Palavras-chave ligamento colateral médio do joelho/anatomia e histologia - reconstrução do ligamento cruzado anterior - lesões do ligamento cruzado anterior - ligamento cruzado anterior - instabilidade articular
Introdução
As estruturas mediais do joelho desempenham papel primário na estabilização ao estresse em valgo, bem como ao estresse rotacional, o que faz delas extremamente importantes na avaliação global do joelho com lesão ligamentar e na escolha do tratamento mais adequado. O ligamento colateral medial (LCM) é o ligamento do joelho mais comumente lesionado.[1 ] No entanto, a importância dada ao estudo anatômico dessas estruturas foi pequena em comparação à porção lateral, o que pode ser explicado pelo fato do LCM ter um grande potencial de cicatrização após uma lesão.[2 ]
Warren et al.[3 ] descreveram a anatomia medial do joelho com a divisão em três camadas distintas, conceito ainda utilizado na atualidade. A camada 1 é composta pela fáscia crural, da patela até a fossa poplítea, incluindo a fáscia do sartório. Entre as camadas 1 e 2, se encontram os tendões do grácil e semitendíneo. A camada 2, por sua vez, é composta pelo ligamento colateral medial superficial (LCMs). Já a camada 3 consiste na cápsula articular e no LCM profundo.
Anos após essa descrição, Robinson et al.[4 ] publicaram um novo estudo anatômico com uma nova divisão da porção medial do joelho em três partes, de anterior para posterior. A mais anterior compreende as estruturas do limite medial do tendão patelar até a borda anterior das fibras longitudinais do LCMs. A porção média engloba o próprio LCMs, e a posterior se estende da borda posterior das fibras longitudinais do LCMs até a cabeça medial do gastrocnêmio.[2 ] LaPrade et al.,[5 ] em um artigo publicado em 2007, trazem o conceito de que a simples divisão por camadas, ainda que adequada, talvez não seja o melhor método de descrição anatômica, uma vez que o conhecimento das origens e inserções das estruturas é essencial para o planejamento de uma reconstrução cirúrgica. Este estudo focou na avaliação quantitativa da porção medial do joelho, diferentemente dos estudos prévios que focavam na simples descrição qualitativa. Desta forma, este estudo apresentou padrões consistentes de medidas que puderam ser aplicados no planejamento das reconstruções cirúrgicas.
Com esse histórico de estudos relativamente recentes,[4 ]
[6 ] é possível notar a importância do estudo anatômico da porção medial do joelho na busca de uma reconstrução cirúrgica ligamentar o mais semelhante à condição anatômica original. No presente estudo, procuramos descrever e orientar a dissecção anatômica da porção medial do joelho, passo a passo, para a identificação de todas as estruturas com importância biomecânica, bem como suas origens e inserções, com medidas precisas e de forma prática e objetiva. Além disso, foi possível descrever novas estruturas anatômicas, ainda não encontradas na literatura, e que podem ser de grande importância no estudo biomecânico do joelho.
Materiais e métodos
Entre abril e agosto de 2020, foram dissecados 20 joelhos derivados de amputações transfemorais realizadas exclusivamente por motivos vasculares e sem sinais ou indicações de trauma. Foram aplicados os seguintes critérios de exclusão: sinais de trauma, cirurgia prévia, sinais macroscópicos de osteoartrite e mau estado de preservação. Assim, foram estudados 19 joelhos. Os joelhos foram armazenados em solução de formaldeído a 10% e refrigerados a 5,3°C. As dissecções foram realizadas 2 a 21 dias após a amputação. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da instituição.
Os espécimes foram fotografados em câmera digital de 12 megapixels e medidos em paquímetro digital com precisão de 0,01 mm (Mitutoyo Sul Americana Ltda. Suzano, SP – Brasil).
Todos os espécimes foram identificados de acordo com o gênero, idade, lado dissecado, data da amputação e data da dissecção. Os dados coletados foram analisados e interpretados por meio de estatística descritiva.
Resultados
Foi realizada uma incisão curvilínea de ∼ 25 cm, tipo taco de hóquei, seguindo uma linha que corta a diáfise femoral, o epicôndilo medial e o eixo longo da tíbia, iniciando 4 cm proximal ao epicôndilo medial e estendendo-se até a base da inserção da pata anserina, com abertura suave da derme e do tecido celular subcutâneo até a exposição da coloração nacarada correspondente a uma fáscia brilhante, a qual denominamos fáscia óssea medial. Foi realizada uma dissecção ampla no plano subcutâneo até a exposição completa da fáscia de anteromedial até posteromedial ([Figura 1 ]).
Fig. 1 Incisão curvilínea em taco de hóquei sobre eixo longo do fêmur (*1), epicôndilo medial (*2) e eixo longo da tíbia (*3).
Foi observado, ao nível da fossa poplítea, o recesso das fáscias, amplamente coberto por tecido adiposo, sendo realizada uma ressecção cuidadosa desse tecido até a exposição das estruturas tendinosas posteromediais ([Figura 2 ]).
Fig. 2 Exposição abaixo do tecido celular subcutâneo mostrando a fáscia do músculo vasto medial oblíquo (*1), fáscia óssea medial (*2) e recesso posterior medial (*3) amplamente coberto de gordura.
O ponto mais delicado da dissecção é o plano abaixo da fáscia, o qual está intimamente aderido a todas as estruturas mais profundas, demandando substancial cuidado para não lesionar as estruturas de interesse. Através de uma incisão longitudinal superficial, divulsiona-se a fáscia, criando um espaço entre a mesma e as demais estruturas ([Figura 3 ]).
Fig. 3 Dissecção no plano abaixo da fáscia demostrando estruturas fortemente aderidas, com tendões da pata anserina já seccionados.
Foi identificado o tendão do adutor magno inserido em uma depressão óssea posterior e proximal ao tubérculo do adutor. O aspecto distal medial do tendão adutor magno apresentava uma expansão fascial espessa, que se espalhava posteromedialmente. Sua inserção em forma oval apresentou em média 9,38 × 9,82 mm ([Figura 4 ]).
Fig. 4 Identificação do tendão do adutor magno (*1), com sua inserção distal (*2), sendo expostos músculo vasto medial oblíquo (*3), retináculo patelar medial (*4) e ligamento colateral medial superficial (*5).
A inserção do tendão do gastrocnêmio medial apresentava-se proximal e posterior em uma depressão adjacente ao tubérculo gastrocnêmio e distal e posterior ao tubérculo adutor. Como observado anteriormente, o tendão gastrocnêmio medial apresentava uma ligação fascial espessa ao longo de sua face lateral, distanciando em média, 10,92 mm do tendão adutor magno.
O ligamento patelofemoral medial estava localizado anterior e em uma camada extra-articular distinta da cápsula articular medial e foi localizado a partir da borda distal do vasto medial oblíquo. Sua inserção no fêmur era proximal e posterior ao epicôndilo medial e anterior e distal ao tubérculo adutor. O comprimento médio do ligamento femoropatelar medial foi de 50,52 mm ([Figura 5 ]).
Fig. 5 Isolamento do ligamento patelofemoral medial inserido no retináculo patelar medial ( *1), sendo observados também o tubérculo do adutor (*2), tendão do músculo adutor (*3) e ligamento colateral medial superficial (*4).
O LCMs insere-se no fêmur em uma pequena depressão, discretamente proximal e posterior ao centro do epicôndilo medial, a ∼ 30,71 mm da superfície articular, anterior e distal aos tendões do gastrocnêmio medial e do adutor magno. O LCMs apresentava duas inserções tibiais distintas; a inserção tibial distal estava intimamente aderida ao osso e periósteo, sendo possível sua visualização na totalidade após a identificação e a ressecção dos tendões da pata anserina, e se situava a uma média de 66,85 mm da linha articular ([Figura 6 ]).
Fig. 6 Visualização do ligamento colateral medial superficial (*4) e sua sobreposição com a pata anserina (*6) com exposição do retináculo patelar medial (*1), tubérculo do adutor (*2), tendão do músculo adutor (*3), ligamento oblíquo posterior (*5) e tendão do músculo gastrocnêmio (cabeça medial) (*7).
Foi realizada a desinserção distal do periósteo até a visualização de uma bursa abaixo do ligamento, onde este não se encontrava inserido no osso. A essa estrutura, demos o nome de bursa interinsercional. Proximalmente à bursa, havia uma saliência óssea situada a uma média de 21,35 mm da superfície articular e a 28,35 mm da inserção distal do ligamento colateral medial superficial. A esta estrutura, demos o nome de tubérculo interinsercional. Proximal a ele, se inicia a inserção tibial proximal do LCMs, a uma distância média de 12,45 mm da linha articular ([Figura 7 ]).
Fig. 7 Exposição do tubérculo interinsercional (*2) após desinserção do ligamento colateral medial superficial em sua inserção tibial distal (*3) e proximal (*1).
Com a desinserção do LCM, é possível a visualização de uma estrutura de característica ligamentar, a qual tem origem anterior à origem do LCMs e corre com fibras oblíquas em direção à tíbia com inserção ∼ 9,11 mm anterior à borda anterior do LCMs, em formato de leque ([Figura 8 ]).
Fig. 8 Com desinserção do ligamento colateral medial superficial (*1) e rotação externa tibial, fica evidente o ligamento oblíquo anterior (*2); observado também o retináculo patelar medial (*3) rebatido.
Tal estrutura, a qual foi nomeada ligamento anterior oblíquo, ficava mais evidente após a liberação do LCMs e mediante rotação externa da tíbia. Ela apresentava um comprimento médio de 33,82 mm em flexão de 90° e de 26,56 mm em extensão completa, tendo uma largura média de 6,83 mm na origem, de 13,06 mm na inserção, e de 8,05 mm na altura da linha articular.
O LCM profundo tem sua inserção femoral oval na extensão anteroposterior, e a proximal na cartilagem articular do fêmur, imediatamente posterior e distal à fixação do LCMs e na superfície inferior do epicôndilo medial.
A inserção tibial era distal à margem da cartilagem articular, imediatamente proximal à inserção do tendão semimembranoso. As fibras eram paralelas e corriam em direção distal e discretamente anterior. Embora fosse uma estrutura distinta, era inseparável da cápsula e também se encontrava fixada ao menisco medial. A borda anterior foi facilmente identificável, pois o LCM profundo formava uma banda espessa facilmente palpável dentro do tecido capsular circundante. Já posteriormente, a porção proximal do ligamento se misturava com a cápsula posteromedial.
Discussão
A anatomia da região medial do joelho é muito importante, pois suas estruturas são responsáveis pela estabilização primária contra valgo e forças de rotação externa aplicadas ao joelho.[2 ]
[3 ] A lesão do LCMs é a mais comum dentre as lesões ligamentares associadas à lesão do ligamento cruzado anterior, o que torna o presente estudo ainda mais relevante.
No entanto, na literatura, a importância dessas estruturas é negligenciada quando comparada às das estruturas laterais e estruturas do pivô central. Um provável motivo para tal é o alto potencial de cura do LCM, apesar das altas taxas de lesão.[2 ]
[7 ]
[8 ] Outra possível causa advém da dificuldade de dissecção dos componentes mediais do joelho, uma vez que há grande aderência aos planos fasciais e uma espessa sobreposição de tecidos conjuntivos, o que torna a delimitação das estruturas de forma isolada difícil e trabalhosa. Por este motivo, as descrições dos parâmetros de fixação qualitativos da reconstrução ligamentar medial do joelho são imprecisas.
Na maioria das revisões da anatomia, sempre foram encontradas três proeminências ósseas (tubérculo do gastrocnêmico, tubérculo do adutor e epicôndilo medial) ([Figura 9 ]).[9 ]
[10 ] No entanto, não foi encontrada descrição da proeminência óssea tibial que se encontra abaixo do LCMs imediatamente distal à sua inserção tibial proximal – o tubérculo interinsercional – e nem da bursa que se encontra na mesma topografia – bursa interinsercional. A provável causa é a dificuldade na desinserção do LCMs e sua adesão à fáscia óssea medial, o que dificulta sua dissecção e isolamento. Tais parâmetros podem se tornar de suma importância no avanço das técnicas de reconstrução ligamentar medial do joelho, uma vez que são estruturas imediatamente distais à inserção tibial proximal do LCMs.
Fig. 9 Visualização do tubérculo do gastrocnêmio (*2), tubérculo do adutor (*1) e epicôndilo medial (*3) após ressecção de partes moles.
O LCMs, em sua origem femoral, foi descrito como sendo anterior e distal ao tubérculo adutor em um formato oval.[11 ]
[12 ] A inserção tibial distal situa-se entre 46 e 60 mm distal à articulação,[13 ] sendo seu comprimento total de 90 a 110 mm.[5 ]
[14 ] Em sua inserção tibial distal, as fibras misturam-se tangencialmente com o periósteo.[15 ]
[16 ] O LCMs apresentou-se, no presente estudo, com uma média de 11,35 mm de largura em sua inserção femoral, apresentando em sua inserção tibial distal uma largura média de 12,30 mm, com fibras conectadas à pata de ganso.[17 ] É descrito como tendo fibras paralelas e fibras oblíquas, havendo uma expansão de tecidos conjuntivos em forma de leque que se estende da sua borda anterior em direção à patela, misturando-se com o retináculo patelar medial,[18 ]
[19 ] observado em ∼ 42% das dissecções.
A maioria dos autores concorda que o LCM profundo é aderido ao menisco medial e se confunde com os ligamentos meniscofemorais e meniscotibiais,[7 ] sendo descrito como inserido na tíbia logo distal à sua superfície articular ou, em alguns casos, na margem articular da tíbia.[20 ]
[21 ] Há discordância, no entanto, quanto à diferenciação do LCM profundo da cápsula articular. Em alguns casos, o LCM é descrito como contínuo à cápsula, misturando-se com fibras capsulares mediais. Em outros joelhos, o LCM profundo foi identificado como estrutura separada da cápsula, não estando, portanto, aderido ao menisco.[22 ] Há, ainda, descrição do ligamento menisco femoral como parte do LCM profundo e, em outras dissecções, como uma estrutura distinta.[15 ]
[23 ] Em nossa dissecção, todos os espécimes apresentaram o ligamento e a cápsula como estruturas inseparáveis, sendo impossível o isolamento das mesmas.
Durante as dissecções, foi observada uma estrutura ligamentar ainda não descrita na literatura, entre o fêmur e a tíbia, de orientação oblíqua. Esta estrutura ligamentar foi encontrada em 100% das peças. Sua localização se apresentava extracapsular e facilmente distinguível da cápsula articular ([Figura 9 ]). A ela, foi dado o nome de ligamento oblíquo anterior, e sua descrição se encontra de forma mais detalhada em um trabalho inteiramente dedicado à mesma, onde já se comprova sua existência em estudos radiológicos com ressonância magnética (RM) e estudos histológicos que confirmam a presença de tecido ligamentar. Sua origem femoral ocorria diretamente na face anterior do epicôndilo medial, confundindo-se com a inserção femoral do LCMs. O mesmo corria de forma oblíqua em direção à tíbia, na qual se inseria em formato de leque, como uma inserção capsular espessa. Alguns motivos foram levantados para justificar o fato de esta estrutura não ter sido descrita anteriormente. Um deles é o fato do uso da descrição por camadas de Warren por um longo período, a qual já vem se provando pouco eficaz na dissecção medial do joelho e na visualização das estruturas isoladamente. Outra justificativa seria a dificuldade de visualização da estrutura, apenas evidente após liberação de todo o LCMs ([Figura 10 ]).
Fig. 10 Ligamento oblíquo anterior totalmente liberado da cápsula, demostrando ser uma estrutura extracapsular.
O achado desta nova estrutura ligamentar possibilita uma nova visão em relação às estruturas articulares circunferenciais e ao controle rotacional, o que identificamos como Teoria dos Quadrantes. Por meio desta, de forma resumida, explica-se que as estruturas encontradas no quadrante anteromedial do joelho (delimitado pelo eixo transepicondilar e por uma linha perpendicular ao eixo transverso articular) seriam responsáveis pela restrição ao valgo e à rotação externa. Essa nova perspectiva sobre o controle rotacional pode auxiliar na avaliação da necessidade de reconstruções periféricas complementares ao pivô central que promovam maior estabilidade e menor taxa de falha.
Conclusão
No presente estudo, foi realizada uma descrição qualitativa e quantitativa das principais estruturas mediais do joelho, assim como a de três novas estruturas ainda não descritas na literatura: o tubérculo e a bursa interinsercionais e o ligamento anterior oblíquo. Com essas descobertas e uma melhor avaliação de toda anatomia medial do joelho, por vezes negligenciada em estudos anatômicos anteriores, acredita-se que será possível aperfeiçoar técnicas de reconstrução ligamentar já existentes, assim como compreender de forma mais completa a biomecânica do joelho. Desta forma, tornar-se-ia possível planejar uma reconstrução cirúrgica o mais semelhante à condição anatômica original, melhorando o resultado pós-operatório e diminuindo o índice de falha.