Tratamento
Recentemente foi sugerido por alguns autores um algoritmo para a divisão das estratégias cirúrgicas para o tratamento das lesões da cartilagem articular baseada em três “Rs”: reparo, restauração ou regeneração.[1] As técnicas de reparo da cartilagem têm como objetivo induzir a formação de tecido no local do defeito condral ou osteocondral através da estimulação de células locais e/ou do implante de células, biológicos e/ou scaffolds no defeito, sendo as mais comuns a microfratura e o transplante autólogo de condrócitos.[1] Já as técnicas de restauração são aquelas definidas como procedimentos que substituem um defeito condral ou osteocondral com cartilagem hialina funcional e osso subcondral, sendo o enxerto osteocondral autólogo e o transplante osteocondral alógeno as técnicas que se enquadram sob essa definição.[1] Já as técnicas de regeneração compreendem métodos de intervenção que resultam na recapitulação da cartilagem hialina funcional e do osso subcondral.[1]
Técnicas de reparo da cartilagem
Microfratura
A microfratura é uma técnica de estimulação da medula óssea, descrita inicialmente no final da década de 1980 e indicada para defeitos condrais Outerbridge III a IV pequenos (<2 cm2 a 4 cm2, que consiste na realização de perfurações no osso subcondral, permitindo a migração de células progenitoras mesenquimais da medula óssea e de fatores de crescimento, formando um coágulo rico em células que irão proliferar e diferenciar, originando um tecido de reparo que preenche o defeito condral.[16]
[17]
[18] A saída de sangue e de gordura pelas perfurações com o torniquete desinflado deve ser verificada para garantir que a superfície subcondral foi penetrada o suficiente, devendo ser realizada ao final da do procedimento, de modo que a visão não seja prejudicada durante a artroscopia e permita a formação de coágulo no local do defeito de cartilagem.[10]
Representa a primeira linha de tratamento de defeitos pequenos da cartilagem articular do joelho, promovendo melhora da função e alívio da dor a médio prazo.[19] Entretanto, a técnica frequentemente resulta na formação de um tecido fibrocartilaginoso que é inferior à cartilagem hialina sob pontos de vista biomecânico e bioquímico, sendo vulnerável aos traumas mecânicos, deteriorando 18 a 24 meses após o procedimento.[7]
[18]
Os pacientes com melhor prognóstico após o tratamento com microfratura, segundo revisão sistemática recém-publicada, são jovens, com curta duração de sintomas pré-operatórios, mecanismo de lesão não degenerativo, com lesões de menor tamanho e lesão única.[20] Por outro lado, índice de massa corporal elevado (>30kg/m2), tamanho do defeito superior a 2-4 cm2, defeito localizado no compartimento patelofemoral ou no plateau tibial e pacientes com idade superior a 40 anos apresentam pior prognóstico.[21] Contraindicações à técnica incluem o desvio de eixo do membro inferior, defeitos de espessura parcial e defeitos não contidos de cartilagem, osteoartrite, artrite sistêmica imuno-mediada e incapacidade de cumprir o protocolo de reabilitação pós-operatório.[22]
As principais complicações envolvem o preenchimento incompleto do defeito, quando o coágulo preenche ou é aderente a apenas uma porção dão da lesão; sobrecrescimento ósseo, relacionado à formação de um osteófito intralesional ou elevação da placa óssea sucondral; e a deterioração ao longo do tempo.[23]
Transplante autólogo de condrócitos
O transplante autólogo de condrócitos (ACI, autologous chondrocyte implantation) é um procedimento, recomendado para defeitos superiores a 3 e 4 cm2, realizado em duas etapas.[17]
[18] A primeira consiste em um procedimento artroscópico diagnóstico no qual é realizada uma biopsia para obtenção de um fragmento de cartilagem que é cultivado e expandido in vitro por 4 a 6 semanas, e na segunda é realizado o implante das células diferenciadas no defeito e coberto com um retalho de periósteo.[9] Entretanto apresenta como desvantagens necessitar de duas cirurgias e possuir custo elevado,[18] além de necessitar de um maior período de recuperação para maturação do neotecido que varia entre 6 e 12 meses.[7]
Ao longo do tempo, a técnica sofreu modificações e há quatro gerações de transplante autólogo de condrócitos até o presente: primeira geração (P-ACI), condrócitos em suspensão injetados sob um retalho de periósteo; segunda geração (C-ACI), condrócitos em suspensão injetados sob uma membrana de colágeno; terceira geração, condrócitos cultivados em uma superfície carreadora ou em uma matriz porosa/scaffold, quarta geração, condrócitos implantados em um procedimento em uma etapa.[24]
A terceira geração do transplante autólogo de condrócitos corresponde à técnica denominada MACI (matrix-assisted chondrocyte implantation), que envolve o uso de uma membrana de colágeno tipo I/III na qual os condrócitos são cultivados e depois implantados no defeito.[25]
[26] A membrana age como um carreador celular que distribui as células a uma densidade de 500.000 a 1.000.000 de células por cm2 e é fácil de implantar.[10] Outros produtos foram desenvolvidos e são comercializados, como por exemplo o Hyalograft® C (Fidia Advanced Biopolymers, Abano Terme, Itália) que usa o ácido hialurônico como suporte, o ChondroGide (Geistlich Biomaterials, Wolhusen, Suiça), que é uma membra de colágeno I/III porcina e o NeoCart® (Histogenics Corporation, Waltham, Estados Unidos), que é um scaffold de colágeno tipo I.[27]
[28]
No nosso meio, uma série de casos observacional analisando os resultados de 15 pacientes tratados pela técnica de AMIC (codrogênese autóloga induzida por matriz, usando membrana porcina de colágenos tipo I/III, evidenciou maior benefício em pacientes com lesões condrais de maior tamanho pela avaliação de escores clínicos subjetivos e pela avaliação radiológica pelo MOCART (Magnetic Resonance Observation of Cartilage Repair Tissue).[29] Outro estudo realizado com 56 pacientes apresentando lesões únicas condrais ou osteocondrais demonstrou que a cultura de condrócitos em fibrina poderia proporcionar um microambiente favorável para a síntese de matriz, melhorando a condição clínica e a atividade dos pacientes após um ano de acompanhamento.[30]
As complicações mais comuns do transplante autólogo de condrócitos são a hipertrofia do enxerto, comumente associada com o retalho de periósteo, com incidência de 28% a 36%; a regeneração insuficiente da cartilagem, mais comum nos reparos com cobertura de periósteo (3,8%) e com uso de matriz (3,7%); a delaminação, que corresponde à separação da cartilagem do osso subjacente, ocorrendo em 22,1% dos casos; e a fusão inadequada/insuficiente, quando o enxerto falha em se incorporar à cartilagem adjacente, que ocorre em cerca de 23,1% dos casos.[23]
Técnicas de restauração da cartilagem
Enxerto osteocondral autólogo
O uso de enxerto osteocondral autólogo consiste na transferência de cilindros osteocondrais contendo cartilagem madura e osso do próprio paciente, de regiões com relativamente menor carga, para regiões de maior carga articular, podendo ser realizado por via aberta ou artroscópica.[26] É indicado para defeitos de espessura total de cartilagem ou osteocondrais maiores (> 3 cm2).[17]
Os cilindros retirados devem contornados para encaixar no local da lesão e possuir entre 6 e 10 mm de diâmetro, podendo ser usados numerosos cilindros no formato de um mosaico se necessário para o tratamento defeitos maiores (>3 cm2).[10]
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[32] Entretanto, não é recomendado o uso de mais de dois cilindros grandes devido à morbidade ao sítio doador.[26] Deve-se retirar um cilindro de 10 a 15 mm de profundidade, cuja medida deve ser confirmada após extração.[26]
Os cilindros são fixados por press-fit, não necessitando material para fixação, mas com cuidado na manutenção da perpendicularidade em relação ao sítio receptor e reprodução da curvatura da superfície articular.[9]
[10]
[26]
Possui como principais vantagens ser um procedimento realizado em único estágio, o menor custo em relação ao enxerto osteocondral, a capacidade de tratar lesões com envolvimento subcondral[10] e ausência de risco de transmissão de doenças,[24] e como desvantagens a quantidade autolimitada de tecido, além da morbidade ao sítio doador, sendo por isso indicado para lesões menores (< 2 cm2).[9]
[18] Além disso, existe preocupação com a formação de fibrocartilagem entre os cilindros, o que ocasiona um resultado misto no reparo.[33] Um estudo afirmou que quando adequadamente usada, a técnica de mosaicoplastia pode produzir resultados excelentes com grande durabilidade e impacto funcional, com baixas taxas de morbidade e baixo custo.[34]
Uma técnica publicada recentemente descreveu a retirada de enxerto osteocondral da articulação tibiofibular proximal.[35]
Transplante osteocondral
O transplante osteocondral envolve o transplante de um enxerto de cadáver consistindo em cartilagem articular viável e o seu osso subcondral subjacente, sendo uma opção de tratamento para lesões de tamanho superior a 2,5 cm2. Pode ser usado para fornecer uma superfície de cartilagem hialina para defeitos condrais profundos, além de preencher defeitos ósseos associados.[12]
O transplante osteocondral é indicado para pacientes com defeitos de cartilagem sintomáticos grandes (≥2cm2), secundários a trauma, fraturas intra-articulares, osteonecrose, osteocondrite dissecante e revisão de procedimentos de cartilagem que falharam anteriormente.[36]
[37] Pode ser utilizado na forma de cilindros osteocondrais como os utilizados na mosaicoplastia ou na forma de enxertos maiores com instrumentação no momento da cirurgia de modo a ser compatibilizado com o tamanho do defeito do receptor.[26]
O método de armazenamento dos enxertos (por exemplo, congelados, criopreservados, a fresco) tem papel decisivo na viabilidade dos condrócitos, na sua imunogenicidade e no tempo para transplante,[38]
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[40] sendo tipicamente armazenados em meio específico entre 4°C e 37°C.[36] Os enxertos a fresco possuem o maior grau de viabilidade celular, entretanto esta começa a reduzir após 14 dias naqueles refrigerados a 4°C,[38] atingindo 70% de condrócitos viáveis até 28 dias,[41] sendo deletéria após esse período.[37]
A compatibilidade de tamanho entre o doador e o receptor também é um ponto importante a ser considerado, sendo primordial garantir a congruência ótima da superfície para o tamanho, curvatura e formato para minimizar a formação de degrau articular, carga na borda do enxerto e risco de falência do enxerto.[37]
Apresenta como vantagens o fato de poder ser realizado em um único procedimento,[9] alcançar a arquitetura articular precisa e tratar grandes defeitos sem morbidade ao sítio doador.[42] Entretanto possui como desvantagens o fato de apresentar uma curva de aprendizado operatória mais difícil, o alto custo dos materiais, alta taxa de reoperação precoce (30% em dois anos), a disponibilidade de enxerto de joelho com dimensões semelhantes e o fato de a manipulação excessiva aumentar a morte dos condrócitos.[36]
A técnica tem demonstrado resultados favoráveis com união radiográfica em 86% dos casos e bons a excelentes resultados em 86 a 89% em 2 anos. Entretanto, pacientes com idade superior a 30 anos e que realizaram três ou mais procedimentos prévios apresentam piores resultados.[33] No Brasil, o transplante osteocondral foi considerado, em um estudo, como sendo um procedimento seguro e apresentando bons resultados clínicos em curto e médio prazo para o tratamento de lesões osteocondrais do joelho (> 4cm2).[43] Entretanto, outro estudo alertou lesões ocorridas por uso de corticosteróides, lesões bipolares e doença degenerativa apresentam resultados inferiores em longo prazo utilizando enxerto a fresco.[44]
Perspectivas de tratamento
Cartilage picada ou particulada (Minced or particulate cartilage)
O princípio do uso de cartilagem autóloga picada ou particulada (“minced cartilage”, “particulate cartilagem” ou “cartilagem chips”) se baseia em cortar cartilagem hialina saudável e viável em pequenos pedaços, o menor possível (<1 mm3) até atingir uma aparência pastosa, seguido da implantação direta na lesão condral ou osteocondral.[45]
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A fragmentação induz a reparação através da ativação de condrócitos na migração, proliferação e diferenciação.[46] Deve ser realizada de forma rápida, com cortes precisos (usando bisturi, shaver ou picotador), evitando esmagar a cartilagem o que reduziria a viabilidade celular.[45]
[46] Quanto menor o tamanho do fragmento, maior o potencial de proliferação e diferenciação dos condrócitos.[46]
O procedimento, realizado por aberta[47] ou artroscópica,[48] é indicado para todos os tipos de lesões (contidas, isoladas e unipolares), podendo também ser usado em lesões osteocondrais. As técnicas de fixação descritas envolvem o plasma rico em plaquetas, cola de fibrina, membranas e uma combinação entre elas.[46] Apresenta como vantagens ser um procedimento em um estágio que transplanta condrócitos e matriz extracelular, podendo ser totalmente realizado por via artroscópica, rápido e atrativo economicamente. Entretanto, é limitado pelo tamanho do defeito.[48]
Recentemente, foi descrita uma técnica utilizando cartilagem articular juvenil alógena intacta, particulada, com fragmentos aderidos ao defeito utilizando adesivo de fibrina. A cartilagem juvenil (<13 anos) apresenta como vantagem possuir potencial condrogênico superior ao da cartilagem adulta, além de ter demonstrado em laboratório a capacidade de formar cartilagem semelhante à hialina, com viabilidade celular de 40 a 45 dias entre a coleta e a enxertia.[49]
Nos Estados Unidos da América, as técnicas de cartilagem autóloga picada (Cartilage Autograft Implantation System [CAIS; DePuy/Mitek]) e cartilagem juvenil particulada alógena (DeNovo Natural Tissue [NT]; Zimmer Inc, Warsaw, Estados Unidos) foram descritas. Na primeira, CAIS, a cartilagem hialina é retirada artroscopicamente de uma área com pouca carga (parede lateral do nó intercondilar ou margem troclear), com um instrumento que picota a cartilagem em fragmentos de 1 a 2 mm e, posteriormente, dispersa a cartilagem picotada em um scaffold biodegradável. Já na segunda, DeNovo NT, após preparo do defeito e medida das suas dimensões, o enxerto é aplicado (um pacote para cada 2,5 cm2 de tamanho do defeito). Ambos os procedimentos são promissores, porém os estudos sugerem que são necessários mais pesquisas para definir as suas indicações e contraindicações.[17]
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Wodzig et al.[51] demonstraram resultados promissores do tratamento de 18 pacientes com procedimento de cartilagem autóloga picotada, com melhora significativa na função articular, qualidade de vida e dor após 12 meses de acompanhamento. Além disso, a avaliação radiológica evidenciou boa qualidade de cartilagem no mesmo período através do escore MOCART.
Aspirado de medula óssea e aspirado concentrado de medula óssea
O aspirado de medula óssea é uma mistura complexa de componentes celulares, incluindo plaquetas, células brancas, células vermelhas, precursores hematopoiéticos e não-hematopoiéticos.[52]
[53] Já o aspirado concentrado de medula óssea (BMAC, bone marrow aspirate concentrate) descreve a mistura de elementos da medula óssea com células tronco mesenquimais isoladas da medula óssea obtida por uma ou múltiplas centrifugações de um aspirado de medula óssea[52]
[53] O aspirado concentrado de medula óssea já foi estudado isoladamente ou associado a procedimentos de reparo da cartilagem com boa eficácia clínica. Entretanto, ainda permanecem algumas questões quanto ao seu uso, incluindo a fonte de células, necessidade de expansão, momento de tratamento e quantidade.[53]
Aspirado microfragmentado de tecido adiposo
O aspirado microfragmentado de tecido adiposo é um procedimento inovador e seguro,[54] sendo considerado simples, sustentável, minimamente invasivo, rápido e em um estágio[55] Dentre os métodos disponíveis no Brasil, o Lipogems® envolve um processo não enzimático utilizando força mecânica para que a gordura, obtida da gordura abdominal ou dos flancos, seja lavada, emulsificada e microfragmentada, removendo sangue e resíduos, sem detrimento da integridade do nicho estromal vascular.[56]
Células tronco mesenquimais expandidas
O uso das células tronco mesenquimais expandidas no cenário clínico pode ser considerado seguro, tendo em vista a ausência de relatos a curto e médio prazo de eventos adversos maiores tanto relacionados ao tratamento, quanto ao procedimento para retirada das células. Além disso, a melhora clínica e os achados positivos histológicos e nos exames de imagem encontradas em alguns estudos indicam sua efetividade.[57] Todavia, o caminho ainda pode ser considerado longo se levarmos em consideração toda a complexidade relacionada aos processos de condrogênese e de reparo da cartilagem articular.[58]