CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2023; 58(06): e944-e951
DOI: 10.1055/s-0043-1770975
Artigo Original
Ortopedia Pediátrica

Versão brasileira da classificação funcional de mielomeningocele (MMFC): Tradução, adaptação cultural e propriedades psicométricas

Article in several languages: português | English
Ana Paula Tedesco
1   Médico, Instituto de Neuro-ortopedia Pediátrica, Caxias do Sul, RS, Brasil
,
Luciano Dias
2   Médico, Professor Clínico de Cirurgia Ortopédica, Northwestern Medical Scholl, Chicago, Illinois, Estados Unidos
,
3   Fisioterapeuta, PhD em Saúde Infantil, PUCRS, Professor no Centro Universitário da Serra Gaúcha - FSG, Departamento de Fisioterapia, Caxias do Sul, Brasil
› Author Affiliations
Suporte Financeiro Este estudo não recebeu qualquer financiamento específico de agências públicas, comerciais ou sem fins lucrativos.
 

Resumo

Objetivo: Realizar a tradução e adaptação cultural da Classificação Funcional da Mielomeningocele (MMFC) para o português (Brasil) e estudar suas propriedades psicométricas.

Método: Estudo de validação com tradução, adaptação cultural e avaliação das propriedades psicométricas: confiabilidade, teste-reteste e validade convergente. Amostra de 20 indivíduos com mielomeningocele e idade mediana de 10 (5 a 24,25) anos, com mínimo de 3 e máximo de 66 anos. A confiabilidade foi determinada pela concordância intra e interobservador, utilizando os resultados do coeficiente de correlação intraclasse (ICC) e o intervalo de confiança de 95% (IC - 95%). A validade convergente foi realizada por meio das classificações de Sharrard, Hoffer, Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade (Pediatric Evaluation of Disability Inventory [PEDI]) e Escala de Mobilidade Funcional (Functional Mobility Scale [FMS]). Além disso, o teste de correlação de Spearman foi realizado.

Resultados: A confiabilidade intraobservador (ICC: 0,900-1,0) e interobservador (ICC: 0,936; IC - 95%: 0,839-0,975) apresentou excelentes níveis de ICC. A validade convergente mostrou correlações muito fortes com FMS-5 (r = 0,94, p = 0,00) e FMS-50 (r = 0,94, p = 0,00); correlações fortes com FMS-500 (r = 0,87, p = 0,00), Sharrard (r = 0,76, p = 0,00), Hoffer (r = 0,83, p = 0,00) e Habilidades Funcionais: Mobilidade (PEDI) (r = 0,84, p = 0,00) e Assistência do Cuidador: Mobilidade (PEDI) (r = 0,77, p = 0,00); e fracas com o domínio autocuidado de PEDI (r = 0,46, p = 0,04). O teste-reteste revelou que ICC = 1,00.

Conclusões: Este estudo apresenta as propriedades psicométricas da MMFC, além de sua tradução e adaptação cultural para o português, língua nativa do autor da classificação. A MMFC demonstra correlação com classificações de mielomeningocele anteriormente utilizada. A MMFC teve bons resultados nas propriedades psicométricas avaliadas. Assim, a MMFC parece adequada e aplicável a indivíduos com mielomeningocele e é válida para a população brasileira.


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Introdução

A mielomeningocele (MM) é um dos defeitos congênitos do fechamento do tubo neural em que há exposição das meninges, da medula espinhal e das raízes, o que causa perdas motoras e sensitivas nos membros inferiores. Além disso, anomalias espinhais (hidromielia, siringomielia) ou centrais (hidrocefalia, Arnold-Chiari) provocam déficits motores e de equilíbrio.[1] O quadro clínico e funcional varia dependendo principalmente do nível neurológico, mas é muito influenciado pela presença de deformidades da coluna vertebral e dos membros inferiores, complicações neurológicas, obesidade e motivação, entre outros fatores.[2] Assim, a classificação de cada indivíduo do ponto de vista funcional é muito importante, pois auxilia a antecipação de intervenções e tratamentos necessários e o prognóstico quanto ao grau de independência na vida diária.

A classificação dos diferentes quadros de MM já foi estudada por muitos pesquisadores. Sharrard publicou uma das classificações mais conhecidas, que considera o nível neurológico da lesão (torácica, lombar, sacral).[3] Broughton propôs uma modificação dos níveis neurossegmentares de Sharrard.[4] Hoffer classificou os pacientes de acordo com sua capacidade de deambulação (ausência de deambulação, deambulação não funcional, presença de deambulação e deambulação comunitária).[5] McDonald et al.[6] basearam a classificação no grau de força muscular nos membros inferiores, assim como Asher et al.;[7] os primeiros também tentaram determinar a correlação com a previsão da capacidade de deambulação. Na classificação de Lindseth,[8] o nível motor é determinado pelo controle motor articular voluntário. A análise comparativa destes estudos, porém, revelou a incompatibilidade entre as classificações baseadas em critérios anatômicos e aquelas baseadas em critérios funcionais e de deambulação,[9] essenciais para o estabelecimento dos objetivos terapêuticos.

Como na paralisia cerebral, com o desenvolvimento do Sistema de Classificação da Função Motora Básica (Gross Motor Function Classification System [GMFCS])[10] e da Escala de Mobilidade Funcional (Functional Mobility Scale [FMS]),[11] uma classificação que abrange diversos aspectos do quadro clínico e funcional foi desenvolvida para a MM – a Classificação Funcional de Mielomeningocele (Myelomeningocele Functional Classification [MMFC]).[12] A classificação considera a força muscular dos membros inferiores, o tipo de suporte externo e as órteses necessárias para a deambulação e a capacidade de marcha por meio da distância percorrida. Assim como as classificações GMFCS e FMS, é de fácil interpretação e tem valor prognóstico em termos de função, auxiliando o planejamento terapêutico e a comunicação entre os membros da equipe que participam do tratamento do paciente, além de ampliar o entendimento de sua evolução. O uso dessa classificação também permite a avaliação mais precisa dos resultados terapêuticos.

A MMFC foi publicada em inglês[12] e, entendendo a importância dessa classificação abrangente, este estudo propõe sua tradução, adaptação cultural e validação psicométrica; esta última ainda não foi relatada na literatura. Nosso propósito é tornar seu uso mais acessível em todos os serviços envolvidos no tratamento de pacientes com MM no Brasil, padronizando dados para fins de comunicação e apresentação de resultados. Assim, os objetivos deste estudo são: tradução e adaptação cultural do conteúdo da MMFC para o português (Brasil) e estudar as propriedades psicométricas da MMFC na versão brasileira.


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Método

Estudo observacional descritivo, transversal, dividido em duas fases: Fase 1–Tradução e Adaptação Cultural da MMFC para o português e Fase 2–Validação Psicométrica.

A Fase 1, Tradução e Adaptação Cultural da MMFC para o português, foi desenvolvida seguindo as etapas propostas por Beaton et al.:[13] Fase 1: Tradução inglês-português por dois tradutores; Fase 2: Harmonização entre as duas traduções, gerando em uma única versão em português; Etapa 3: Retrotradução (português-inglês) da versão harmonizada das duas traduções anteriores; Fase 4: Harmonização entre as duas retrotraduções, gerando uma única versão em inglês; Etapa 5: Harmonização internacional, em que as versões resultantes da primeira e da segunda harmonização foram avaliadas com o autor original do instrumento.

Para a Fase 2, a amostra foi selecionada por conveniência em clínicas de reabilitação no sul do Brasil. Dos 40 pacientes com diagnóstico de MM convidados a participar, 22 aceitaram e dois foram excluídos por critérios de elegibilidade. Os critérios de inclusão foram: indivíduos brasileiros com MM, sem limite de idade; e os critérios de exclusão foram pacientes em pós-operatório de cirurgia ortopédica há menos de 6 meses e com doenças associadas que influenciam a função motora, como paralisia cerebral, entre outras. O autor RDNP fez as avaliações dos 20 participantes, sendo que metade deles veio após 10 a 15 dias para nova avaliação e análise de estabilidade (teste-reteste). O recrutamento e a coleta de dados ocorreram entre julho de 2021 e fevereiro de 2022.

As propriedades psicométricas avaliadas foram:

  • Confiabilidade

A confiabilidade intraexaminador foi determinada por 15 profissionais (fisioterapeutas e ortopedistas) com experiência na área, selecionados por conveniência. Estes profissionais receberam por e-mail a classificação MMFC na versão em português e um vídeo com os dados a serem analisados em cada paciente. Eles classificaram os indivíduos em duas ocasiões, com 2 semanas de intervalo, e enviaram o resultado aos autores após o término de cada etapa. Os dados consistiram na apresentação do caso (idade, características clínicas), um vídeo demonstrando a avaliação manual da força muscular de membros inferiores (quadríceps, isquiotibiais, glúteo médio, gastrocnêmio-sóleo), um vídeo da marcha em distâncias curtas (5 metros), incluindo o uso de órteses e dispositivos externos, se presente, e entrevista sobre capacidade de caminhada em média (50 metros) e longa distância (500 metros). Todo o exame físico e a entrevista foram realizados pelo mesmo pesquisador.

A confiabilidade interexaminador foi avaliada por meio da resposta da primeira avaliação dos 15 profissionais que realizaram os exames.

  • Validade convergente

Para a determinação da validade convergente, um autor classificou os 20 indivíduos segundo MMFC, Hoffer, Sharrard e FMS, realizou a avaliação manual da força muscular de membros inferiores e coletou os dados do Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade (Pediatric Evaluation of Disability Inventory [PEDI]).[14] [15] [16] [17]

Teste-Reteste

A estabilidade da classificação foi avaliada por teste-reteste, em que 10 indivíduos foram novamente analisados pelo mesmo profissional após 10 a 15 dias.

Este estudo obteve a aprovação ética de um Comitê de Ética em Pesquisa e os participantes ou seus responsáveis assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido referente ao estudo e à publicação dos resultados.

A análise estatística foi feita pelo software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, Estados Unidos). Em todos os casos, o nível de significância adotado foi de 5%. A confiabilidade e a repetibilidade inter e intraexaminadores foram avaliadas por meio dos resultados do coeficiente de correlação intraclasse (ICC), considerando um nível de significância de p < 0,05. Um valor de ICC igual a 1 indica que os valores são idênticos nas comparações intra e interexaminadores ou repetibilidade do método. Valores de ICC abaixo de 0,70 foram considerados inaceitáveis; entre 0,71 e 0,79, aceitáveis; entre 0,80 e 0,89, muito bons; e acima de 0,90, excelentes. O teste de correlação de Spearman foi realizado e os resultados foram classificados de acordo com o coeficiente de correlação (r): muito fortes (r > 0,9), fortes (r entre 0,7 e 0,9), moderados (r entre 0,5 e 0,7) e fracos (r entre 0,3 e 0,5)


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Resultados

Na fase 1, tradução e adaptação cultural, houve apenas divergências gramaticais e de vocabulário entre os tradutores, o que não afetou a equivalência semântica do conteúdo. Essas diferenças foram discutidas e harmonizadas e, devido ao teor prático da classificação, não houve problemas de equivalência idiomática e cultural (expressões coloquiais). Somente uma pequena adaptação cultural foi necessária, acrescentando: 1- ao termo Hip Knee Ankle Foot Orthosis (HKAFO) o termo tutor longo com cinto pélvico, utilizado clinicamente no Brasil e 2- ao termo Ankle Foot Orthosis (AFO), o termo órtese suropodálica. A versão brasileira da MMFC é mostrada na [Fig. 1].

Zoom Image
Fig. 1 Versão Brasileira da Classificação Funcional de Mielomeningocele (MMFC).

A Fase 2–Validação Psicométrica – envolveu um total de 20 indivíduos com MM e idade entre 3 e 66 anos. A [Tabela 1] apresenta as características gerais da amostra. A [Tabela 2] mostra as classificações neurossegmentares e funcionais dos pacientes avaliados.

Tabela 1

Variável

Amostra total (n = 20)

Característica demográfica

Idade, anos*

10 (5–24,25)

Sexo, n (%)

Masculino

7 (35)

Feminino

13 (65)

Etnia, n (%)

Caucasiana

19 (95)

Afrodescendente

1 (5)

Características clínicas

Diagnóstico, n (%)

Pré-natal

13 (65)

Pós-natal

7 (35)

Reparo cirúrgico, n (%)

Intrauterino

1 (5)

24 horas

16 (80)

48 horas

2 (10)

1 semana

1 (5)

Shunt Ventrículo-peritoneal, n (%)

Sim

16 (80)

Não

4 (20)

Tabela 2

Variável

Amostra total (n = 20)

Sharrard, n (%)

Torácica/lombar alta

7 (35)

Lombar baixa

8 (40)

Sacral

5 (25)

Hoffer, n (%)

Deambulação comunitária

12 (60)

Deambulação não funcional

2 (10)

Ausência de deambulação

6 (30)

FMS de 5 metros, n (%)

1

7 (35)

2

3 (15)

3

3 (15)

4

1 (5)

5

5 (25)

6

1 (5)

FMS de 50 metros, n (%)

1

7 (35)

2

2 (10)

3

5 (25)

5

5 (25)

6

5 (5)

FMS de 500 metros, n (%)

1

2

3

10 (50)

2 (10)

2 (10)

5

5 (25)

6

1 (5)

MMFC, n (%)

1

6 (30)

2

8 (40)

3

4 (20)

4

2 (10)

Confiabilidade

A [Tabela 3] apresenta os excelentes níveis de ICC tanto na confiabilidade interobservador quanto na confiabilidade intraobservador; nesta última, foram observados valores idênticos em 60% dos examinadores.

Tabela 3

Observador

Primeira avaliação *

ICC Interobservador (IC 95%)&

Segunda avaliação*

Valor absoluto da diferença

ICC Intraobservador

(IC 95%)&

1

2,25 ± 0,83

0,936 (0,839-0,975)

2,35 ± 0,85

0,10

0,965 (0,913-0,986)

2

2,05 ± 0,86

2,00 ± 0,89

0,05

0,984 (0,961-0,994)

3

2,10 ± 0,94

2,10 ± 0,94

0

1,00

4

2,16 ± 0,81

2,00 ± 0,89

0,16

0,967 (0,917-0,987)

5

2,1 ± 0,89

2,1 ± 0,89

0

1,00

6

2,25 ± 1,04

2,35 ± 1,01

0,10

0,953 (0,883-0,981)

7

2,30 ± 1,31

2,10 ± 0,94

0,20

0,900 (0,752-0,960)

8

2,15 ± 0,91

2,15 ± 0,91

0

1,00

9

2,15 ± 1,01

2,15 ± 0,91

0

0,974 (0,933-0,990)

10

2,05 ± 0,92

2,05 ± 0,92

0

1,00

11

2,15 ± 0,85

2,15 ± 0,85

0

1,00

12

2,00 ± 0,89

2,15 ± 0,89

0,15

0,952 (0,873-0,981)

13

2,10 ± 0,89

2,10 ± 0,89

0

1,00

14

2,05 ± 0,86

2,05 ± 0,86

0

1,00

15

2,05 ± 0,92

2,05 ± 0,92

0

1,00


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Validade Convergente

A [Tabela 4] mostra as correlações significativas da MMFC com as escalas funcionais analisadas.

Tabela 4

Variáveis

r (p)

Magnitude

FMS de 5 metros

0,94 (0,00)

Muito forte

FMS de 50 metros

0,94 (0,00)

Muito forte

FMS de 500 metros

0,87 (0,00)

Forte

Sharrard

0,76 (0,00)

Forte

Hoffer

0,83 (0,00)

Forte

Habilidades Funcionais: Mobilidade (PEDI)

0,84 (0,00)

Forte

Assistência do Cuidador: Mobilidade (PEDI)

0,77 (0,00)

Forte

Assistência do Cuidador: Autocuidado (PEDI)

0,46 (0,04)

Fraca

Habilidades Funcionais: Autocuidado (PEDI)

0,46 (0,04)

Fraca


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Teste-Reteste

A reprodutibilidade da MMFC analisada por teste-reteste após 10 a 15 dias da primeira avaliação em metade da amostra apresentou ICC =1,00.


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Discussão

Este é o primeiro estudo a avaliar as propriedades psicométricas da MMFC. O presente estudo traduziu e adaptou culturalmente a classificação para o português brasileiro, língua nativa do autor principal e do autor da classificação, e mostrou que a MMFC tem excelente confiabilidade intra e interobservador, excelente reprodutibilidade e validade convergente e correlações fortes ou muito fortes com PEDI, FMS e as classificações padrões de Hoffer e Sharrard.

Muitos estudos concluíram que o fator mais importante na determinação do nível de funcionalidade de pacientes com MM é a gravidade do acometimento neurológico.[3] [4] [5] [7] Uma das classificações mais conhecidas da MM por níveis neurológicos é a de Sharrard, que utilizada em muitos estudos de avaliação e indicação de tratamento.[7] Essa classificação, porém, pode não retratar por completo os aspectos funcionais, que podem variar muito dentro de cada nível devido a diversos fatores, como idade, índice de massa corporal, motivação, presença de doenças neurológicas que interferem no equilíbrio, deformidades da coluna vertebral e dos membros inferiores que dificultam a postura ereta e a marcha, aspectos sociais, tipo de órtese e suporte externo para a marcha, entre outros. Assim, a classificação mais completa é aquela que engloba também os aspectos funcionais e os pilares da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) – Funções e Estruturas do Corpo, Atividades e Participação e Fatores Ambientais. Dentro dessa perspectiva, a MMFC representa uma importante ferramenta de classificação por incluir esses fatores. A adição da FMS a esta classificação detalha ainda mais o perfil funcional e de desempenho do indivíduo. Além disso, a MMFC deve ser sempre aplicada em conjunto com a FMS.

A avaliação da qualidade dos instrumentos de medição é importante para a escolha daqueles que geram resultados válidos e confiáveis.[18] A necessidade de uma avaliação adequada das propriedades de medição dos instrumentos de avaliação tem sido fortemente recomendada pela literatura.[19] Até onde sabemos, a avaliação das propriedades psicométricas da MMFC não foi publicada, o que é essencial para seu uso não apenas na prática diária, mas também em estudos e publicações futuras.

Os excelentes resultados observados na confiabilidade intra e interobservador da MMFC não podem ser comparados, pois não há estudos anteriores a esse respeito na literatura. As confiabilidades foram determinadas por fisioterapeutas e ortopedistas da área de reabilitação neuro-ortopédica que receberam uma explicação por escrito sobre a classificação, mostrando a facilidade de compreensão e execução.

Este estudo é o primeiro a apresentar a validade convergente da MMFC. Observou-se correlação forte a muito forte com as classificações de Sharrard e Hoffer e as escalas de mobilidade PEDI e FMS e correlação fraca com a escala de autocuidado do PEDI. Outros estudos compararam as várias classificações de MM. Rethlefsen et al.[20] mostraram a relação entre a Classificação Funcional de Mielomeningocele (Functional Classification of Myelomeningocele [FCM]) proposta por Dias et al.,[12] similar à MMFC, mas que não incluía o uso da FMS – com outras classificações de MM. Os pesquisadores analisaram 61 pacientes com espinha bífida (77% com MM e 23% com lipomielomeningocele) entre 6 e 16 anos de idade que foram classificados segundo a FCM, a FMS, a classificação de Hoffer, o nível neurológico radiológico (International Myelodysplasia Study Group – IMSG) e força e capacidade muscular de deambulação. Estes autores encontraram uma excelente correlação entre a FCM e a FMS para todas as distâncias e uma correlação fraca a moderada entre a classificação de Hoffer e a FCM.[20] A análise entre a FCM e o nível neurológico pela força muscular mostrou excelente correlação.[20] A FCM não teve correlação excelente com a classificação radiológica.[20] Em outro estudo, Battibugli et al.[21] analisaram 161 pacientes com MM a fim de determinar a influência da presença de shunt ventrículo-peritoneal na marcha. Estes autores classificaram os pacientes de acordo com o nível neurológico, a força muscular dos membros inferiores e o tipo de suporte externo para marcha e FMS. Alguns desses pacientes também foram avaliados por meio de parâmetros espaço-temporais da marcha por análise computadorizada. Os autores demonstraram que os participantes com shunt tiveram pontuações de FMS de 500 metros e FMS de 50 metros significativamente mais baixas em comparação àqueles sem shunt, mas não observaram correlação com a pontuação de 5 metros.[21] Apesar do número menor de pacientes analisados, o presente estudo incluiu apenas pacientes com MM e abrange diferentes faixas etárias e níveis neurológicos, mas ainda encontrou resultados muito semelhantes aos descritos acima. Em relação à excelente correlação de FCM com FMS em todas as distâncias relatada por Rethlefsen et al.,[20] nossos resultados mostraram que a MMFC teve correlação excelente ou muito forte com FMS de 5 metros e FMS de 50 metros. Houve, porém, forte correlação com a FMS de 500 metros, talvez devido aos pacientes mais velhos de nossa amostra, na qual os indivíduos mais funcionais já não tinham muita independência para longas distâncias e usavam cadeira de rodas.

Outro estudo comparativo entre as diversas classificações foi publicada por Bartonek et al.,[9] em que 73 pacientes foram analisados usando as classificações de Sharrard, Hoffer, Lindseth, Broughton e Ferrari. Estes autores demonstraram que, com base no nível neurológico, não é possível identificar ou predizer a capacidade funcional por meio de nenhuma das classificações. Tita et al.[22] também compararam dados retirados de prontuários de 409 pacientes adultos, classificando seu nível neurológico de acordo com duas versões da Classificação Nacional de Registro de Pacientes com Espinha Bífida dos Estados Unidos (National Spina Bifida Patient Registry Classification), o nível motor dos Padrões Internacionais para Classificação Neurológica de Lesão Medular Espinhal (International Standards for Neurological Classification of Spinal Cord Injury) e a classificação de Broughton e comparando-os com a habilidade de marcha da classificação de Hoffer. Os autores notaram uma correlação significativa entre a classificação de Hoffer e todas as escalas de nível neurológico avaliadas, sendo a correlação mais forte com a classificação de Broughton.

Um diferencial do presente estudo foi a adição da análise dos aspectos da atividade da ICF por meio do PEDI. Obtivemos uma forte correlação entre a MMFC e a mobilidade, tanto em termos de habilidades funcionais quanto a quantidade de assistência do cuidador, e uma fraca correlação com o autocuidado. Mostramos, portanto, que quanto maior a MMFC, maiores a funcionalidade do indivíduo, a mobilidade, o autocuidado e a independência de deambulação. Isso revela que a capacidade de se levantar e ter mobilidade é um fator determinante para maior independência nas atividades diárias. A fraca magnitude da correlação com o autocuidado possivelmente se deve ao fato de que as medidas de marcha, mobilidade e atividades de autocuidado da MMFC dependem mais das habilidades funcionais dos membros superiores.

Este estudo tem limitações. A amostra é pequena e de uma região geográfica específica, que pode não refletir as características da população com MM; além disso, foram incluídos pacientes submetidos a procedimentos ortopédicos ou neurocirúrgicos prévios, que poderiam ter influenciado a força muscular e sua associação a outras variáveis. Também não controlamos variáveis como o acesso a programas de reabilitação, a presença de shunt ventrículo-peritoneal etc., que poderiam ter influenciado os resultados. Além disso, há uma limitação acerca das faixas etárias de alguns instrumentos de avaliação, uma vez que este estudo incluiu pacientes adultos.


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Conclusão

A MMFC apresentou forte correlação com as classificações de MM utilizadas anteriormente. A versão brasileira da MMFC teve bons resultados nas propriedades psicométricas avaliadas: confiabilidade intra e interobservador, teste-reteste e validade convergente. Assim, a MMFC parece adequada e aplicável a indivíduos com MM e válida para a população brasileira.


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Conflito de Interesses

Os autores declaram não ter conflitos de interesse.

Agradecimentos

Ao Grupo de Inovação FSG e aos alunos pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Reabilitação FSG (Giovana Ramos, Mariana Raldi e Maria Helena Calcagnotto) pelo apoio.

Estudo desenvolvido no Centro Universitário da Serra Gaúcha, Caxias do Sul, Brasil.


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Endereço para correspondência

Renata D'Agostini Nicolini-Panisson, Ph.D.
Rua Marechal Floriano, 1229, Rio Branco CEP: 95020-371, Caxias do Sul, RS
Brasil   

Publication History

Received: 19 September 2022

Accepted: 27 March 2023

Article published online:
08 December 2023

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Fig. 1 Versão Brasileira da Classificação Funcional de Mielomeningocele (MMFC).
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Fig. 1 Brazilian Version of Myelomeningocele Functional Classification (MMFC).