo da cirurgia de Latarjet, em um total de 37 pacientes. Ao final do seguimento, foram avaliados retrospectivamente os exames de tomografia dos participantes, realizados no pré-operatório, e destes calculados as falhas ósseas da glenoide (FOG) pelo método de comparação contralateral ([Fig. 1 ]).[12 ] A partir destes dados, os pacientes foram novamente divididos em outros dois grupos conforme os valores obtidos: FOG menor que 15% e FOG maior que 15%, mas iguais ou menores que 25%. No primeiro grupo, foram 20 ombros, enquanto o segundo grupo contemplou 21 ombros.
Fig. 1 Medida linear da falha óssea da glenoide pelo método de comparação contralateral. “D” representa a largura da glenoide intacta “a)”. “D” é transposto para o lado com falha óssea “b)” e a distância até a borda da glenoide “d” é obtida. O tamanho da falha óssea é expressa como d/D x 100 (%).
Foram coletados dados demográficos como idade, gênero, peso, IMC, e aspectos clínicos qualitativos: hiperfrouxidão do ombro, categoria do atleta (profissional versus amador), o lado do membro dominante e do lesionado, tipo de procedimento realizado, e o mecanismo da lesão. Quando a luxação ocorreu após trauma direto no ombro, foi considerado como mecanismo traumático; quando não, como atraumático.
Os critérios de inclusão foram: instabilidade anterior do ombro sem história de procedimentos prévios no ombro, alta demanda esportiva (estipulado pelos pesquisadores como atletas que treinam mais de sete horas por semana e que participam de competições em seus esportes, distribuídos conforme [Tabela 1 ]), até 25% de perda óssea na glenoide pela tomografia computadorizada, e pelo menos 60 meses de seguimento pós-operatório. Critérios de exclusão foram: procedimento cirúrgico prévio no ombro em questão, lesões associadas como roturas do manguito rotador ou SLAP (pacientes direcionados à artroscopia), paciente com mais de 25% de perda óssea na glenoide (indicada cirurgia com enxerto de ilíaco de Eden-Hybinett) ou que não completaram o seguimento pós-operatório mínimo de cinco anos. Os pacientes que apresentavam quadro clínico sugestivo de lesões associadas, como lesões do manguito rotador e lesão SLAP, foram submetidos a Ressonância Nuclear Magnética antes da inclusão e excluídos do estudo caso confirmadas as lesões.
Tabela 1
Esporte
Atletas
Futebol
9
Rodeio
9
Handebol
4
Jiu Jitsu
4
Muay Thai
2
Artes marciais diversas
2
Rugby
2
Voleibol
2
Boxe
1
Boxe chinês
1
Motocross
1
Antes da cirurgia, o ombro acometido passou por avaliação radiográfica (incidências AP e Perfil) e estudo por tomografia computadorizada bilateral em todos os participantes, sendo medida posteriormente a FOG pelo método contralateral,[12 ] variando nessa amostra entre 10 e 25%. Nas imagens foi avaliado também o “Glenoid Track”, com lesões On-track ou Off-track.[12 ]
Os pacientes foram avaliados tanto no pré quanto no pós-operatório conforme um protocolo previamente definido (Anexo 1 ). As avaliações funcionais e de arco de movimento (ADM) iniciais e de seguimento pós-operatório foram realizadas por fisioterapeutas independentes, em momentos diferentes das avaliações pós-operatórias de rotina pela equipe cirúrgica. Foram avaliados: grau de rotação lateral ativa e passiva, elevação ativa e passiva, escala analógica visual de dor (EVA), Escala de Avaliação dos Resultados do Ombro do Esportista (EROE)[13 ] (do inglês “Athletic Shoulder Outcome Rating Scale” - ASORS); Western Ontario Shoulder Instability Index (WOSI)[14 ]; e a American Shoulder and Elbow Surgeons Standardized Shoulder Assessment (ASES).[15 ] Ao longo de seguimento foram registradas também as complicações (eventos não esperados durante o seguimento, incluindo instabilidade residual, exceto as luxações), as novas luxações, e o retorno à prática da mesma atividade esportiva.
O EROE é um questionário que reflete a estabilidade do ombro, arco de movimento, função para atividades diárias, e dor. Menos de 50 pontos indicam resultados ruins, 51 a 74 resultados típicos, 75 a 89 resultados bons, e 90 a 100 resultados excelentes.
O WOSI é um questionário que indica a qualidade de vida em pacientes com instabilidade anterior do ombro, sendo pior a qualidade de vida quanto maior o valor, indo de 0 (excelente) a 210 (muito ruim).
O ASES é um questionário que indica dor e função do ombro, variando de 0 a 100, com maiores valores indicando melhores resultados.
As cirurgias foram feitas com os pacientes em posicionamento de cadeira de praia sob bloqueio de plexo braquial e sedação, em hospital dia. Foi realizado acesso cirúrgico anterior ao processo coracoide, com extensão de 5 cm pelo intervalo deltopeitoral. Após dissecção romba e exposição do coracoide, a osteotomia foi realizada conforme as técnicas de Bristow ou Latarjet, sendo o enxerto fixado com um ou dois parafusos de pequenos fragmentos, respectivamente, conforme as descrições das técnicas.
O protocolo de reabilitação envolveu três semanas de imobilização com tipoia simples para ombro em todos os casos, seguida de fisioterapia para aumento progressivo da mobilidade passiva e ativa. Exercícios de fortalecimento se iniciaram com oito a doze semanas, e retorno ao esporte foi liberado quatro a cinco meses após a cirurgia, quando o paciente apresentava ausência de dor e de instabilidade para realizar o esporte praticado antes da cirurgia.
Para a análise estatística utilizou-se métodos não paramétricos. O Teste de Qui-Quadrado foi utilizado para comparação da distribuição de fatores qualitativos entre os grupos, enquanto para fatores quantitativos foi utilizado o Teste de Mann-Whitney. O teste de Kolmogorov-Smirnov foi utilizado para avaliar a normalidade da distribuição e esta não foi assegurada para as variáveis quantitativas de desfecho principal. O nível de significância adotado foi de 95%, sendo a relevância estatística das comparações demonstrada por um p-valor ≤0,05.
Resultados
Um total de 41 ombros operados e avaliados nesse estudo, sendo 20 com falha óssea na glenoide ≤15%, e 21 ombros com falha >15% e ≤25%. Não houve diferença estatisticamente significativa com relação à idade, gênero, altura, peso, índice de massa corporal (IMC), hiperfrouxidão no ombro, categoria do atleta – amador ou profissional, membro dominante, membro lesionado e no mecanismo da lesão. Houve semelhança também com relação à distribuição do tipo de procedimento realizado nos indivíduos de cada grupo (Bristow ou Latarjet), evitando esse possível viés. Observa-se, porém, que pacientes com defeito ósseo maior apresentaram maior número de luxações prévias do ombro e de lesões Off-track ([Tabelas 2 ] e [3 ]). Não houveram casos de hiper frouxidão generalizada nessa amostra.
Tabela 2
≤15%
>15% e ≤25%
Total
p-valor
N = 20
N = 21
Categoria
Amador
14
11
25
0,248
Profissional
6
10
16
Hiperfrouxidão do Ombro
Não
16
18
34
0,627
Sim
4
3
7
Membro Dominante
Direito
18
21
39
0,137
Esquerdo
2
0
2
Membro Lesionado
Direito
13
11
24
0,412
Esquerdo
7
10
17
Mecanismo da Lesão
Atraumatico
5
3
8
0,387
Traumatico
15
18
33
Gênero
Feminino
2
2
4
0,959
Masculino
18
19
37
Procedimento realizado
Bristow
9
11
20
0,636
Latarjet
11
10
21
Glenoid Track
Off-track
7
18
25
0,001
On-track
13
3
16
Tabela 3
Média
Desvio Padrão
P-valor
Idade
≤15%
24,8
6,6
0,200
>15% e ≤25%
28,0
7,4
Peso
≤15%
79,1
9,5
0,556
>15% e ≤25%
76,9
6,9
Altura
≤15%
1,78
0,04
0,530
>15% e ≤25%
1,77
0,06
IMC
≤15%
24,9
2,3
0,584
>15% e ≤25%
24,5
1,5
Episódios de luxação
≤15%
5,8
5,9
0,004
>15% e ≤25%
9,2
5,7
Quanto ao resultado após seguimento e reabilitação, não houve diferença estatisticamente significativa na quantidade de complicações pós-operatórias, em novas luxações, e na taxa de retorno ao esporte ([Tabela 4 ]). Ainda, não houve diferença estatística entre os grupos para o ADM, EROE, ASES e WOSI, sendo que, apesar de a dor pré-operatória ter sido menor no grupo de maior FOG, esta não apresentou diferença significativa ao final do seguimento, conforme a escala analógica visual de dor (EVA) ([Tabela 5 ]).
Tabela 4
≤15%
>15% e ≤25%
Total
P-valor
N
%
N
%
N
%
Complicação
Não
16
80%
18
85,7%
34
83%
0,627
Sim
4
20%
3
14,3%
7
17%
Novas Luxações
Não
19
95%
20
95,2%
39
95%
0,972
Sim
1
5%
1
4,8%
2
5%
Retorno ao Esporte
Não
4
20%
4
19,0%
8
20%
0,939
Sim
16
80%
17
81,0%
33
80%
Tabela 5
≤15%
>15% e ≤25%
P-valor
Média
DP
Média
DP
Rotação lateral passiva
Pré
74,8
1,2
74,5
1,5
0,336
5 anos
66,3
6,0
66,0
6,0
0,788
Rotação lateral ativa
Pré
71
4,2
71,7
4,6
0,503
5 anos
60,5
4,8
60,2
5,6
0,743
Elevação passiva
Pré
178,0
3,0
176,9
5,1
0,679
5 anos
176,5
2,9
175,7
4,0
0,627
Elevação ativa
Pré
174,1
6,7
173,3
8,9
0,978
5 anos
170,3
7,2
167,1
7,0
0,169
EVA
Pré
2,7
1,17
1,76
1,04
0,009
5 anos
1,05
0,89
0,71
0,90
0,195
ASES
Pré
53,1
5,2
52,4
5,6
0,917
5 anos
80,2
4,0
80,7
4,5
0,674
EROE
Pré
40,7
20,1
45,4
14,6
0,557
5 anos
78,7
8,5
74,2
7,9
0,107
WOSI
Pré
153,8
24,7
148,3
24,6
0,522
5 anos
40,5
7,6
43,2
8,7
0,323
Discussão
O principal achado desse estudo foi demonstrar que a FOG dentro dos limites estudados não alterou resultados esperados para a cirurgia de bloqueio ósseo na instabilidade anterior do ombro em atletas de alto rendimento. Percebe-se que a cirurgia de bloqueio ósseo por Bristow ou Latarjet trará, de forma constante, poucas complicações, poucos casos de instabilidade recorrente, bom resultado funcional e pouca limitação do ADM do ombro acometido tanto para FOG pequenas, quanto para maiores até 25%.
A falha óssea na glenoide é citada por diversos autores como fator de risco para recorrência de instabilidade, e muitos estudos tentam avaliar acerca de um valor limítrofe para o tamanho dessa lesão a partir do qual esse risco seria maior.[3 ]
[4 ]
[5 ]
[6 ]
[9 ]
[16 ] Jeon et al.[16 ] trazem um valor limítrofe de 15 a 20% de falha óssea, concluindo que a melhora da dor e os desfechos clínicos são satisfatórios tanto na cirurgia de Bankart quanto de Latarjet, porém que o bloqueio ósseo apresenta menor taxa de recorrência e menor limitação da rotação lateral nessa população. Burkhart e De Beer[4 ] mostram 67% de recorrência de instabilidade em pacientes com lesão significativa da glenoide (Hill-sachs engajada ou glenoide em “pêra invertida”), concluindo que o reparo artroscópico é contraindicado nesses pacientes. Nosso estudo vem confirmar que mesmo uma falha óssea pequena pode ser bem tratada com cirurgias de bloqueio ósseo, sem prejuízo funcional para o paciente. Este fato é relevante nesse grupo de pacientes (atletas de alta demanda), nos quais o retorno ao esporte no mesmo nível pré-lesão é importante, assim como a não ocorrência de novas luxações.
Dekker et al.[3 ] demonstraram que em pacientes submetidos a cirurgia de Bankart com lesões ósseas da glenoide maiores que 15%, este foi um fator de risco importante para recorrência de instabilidade e apresentaram piores resultados funcionais (WOSI e ASES). Comparando com nosso trabalho, obtivemos resultados funcionais estatisticamente iguais entre os grupos, mais semelhantes ao de maior falha óssea por Dekker (GBL > 15%), porém com menor taxa de recorrência de instabilidade e de novas luxações. Shaha et al.[6 ] também trazem essa diferença no escore WOSI para pacientes submetidos à técnica de Bankart, com um corte de GBL de 13,5%; o autor obteve significativamente melhores resultados em falhas menores, além de menor taxa de recorrência de instabilidade nesses pacientes. Comparando nossos resultados a esse último autor, obtivemos WOSI estatisticamente igual entre os grupos, mais semelhante ao de menor falha óssea por Saha et al.[6 ] (<13,5%), com taxa de recorrência também semelhante aos casos com menor falha óssea.
Este estudo demonstrou um resultado geral de 5% de novas luxações e 17% de complicações dos procedimentos, não havendo diferença significativa entre os grupos com diferentes FOG; este resultado é comparável a estudos de bloqueio ósseo encontrados na literatura, como Dauzère et al.[17 ] com 7,3 de complicações clínicas e 17% de radiológicas, e Butt et al.[18 ] com 6% de recorrência de instabilidade, 2,8% de novas luxações, e 3,3% de novas subluxações. Outro dado obtido que encontra sustentação na literatura é a taxa de retorno ao esporte. Tanto Dauzère et al.[17 ] quanto Bohu et al.[19 ] chegaram a uma taxa de 73% de retorno ao esporte em pacientes submetidos a técnica de Laterjet, enquanto nosso trabalho indicou um valor de 80%.
Uma limitação desse estudo é seu desenho retrospectivo a partir de dados coletados com outra finalidade; entretanto, toda coleta de dados pós-operatórios foi realizada de forma prospectiva, o que reduz em grande parte as possibilidades de vieses relacionados. O número amostral pode parecer pequeno, entretanto vale ressaltar a homogeneidade da amostra e o subgrupo específico do qual fazem parte: atletas de alta demanda.
Os principais pontos positivos desse estudo são: seguimento por um período de 5 anos, o grupo homogêneo de atletas de alta demanda e, também, o fato de ser um dos primeiros estudos a avaliar se o tamanho do defeito da glenoide afetaria os resultados funcionais nesses atletas.
Conclusão
O tamanho do defeito ósseo por si só não parece afetar os resultados funcionais e as complicações desses procedimentos, sendo uma técnica segura tanto para defeitos ósseos da glenoide ≤ 15% quanto para defeitos entre 15% e 25%.
PROTOCOLO ESTUDO
BLOQUEIO ÓSSEO