Palavras-chave
cotos de amputação - osteomielite - retalhos cirúrgicos - transplante ósseo
Introdução
O turn-up tibial é um tipo incomum de amputação-rotoplastia com diversas possíveis indicações.[1] O objetivo desta técnica é o desenvolvimento de um coto mais longo e funcional, utilizando a perna ou o pé do paciente para a reconstrução de defeitos femorais ou tibiais.[2] Desde o primeiro relato de Sauerbruch,[3] menos de 30 casos foram publicados. A diferença com relação à rotoplastia de Van Nes[4] é o eixo de rotação, pois a perna é girada 180° sobre a coxa no plano coronal em vez de no plano axial.
Devido à raridade de indicação desta cirurgia, há poucas informações sobre o manejo do feixe neurovascular. O objetivo deste artigo é apresentar uma abordagem à técnica de turn-up tibial para evitar o impacto dos vasos poplíteos e do nervo ciático.
Relato de Caso
Este relato de caso foi autorizado pelo Comitê de Ética institucional em 12 de setembro de 2022, e o paciente assinou o termo de consentimento livre e esclarecido.
Um paciente do sexo masculino, de 33 anos, sofreu uma fratura exposta de grau IIIB do fêmur distal e da patela após um acidente de moto em área rural. Foi atendido inicialmente em centro rural de baixa complexidade, onde foi submetido à fixação externa e a diversos desbridamentos por contaminação macroscópica. Como o caso não pôde ser tratado no local, o paciente foi encaminhado à nossa instituição com diagnóstico de sepse de partes moles e osteomielite.
Houve necessidade de ressecção femoral distal devido à necrose óssea e à persistência da sepse após a administração de antibióticos de amplo espectro e desbridamentos. O paciente recebeu um espaçador provisório de cimento e o processo séptico foi controlado.
As feridas cicatrizaram e o implante permaneceu estável durante o tratamento antibiótico por seis semanas. A osteossíntese patelar foi realizada para preservar o mecanismo extensor. O paciente continuou com o fixador por seis meses devido à perda de acompanhamento. Então, os implantes foram removidos e convertidos em um novo espaçador sobre uma haste intramedular longa para artrodese
O paciente decidiu continuar com o espaçador, mas, depois de um ano, houve reativação da infecção ([Fig. 1A]). Considerando as dificuldades de reconstrução do fêmur, o comprometimento de partes moles e a extensão da infecção ([Fig. 1B]), o paciente optou por cirurgia ablativa. Foi proposta uma plastia tibial para a preservação do comprimento após o desbridamento com coleta de amostras e novo esquema antibiótico.
Fig. 1 Aspecto clínico e radiológico um ano após o procedimento de artrodese de joelho. (A) Os tecidos moles apresentam fístula com secreção purulenta. (B) Radiografia panorâmica anteroposterior reconstruída. A extensão da haste pode ser observada, incluindo as alterações no fêmur, como as áreas escleróticas e a nova formação óssea em volta do espaçador de cimento. Na tíbia distal, foram identificadas zonas radiolúcidas relacionadas à ponta da haste.
Na última cirurgia, os implantes foram removidos e os canais tibiais/femorais foram limpos com sistema de irrigação-aspiração (Reamer Irrigator Aspirator [RIA], Johnson & Johnson MedTech, New Brunswick, NJ, Estados Unidos). O retalho foi desenhado, com ressecção da pele anterolateral da coxa, patela, ligamentos, terços proximal e distal da tíbia, fíbula, e parte anterior da pele da perna e do pé ([Fig. 2A]). O periósteo tibial anterior foi preservado removendo-se o músculo tibial anterior ([Fig. 2B]).
Fig. 2 Resumo das etapas cirúrgicas e imagens intraoperatórias. (A) Desenho do retalho nas incidências anteroposterior e medial, indicando as zonas a serem submetidas à ressecção. (B) A cor azul-claro identifica os segmentos ósseos a serem removidos. (C) Aspecto preliminar do retalho após excisão óssea com distribuição normal das estruturas neurovasculares. (D) Deslocamento medial dos vasos poplíteos e ligadura dos vasos tibiais anteriores e posteriores. O nervo fibular comum também foi movido após a ressecção da fíbula. (E) Turn-up tibial e ajuste do comprimento do segmento intercalar. (F) Fixação interna dos componentes tibial e femoral com placa de compressão dinâmica.
Os vasos tibiais foram ligados distalmente; os vasos poplíteos e o nervo ciático foram identificados e movidos medialmente na área de flexão do retalho ([Figs. 2C] e [2D]). A tíbia remanescente foi ajustada e fixada ao fêmur com placa de compressão dinâmica (PCDD) de titânio de 4,5 mm (Königsee Implantate GmbH, Allendorf, Hessen, Alemanha) após a rotação do retalho em 45° no plano axial ([Figs. 2E] e [3]). O fechamento dos tecidos moles e da pele foi realizado da maneira habitual.
Fig. 3 Imagens intraoperatórias em incidência anteroposterior e de perfil mostrando o retalho osteomusculocutâneo virado para cima e fixado ao fêmur.
Não houve intercorrências à recuperação, e o paciente apresentou consolidação óssea aos seis meses ([Fig. 4]). O acompanhamento foi mantido por mais de 40 meses. O paciente está totalmente recuperado, e é capaz de realizar suas atividades com prótese externa ([Figs. 5A] e [5B]).
Fig. 4 A sequência apresenta a progressão da consolidação entre o fêmur e a tíbia. (A) As radiografias foram realizadas no período pós-operatório imediato. Há clipes cutâneos na área da ferida que delimita o retalho. (B) Imagem adquirida dois meses após a cirurgia. Há alguma formação de calo, mas nenhum achado sólido de consolidação pôde ser identificado. (C) Radiografias obtidas após seis meses, mostrando a consolidação completa na junção.
Fig. 5 Aspecto clínico final durante a reabilitação da marcha com uso de prótese externa. O paciente caminha com carga parcial, utilizando uma muleta. (A) A sustentação total do peso foi realizada alinhada aos apoios laterais. (B) Fotos do coto após a cicatrização das feridas. (C) Vista lateral das duas imagens do lado esquerdo. O paciente realiza flexão e extensão ativa do quadril sem esforço.
Discussão
O turn-up tibial é um tipo de cirurgia muito incomum, realizado na ausência de alternativas reconstrutivas.[5] Embora seja uma intervenção ablativa, seu principal objetivo é o desenvolvimento de cotos de amputação mais longos nos casos de ressecção total ou quase total do fêmur ou da tíbia.[6]
Os reparos anatômicos nesta reconstrução fazem com que os vasos poplíteos e o nervo ciático fiquem atrás do segmento tibial após a inversão do retalho. Portanto, há risco de impacto com claudicação vascular ou neurológica após a adaptação protética.
Desde o primeiro relato de Ferdinand Sauerbruch em 1922,[3] um total de 18 artigos foram publicados em bases de dados indexadas (PubMed, Hinari, ScienceDirect). O manejo adequado do feixe neurovascular poplíteo foi descrito em apenas em dois[7]
[8] desses estudos.
No primeiro, Peterson et al.[7] mencionaram que os vasos poplíteos podem precisar de liberação de 8 cm a 10 cm no ponto de rotação para evitar a amarração da tíbia. Nenhuma outra descrição foi feita sobre o manejo neurovascular.
No segundo, McDonald et al.[8] descreveram um retalho ósseo tibial pediculado sem partes moles. Embora este artigo mencione a utilidade da medialização do componente vascular, sua técnica depende de retalhos da coxa e sacrifica o nervo ciático. Portanto, suas observações não podem ser avaliadas na reconstrução convencional de Sauerbruch.
No caso aqui relatado, a liberação da artéria poplítea e do nervo ciático na área de flexão permitiu seu deslocamento medial, o que evitou o impacto com o osso. Além disso, a rotação do retalho em 45° no plano axial aumentou o comprimento do vaso e do nervo, e diminuiu o possível colapso da alça.
Em conclusão, o turn-up tibial é uma técnica de último recurso muito útil, mas pouco utilizada, para a reconstrução de cotos femorais longos. Embora diversas modificações possam ser feitas,[9] a medialização e o alongamento relativo das estruturas neurovasculares por meio da rotação do retalho parece ser uma boa estratégia para a prevenção do impacto ósseo e das complicações precoces ou tardias no coto.