Introdução
As queimaduras são lesões traumáticas graves que muitas vezes resultam em alta morbimortalidade,
o que compromete o bem-estar emocional e a qualidade de vida das vítimas. As queimaduras
estão entre as principais causas externas de morte registradas no Brasil, e são mais
comuns em populações com nível socioeconômico mais baixo e com atrasos no crescimento
e no desenvolvimento.[1-7 ]
O grande queimado adulto é aquele que apresenta queimaduras de segundo grau em mais
de 25% da superfície corporal ou de terceiro grau em mais de 10% dessa superfície.
Além dos grandes e médios queimados, são consideradas graves as queimaduras de terceiro
grau na face, nas mãos e nos pés. As queimaduras nos membros inferiores são mais frequentes
em crianças e geralmente se dão por escaldadura do tipo “alcançar e puxar”, por exemplo,
em acidentes com recipientes que contêm líquido quentes.[8-11 ]
O tratamento completo de queimaduras nos membros inferiores pode ser complexo ou direto,
conservador ou cirúrgico, dependendo da natureza da queimadura. O cuidado adequado
requer experiência e treinamento. As chaves para o bom manejo das queimaduras em membros
inferiores são a compreensão da fisiopatologia das queimaduras, o manejo adequado
da fase aguda das queimaduras, a prevenção de infecções e a reconstrução inicial apropriada
guiada pelas necessidades de longo prazo do paciente.[8 ]
[9 ]
[12 ]
[13 ]
O cuidado no atendimento inicial na fase aguda da queimadura deve ser imediato e especializado,
para que o mínimo de sequelas permaneça, de modo a preservar a funcionalidade do indivíduo.
Posteriormente, o paciente pode necessitar de uma fase de reabilitação prolongada
e tratamento tardio, que envolve desde programa fisioterápico, uso de órteses e/ou
próteses e até mesmo realização de novos procedimentos cirúrgicos para reconstrução
funcional e/ou estética. Reitera-se, então, que a abordagem terapêutica é multidisciplinar
e carece de frequente acompanhamento com o médico cirurgião.[4 ]
[9 ]
[12 ]
Os apoios social e psicológico são de grande valia, pois graves sequelas, com grandes
repercussões socioeconômicas, são comumente geradas. Cicatrizes, contraturas articulares,
retrações, rigidez, fraqueza muscular, dor crônica e amputações são devastadoras nos
membros inferiores devido ao prejuízo da funcionalidade do indivíduo, dada a importância
dessa região, principalmente para a deambulação. O risco de amputação após queimadura
de uma extremidade eleva-se de 1,5% para 18 a 40% quando se trata de queimaduras circunferenciais
ou de quarto grau.[1 ]
[3 ]
[4 ]
[6 ]
[7 ]
[13 ]
Sendo assim, o manejo de queimaduras de membros inferiores é um desafio, e conhecer
o tratamento adequado e a reabilitação de pacientes com queimaduras em membros inferiores
influencia diretamente no prognóstico e na qualidade de vida deles.
Portanto, este trabalho tem como objetivo descrever as estratégias terapêuticas no
atendimento tardio de queimados, bem como definir o perfil de pacientes vítimas de
sequelas de queimaduras de membro inferior atendidos em um hospital de reabilitação.
Resultados e Discussão
Foram avaliados retrospectivamente os prontuários de 44 pacientes vítimas de sequelas
de queimaduras de membros inferiores atendidos em um hospital de reabilitação de 2001
a 2005, o que corresponde a 29% dos atendimentos de sequelas de queimaduras no período.
A mediana do tempo de seguimento foi de 3 (variação: 1 a 12) anos. Com relação aos
dados demográficos, observou-se maior frequência de pacientes do gênero masculino
(61,3%, em comparação a 38,7% de pacientes do gênero feminino) na faixa etária de
21 a 40 (média de idade: 26) anos. Além disso, 98% dos pacientes se encontravam em
idade produtiva (< 60 anos), e 11 (25%) eram procedentes do Distrito Federal, 7 (16%),
do estado de Goiás, e 6 (14%), do estado do Mato Grosso, conforme mostram a [Fig. 1 ] e a [Tabela 1 ].
Tabela 1
Pacientes
N
%
Gênero
Masculino
Feminino
27
17
61,3
38,7
Faixa etária (anos)
01–20
21–40
41–60
61–80
17
18
8
1
39
41
18
2
Idade média
(anos): média ± desvio padrão
26 ± 14,86
Procedência
Distrito Federal
Goiás
Mato Grosso
Outras
11
7
6
20
25
15,9
13,3
45
TOTAL
44
100
Tempo de
seguimento: mediana (variação)
3 anos
( 1 mês–11 anos)
Fig. 1 Distribuição dos dados segundo as regiões brasileiras. Abreviaturas: AC, Acre; AP, Amapá; BA, Bahia; DF, Distrito Federal; GO, Goiás; MA, Maranhão; MG,
Minas Gerais; MT, Mato Grosso; PE, Pernambuco; RO, Rondônia; SC, Santa Catarina; SP,
São Paulo; TO, Tocantins.
A partir dos dados relacionados às queimaduras de membros inferiores, evidenciou-se
que, quanto às regiões do corpo acometidas, 5 (11,3%) atingiram somente 1 dos pés,
18 (40%), os 2 pés, 8 (18%), os 2 membros inferiores, e 2 (4,5%), somente 1 membro
inferior, envolvendo a perna e o joelho. Do total de pacientes analisados, 22 (50%)
tinham acometimento em regiões combinadas, principalmente nas mãos (22,7%) e nos membros
superiores (18%). A distribuição dos pacientes com sequelas conforme região envolvida
pelas queimaduras é explicitada na [Tabela 2 ].
Tabela 2
N
%
Agente causal
Térmico
34
77,2
Elétrico
10
23,8
Total
44
100
Região
Pé: unilateral
5
9
Pé: bilateral
18
32
Membros inferiores
8
14
Membro inferior
2
3
Mão e pé
10
18
Membros inferiores e superiores
8
14
Outras
4
7
Total
55
100
Tempo de queimadura (anos): mediana (variação)
11 anos (4 meses–70 anos)
Quanto ao agente causal, como observado na [Fig. 2 ], identificou-se predomínio de queimaduras por brasas/cinzas/pó de serra/palha de
arroz/carvão/esterco (30%), seguidas das queimaduras elétricas (18%), sendo o fogo
o terceiro agente causal de maior prevalência (11%).
Fig. 2 Distribuição dos dados quanto ao agente causal da queimadura.
Em todos os pacientes vítimas de queimaduras plantares, foram identificadas contraturas
no tornozelo e no pé, flexão dorsal ([Fig. 3 ]), flexão plantar ([Fig. 4 ]), desvio lateral, rigidez de toda a articulação do tornozelo e do dorso do pé, classificados
conforme Chang et al.3 como graves, ou seja, com impacto funcional, dano significativo dos tecidos adjacentes,
impossibilidade ou dificuldade de utilização de calçados, impacto ao andar e envolvimento
de estruturas anatômicas profundas (tendões, ligamentos e cápsula articular).
Fig. 3 (A ) Pré-operatório de paciente portador de sequela de queimadura com deformidade plantar
bilateral, com retração em flexão dorsal, com hiperextensão e luxação das articulações
dos dedos, submetido a procedimento de liberação de retração com enxertia de pele
total e fixação com fios de Kirschner; (B ) Um pé operado no trigésimo dia de pós-operatório; e (C ) pós-operatório tardio dos dois pés operados; (D ) órtese tornozelo-pé com tampo anterior utilizada no pósoperatório. Fonte: Hospital Sarah Kubitschek, Brasília.
Fig. 4 (A ) Paciente portador de sequela de queimadura nos pés, com contratura em flexão plantar
provocada por fogo, submetido a filetização do V artelho deformado e distribuição
do retalho do dedo sobre o dorso do pé; (B ) resultado em 1 mês de pós-operatório. Fonte: Hospital Sarah Kubitschek, Brasília.
A mediana de tempo entre a queimadura e o atendimento foi de 11 anos (variação: 4
meses a 70 anos). A partir da análise dos dados sobre os procedimentos cirúrgicos,
verificou-se que 29 procedimentos diferentes foram realizados no hospital em questão
([Figs. 3 ]
[4 ]
[5 ]
[6 ]), sendo que 19 pacientes foram submetidos a 1 procedimento e 10 necessitaram de
mais de 2 procedimentos, sendo 2 cirurgias para 4 pacientes, 3 cirurgias para 3 pacientes,
4 cirurgias para 2 pacientes, e somente 1 paciente necessitou de mais de 4 procedimentos.
Fig. 5 (A ) Pré-operatório de paciente portador de sequela de queimadura com retração em flexão
dorsal do hálux, com dor e limitação para a utilização de calçados e deambulação;
(B ) pós-operatório de liberação de retração e filetização do segmento do hálux e utilização
do retalho. Fonte: Hospital Sarah Kubitschek, Brasília.
Fig. 6 (A ) Retalho sural realizado para a reconstrução da região do calcâneo; (B ) resultado pós-operatório. Fonte: Hospital Sarah Kubitschek, Brasília.
As principais cirurgias realizadas foram liberação de retração cicatricial com reconstrução
e enxertia de pele total (28%), zetaplastia múltipla (12%), capsuloplastia, alongamento
tendíneo ou tenotomia, e fixação com fios de Kirschner. Entre as complicações prévias,
9 (20%) pacientes apresentaram-se na admissão já com amputação de um membro: 1 amputação
transtibial unilateral, 1 transfemural, 5 de artelhos, 1 de 2 membros superiores e
1 de 1 membro superior, todas realizadas no atendimento de emergência.
Além disso, 1 paciente apresentava paraplegia e se encontrava em uso de cadeira de
rodas, 1 apresentou parada cardiorrespiratória, septicemia e desenvolvimento de isquemia
cerebral no atendimento da emergência, e 3 apresentavam úlceras em áreas cicatriciais
de queimaduras e foram submetidos a biópsia, que evidenciou o diagnóstico de carcinoma
espinocelular (CEC/úlcera de Marjolin). Os procedimentos cirúrgicos e não cirúrgicos
estão esquematizados na [Tabela 3 ].
Tabela 3
Pacientes
N
%
Procedimento
Cirúrgico
Não cirúrgico
29
15
66
34
Total
44
100
Números e tipos de procedimentos
cirúrgicos por paciente
Procedimentos cirúrgicos
Enxerto de pele total
Zetaplastia múltipla
Retalho V-Y
Duplo Z-plastia
Five-flap
Retalho cross-leg
Retalho sural reverso
Retalho de skoog
Ressecção de ossificação
Desarticulação de falange
Filetização de dedo
Capsuloplastia, alongamento tendíneo ou tenotomia
Fixação com fios de Kirschner
Exérese de carcinoma espinocelular do pé
N
19
8
5
2
4
1
3
2
1
5
2
6
7
3
%
28
12
7
3
6
2
5
3
2
7
3
9
10
5
68
100
Procedimentos não cirúrgicos
Avaliação da marcha no laboratório de movimento
Órtese patellatendon bearing
( descarga de peso no tendão patelar)
Órtese estática tornozelo-pé
Órtese estática tornozelo-pé com tampo anterior
Prótese transtibial exoesquelética
Palmilha feita sob molde
Exercícios fisioterápicos passivos e ativos assistidos e de fortalecimento muscular
Auxílio para locomoção
Os procedimentos não cirúrgicos foram exclusivos em 15 (34%) pacientes, e consistiram
em avaliação físico-funcional, uso de órteses estáticas tornozelo-pé, patelar tendon bearing (PTB), órtese plantar articulada com tração dorsal ou plantar, exercícios de fortalecimento
muscular, cuidados com a pele queimada e orientação de uso de substância oleosa, proteção
solar, palmilhas feitas sob molde, ortopróteses e próteses de membro inferior ([Fig. 7 ]). Todos os pacientes, inclusive os operados, foram encaminhados para avaliação fisioterápica
e físico-funcional, e foram acompanhados no ginásio de fisioterapia no pré e no pós-operatório
para auxílio de locomoção, confecção de órteses e outros procedimentos.
Fig. 7 Procedimento não cirúrgico (A ) e de protetização transtibial exoesquelética (B ) em paciente vítima de queimadura elétrica com amputação transtibial no momento do
trauma. Fonte: Hospital Sarah Kubitschek, Brasília.
Neste estudo, no que tange ao perfil das vítimas de sequelas de queimaduras nos membros
inferiores, foi possível verificar a prevalência de indivíduos jovens, em idade produtiva,
e do gênero masculino. Além disso, a alta morbidade das lesões, o tempo prolongado
entre a queimadura e o atendimento, bem como o número de procedimentos necessários
para a reabilitação destes pacientes também tiveram destaque.
A lesão térmica correspondeu à maioria dos casos; as queimaduras por agentes térmicos
sempre ocorrem com maior frequência em relação às outras causas, e resultam da exposição
a chamas, substâncias líquidas ou sólidas superaquecidas, superfícies quentes, fricção,
entre outras causas. Queimaduras térmicas, principalmente secundárias ao contato,
expõem estruturas profundas em áreas de pele mais fina (dorso da mão e dedos) ou requerem
cobertura cutânea com retalhos livres em fase posterior, já como sequela, devido à
evolução desfavorável da cicatrização tecidual ou à retração de enxertos de pele,
como se evidencia na [Fig. 8 ].
Fig. 8 Queimadura em “sandália”, caracterizada por lesão profunda grave, que inclui a lesão
da pele e dos tecidos subjacentes até os ossos, ocorrida nos dois pés, em criança
com amputação de todos os artelhos, provocada por brasa quente. Fonte: Hospital Sarah Kubitschek, Brasília.
As decisões quanto ao tratamento variaram com o tempo de queimadura, a classificação
do tipo de contratura, a idade e as queixas do paciente. Dada a importância dos membros
inferiores para funções de locomoção, sustentação do peso corporal e promoção do equilíbrio,
as sequelas e complicações de queimaduras geradas nessa região foram consideradas
críticas e com relevante impacto na funcionalidade dos indivíduos acometidos.
Exemplos desse impacto seriam distúrbios na articulação talocrural, queixas de dor
e alterações na posição ortostática, na marcha, na postura, bem como possíveis consequências
na pelve, na coluna e em outras estruturas do aparelho locomotor.
Corroborando Ribeiro et al.,[11 ] apesar de a área de superfície corporal compreendida pelos pés ser pequena, queimaduras
nesse local desencadeiam grande perda funcional e alto índice de morbidade. A recuperação
dessa injúria está relacionada ao bom tratamento da lesão na fase aguda, visto que
tais procedimentos determinam maior ou menor grau de sequelas, e facilitam ou não
o período de recuperação.
O entendimento da anatomia regular e funcional do membro mostrou-se fundamental para
a indicação dos procedimentos de reparação, os quais visam, principalmente a recuperação
funcional da área acometida. A região dorsal foi a mais atingida, devido à posição
ortostática assumida na maior parte dos contatos com elementos potencialmente lesivos.
Observou-se nesta casuística que, para a liberação das retrações cicatriciais, foi
necessário alongar tendões, realizar capsulotomias, reposicionamento das articulações
com fixação com fios metálicos e o fechamento com enxertia de pele ou retalhos, complementados
pelo uso de órteses. Essas são medidas frequentemente adotadas para reabilitar pacientes
com sequelas de queimaduras graves.
De acordo com Tarazi e Bitterman,[14 ] queimaduras circunferenciais e de 4° grau, tendo como agente causal a alta tensão
ou eletricidade, elevam as chances de amputação de membros nos pacientes. Diante disso,
tratamentos agudos podem requerer medidas como enxertia de pele, retalhos locais,
musculares, microcirúrgicos, matriz de regeneração dérmica, curativos especiais e
outras, tal como no atendimento tardio. Entretanto, como sequelas, ocorre o encurtamento
dos tecidos, principalmente do feixe vasculonervoso, comprometendo a possibilidade
de sucesso cirúrgico.
Em geral, além da dimensão da lesão, a conduta inicial determina a continuidade do
tratamento, ao indicar maiores ou menores sequelas. Segundo os autores,[14 ] apesar de menos frequentes, as sequelas após queimaduras de membro inferior podem
trazer alterações na funcionalidade dos pacientes, com limitação na deambulação e
no desenvolvimento muscular, observados nos casos de retrações em fossa poplítea,
região dorsal do pé, pododáctilo e tornozelos. Nessas regiões, os procedimentos convencionais,
como zetaplastia, enxertias e retalhos locais conseguem melhorar grande parte das
retrações. Já nos casos que envolvem cobertura plantar e limitação articular, há maior
dificuldade terapêutica.
Jaiswal et al.[15 ] sugeriram que as cirurgias para a correção de contraturas nos membros inferiores
devem ser realizadas até 6 meses após queimaduras. Além disso, recomendaram a cirurgia
para a correção de contraturas em 2 etapas: inicialmente, com abordagem plantar, e,
6 meses depois, a dorsal, ou vice-versa.
As queimaduras no nível dos pés deformam os dedos em hiperextensão com subluxação
da articulação metacarpofalangiana. As deformidades plantares em varo ou valgo são
mais raras. O tratamento é feito em etapas, e começa pela liberação das faixas cicatriciais
e cordões fibrosos com procedimentos de realização simples, como zetaplastia, V-Y
e duplo Z. Quando insuficientes, é indicada a realização de enxertia de pele.
Nos espaços interdigitais, a técnica de Skoog, com retalho triangular para neocomissura
e lesões maiores com exposição osteoarticular, é bem empregada. A possibilidade de
realização de retalhos, principalmente os locais, deve ser bem avaliada. Contudo,
revisões ou a realização de mais de um procedimento cirúrgico podem ser necessárias.
Stockly et al.[16 ] realizaram um estudo no Banco de Dados Nacional do Burn Model System, dos Estados
Unidos, entre 1996 e 2015, que comparou os resultados das características demográficas
e clínicas de adultos sobreviventes de queimaduras com lesões elétricas e por fogo/chamas.
As pontuações na Satisfaction with Life Scale (SWLS), no Short Form-12 Physical Composite
Score (SF-12 PCS), no Short Form-12 Mental Composite Score (SF12 MCS) e status laboral foram examinados 24 meses após a lesão. Um total de 1.147 adultos sobreviventes
de queimaduras (111 com lesões elétricas e 1.036 com lesões por fogo/chamas) foram
incluídos nesse estudo.[16 ] As pessoas com lesões elétricas eram mais propensas a serem do sexo masculino e
a se lesionarem no trabalho (p < 0,001). As pontuações no SF-12 PCS foram significativamente piores para os sobreviventes
com lesões elétricas 24 meses após a lesão do que para os sobreviventes com lesões
por fogo/chamas (p < 0,01).
Pedrazzi et al.[17 ] realizaram um estudo no Zurich Burn Center que avaliou o manejo cirúrgico e os desfechos
de pacientes com lesões elétricas nos últimos 15 anos, com ênfase nos fatores de risco
para amputação e na estratégia reconstrutiva. Assim, 89 pacientes foram analisados,
e 522 operações foram realizadas: as escarotomias e fasciotomias foram empregadas
em 40,5% e 24,7% dos casos, respectivamente, principalmente na admissão. A taxa total
de amputação foi de 13,5% (23 amputações; 12 pacientes).
O desenvolvimento de síndrome compartimental, rabdomiólise, níveis sanguíneos elevados
de mioglobina e creatinoquinase (creatine kinase , CK, em inglês), insuficiência renal, sepse e complicações respiratórias durante
o curso foram relacionados a maior risco de amputação (p < 0,001). Observou-se[17 ] que 66 reconstruções baseadas em retalhos foram realizadas (25% dos casos): 49 retalhos
locorregionais, 3 retalhos distantes pediculados, e 14 retalhos livres. Dois retalhos
foram perdidos (taxa de falha do retalho de 14%).
Concluiu-se[17 ] que ambas as perdas de retalho ocorreram em casos de reconstrução precoce (dentro
de 5 a 21 dias). As lesões elétricas ainda são causas de elevada morbidade e mortalidade,
com alta taxa de amputação. Os preditores de amputação podem apoiar os médicos no
cuidado cirúrgico e na tomada de decisões. A reconstrução permanece desafiadora neste
tipo de lesão: o manejo cirúrgico com fasciotomia precoce, escarotomia seriada e reconstrução
precoce continuam sendo os procedimentos de escolha na fase aguda.
A lesão por queimadura também pode resultar em necessidade de amputação, embora isso
seja raro. Em relação às queimaduras térmicas, os acidentes por exposição química
e elétrica são associados a um maior risco de amputação, em uma escala de risco ascendente
nessa ordem. Além das queimaduras elétricas, outros fatores de risco são a presença
de comorbidades, como diabetes, e a pele negra, sendo necessários maiores estudos
para entender essa relação.
Queimaduras térmicas extensas também estão associadas a aumento de risco de amputação.
Quanto aos benefícios da amputação, há aumento da sobrevida quando realizada em pacientes
com lesão grave. Contudo, percebem-se dificuldades potenciais na habilitação dos feridos
após a alta, o que está associado à baixa qualidade na cobertura da pele e à formação
de contratura sobre o coto. No programa de reabilitação a que foram submetidos os
pacientes deste estudo, as amputações foram observadas em 20% dos pacientes, cuja
admissão era para protetização e procedimentos cirúrgicos complementares.
As lesões por queimaduras podem resultar em uma série de consequências e complicações,
como mononeuropatia e lesão medular, que são principalmente causadas por alta tensão.
A neuropatia periférica é a complicação neuromuscular mais frequente, e pode ocorrer
tanto em consequência de queimaduras térmicas quanto de queimaduras elétricas, e há
alguns relatos de neuropatia como consequência de queimaduras químicas. Clinicamente,
a condição pode se apresentar com parestesia, dor neuropática, disestesia, fraqueza
e síndrome do pé caído. A severidade da neuropatia varia com a extensão e a profundidade
da lesão.
A neuropatia periférica não resulta apenas da destruição direta dos nervos causada
pelos agentes agressores; pode ocorrer também devido a outras causas, como neurotoxinas,
inflamação, oclusão dos vasa nervorum , utilização de talas, intervenções cirúrgicas ou edemas que comprimam estruturas
nervosas.
Neste estudo, verificou-se a presença de deformidades secundárias graves às queimaduras,
o que também foi verificado na experiência de muitos autores, e ratifica a importância
de realizar o atendimento adequado e de acompanhar o crescimento de crianças vítimas
de queimaduras de membros inferiores até a idade adulta, mesmo que não haja alterações
funcionais no membro inferior.
Portanto, vale ressaltar que a análise físico-funcional na posição ortostática, durante
a deambulação e no uso de calçados, é fundamental nas consultas de revisão e na admissão
ao serviço de reabilitação, além de se dar a devida atenção às queixas do paciente
e priorizar a funcionalidade, não a estética. Todavia, quando as sequelas são tardias,
na maioria das vezes é impossível recuperar a mobilidade articular, o que ocasiona
rigidez e dor.
Ademais, nos procedimentos cirúrgicos, é importante o manuseio delicado da pele queimada,
a proteção e a preservação dos pedículos vasculares, e abordar cada articulação e
liberá-las com capsuloplastia, alongamentos tendíneos ou tenotomia e fixação com fios
de Kirschner. No pós-operatório, é fundamental o controle da dor, a elevação do membro
operado, evitar o apoio plantar até a cicatrização completa, e, muitas vezes, considerar
a possibilidade de realizar os procedimentos em etapas. Além disso, é valoroso realizar
a compensação de assimetrias de comprimento do membro, a proteção ou exérese de projeções
ósseas e oferecer o uso de palmilhas e órteses a fim de melhorar a qualidade de vida
dos pacientes.