CC BY 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo)
DOI: 10.1055/s-0044-1779309
Relato de Caso

Artropatia ocronótica e alcaptonúria (ocronose): Relato de caso[*]

Article in several languages: português | English
1   Departamento de Ciências da Saúde, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS), Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), Mossoró, RN, Brasil
2   Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Regional Tarcísio Maia (HRTM), Mossoró, RN, Brasil
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1   Departamento de Ciências da Saúde, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS), Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), Mossoró, RN, Brasil
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1   Departamento de Ciências da Saúde, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS), Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), Mossoró, RN, Brasil
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2   Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Regional Tarcísio Maia (HRTM), Mossoró, RN, Brasil
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3   Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Otávio de Freitas (HOF), Recife, PE, Brasil
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1   Departamento de Ciências da Saúde, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS), Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), Mossoró, RN, Brasil
2   Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Regional Tarcísio Maia (HRTM), Mossoró, RN, Brasil
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Resumo

A alcaptonúria (alkaptonuria, AKU, em inglês) é uma condição genética rara em que a deficiência da enzima ácido homogentísico oxidase, produzida pelo fígado e pelos rins, interfere no metabolismo dos aminoácidos fenilalanina e tirosina. Embora possa não apresentar sintomas, a AKU pode levar à ocronose, um acúmulo anormal em tecidos do corpo de um pigmento chamado alcaptona. Com o passar do tempo, esse acúmulo de pigmento nas articulações pode levar a uma osteoartrose secundária conhecida como artropatia ocronótica, que é a forma mais incapacitante da doença. Devido à raridade da condição e à falta de conhecimento disseminado quanto a ela, relata-se um caso para descrever um diagnóstico de artropatia ocronótica de joelho que só foi identificado após a cirurgia. Devido à raridade dessa condição, sobretudo no Brasil, a descrição de casos ajudará na compreensão da epidemiologia nacional, assim como na divulgação de mais informações sobre a AKU e suas manifestações clínicas, sobretudo as osteoarticulares.


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Introdução

Alcaptonúria (alkaptonuria, AKU, em inglês) é uma condição genética rara e autossômica recessiva resultante da falta da enzima ácido homogentísico oxidase, produzida pelo fígado e pelos rins, que desempenha um papel no metabolismo dos aminoácidos fenilalanina e tirosina.[1]

A AKU pode não apresentar sintomas, ou pode levar ao desenvolvimento da ocronose, uma condição em que um polímero de ácido homogentísico é acumulado como pigmento alcaptona nos tecidos do corpo.[2] Cerca de metade dos portadores AKU desenvolvem ocronose, mais comumente homens, em uma proporção de 2:1, e geralmente após a idade de 40 anos.[2]

A ocronose pode apresentar diversas manifestações clínicas importantes, incluindo artropatia, pigmentação ocular e cutânea, urina escura (acidúria homogentísica) e comprometimento cardiovascular. Com o passar dos anos, o acúmulo de pigmentos de ácido homogentísico nas articulações pode causar osteoartrose secundária, conhecida como artropatia ocronótica, que é a forma mais incapacitante da doença.[2] [3]

O diagnóstico da AKU é tipicamente baseado em achados clínicos, que são posteriormente confirmados pela detecção do ácido homogentísico na urina, em quantidades que podem chegar a cerca de 5g em um período de 24 horas.[2]

Devido à raridade dessa condição, sobretudo no Brasil, a descrição de casos ajudará na compreensão da epidemiologia nacional, assim como na divulgação de mais informações sobre a AKU e suas manifestações clínicas, sobretudo as osteoarticulares.


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Relato de Caso

Um paciente do sexo masculino, de 46 anos, procurou o Serviço de Ortopedia com queixas álgicas e instabilidade bilateral de joelho. O paciente tinha o alinhamento dos membros inferiores preservado, com testes da gaveta anterior e pivot-shift positivos, dor à palpação na interlinha articular, e sinais clínicos sugestivos de derrame articular e sinovite, bilateralmente. Ao exame radiológico, observou-se gonartrose tricompartimental de grau III de Kellgreen e Lawrence[4] bilateralmente. O estudo de ressonância magnética (RM) corroborou o diagnóstico de ruptura de ligamento cruzado anterior, condropatia tricompartimental avançada e sinovite com derrame articular, além de lesão degenerativa dos meniscos, bilateralmente ([Fig. 1]).

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Fig. 1 Estudo de ressonância magnética de joelho esquerdo. (A) Corte sagital; (B) corte coronal; (C) corte axial.

O paciente não sabia que era portador de AKU, e em nenhum momento houve suspeita clínica desse diagnóstico, apesar de o paciente apresentar algumas manifestações, como pigmentação escura (cinza e ocre) nas escleras, no pavilhão auricular, no nariz e nas mãos. O paciente não apresentava outras comorbidades, e os exames básicos pré-operatórios não levantaram a suspeita.

Frente ao não diagnóstico de AKU, optamos pela artroscopia de joelho com reconstrução ligamentar, e iniciamos pelo esquerdo, do qual o paciente se queixava de maior instabilidade.

No ato operatório, iniciado pela retirada de enxerto dos flexores, observou-se pigmentação extremamente escura, cinza e ocre, na fáscia do sartório e nos tendões do grácil e do semitendíneo. Frente ao achado, foi iniciada uma artroscopia do joelho, na qual o inventário evidenciou sinovite, lesão ligamentar e condropatia tricompartimental avançada, com coloração escura sugestiva de depósito de pigmentos na cartilagem articular, nos meniscos e nos ligamentos ([Fig. 2]). Como o caso não havia sido diagnosticado, foram realizadas sinovectomia, coleta de material para exame histopatológico, e o procedimento foi terminado com infiltração intrarticular com hilano G-F 20 e 40 mg de triancinolona hexacetonida ([Vídeos 1] e [2]).

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Fig. 2 Artroscopia do joelho evidenciando condropatia tricompartimental avançada, com coloração escura sugestiva de depósito intra-articular de pigmentos (artropatia ocronótica). (A) côndilo femoral; (B) sinóvia; (C) côndilo femoral.

Quality:

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O resultado do exame histopatológico veio como “tecido sinovial exibindo processo inflamatório crônico e depósito de pigmentos, semelhante a hemossiderina” ([Fig. 3]). Na consulta de retorno pós-operatório, procedeu-se ao exame ectoscópico mais cuidadoso e à anamnese mais direcionada, observou-se a pigmentação escura nas escleras, face e mãos. O paciente afirmou que, apesar de assintomático, apresentava desde criança urina com aspecto escurecido, e que seus dois irmãos mais jovens tinham quadro semelhante ([Figs. 4] e [5]). Após uma revisão da literatura e diante dos achados do caso, solicitamos a pesquisa de ácido homogentísico na urina, a qual veio positiva, e fechou-se o quadro de artropatia ocronótica por AKU. Fez-se uma busca ativa dos dois irmãos mencionados, e também confirmou-se que eram portadores de AKU. No momento, o paciente apresenta melhora das queixas álgicas, todavia, com instabilidade residualEm comum acordo com paciente, optou-se por seguir com o tratamento conservador (fortalecimento muscular e viscossuplementação), com possibilidade de artroplastia. Os irmãos não queixas, e estão em acompanhamento em nosso serviço.

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Fig. 3 Exame histopatológico de tecido sinovial exibindo processo inflamatório crônico e depósito de pigmentos.
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Fig. 4 Mãos do paciente evidenciando pigmentação cutânea característica.
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Fig. 5 Urina com coloração escura do paciente (acidúria homogentísica).

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Discussão

Como visto no presente relato, entidades nosológicas raras podem levar a más condutas. Daí a importância da sua divulgação, como no caso da artropatia ocronótica/AKU.

A AKU foi uma das quatro doenças descritas por Sir Archibald Edward Garrod AKU, cistinúria, pentosúria e albinismo) como resultantes do acúmulo de intermediários metabólicos devido a deficiências metabólicas,[1] e um dos primeiros distúrbios em humanos encontrados em conformidade com os princípios da herança recessiva mendeliana.[5] Sir Archibald vinculou a ocronose ao acúmulo de alcaptanos em 1902, e suas opiniões sobre o modo de herança foram resumidos em uma palestra proferida em 1908 no Royal College of Physicians, em Londres. Somente após 50 anos, o defeito enzimático foi atribuído à deficiência de homogentisato 1,2 dioxigenase (HGD).[6] Sir Archibald foi pioneiro no uso da expressão erros inatos do metabolismo para descrever as patologias ocasionadas por uma falha na bioquímica genética, e também sugeriu a teoria de que os genes seriam responsáveis pela síntese das enzimas.

A incidência global da AKU é rara, com uma frequência de 1 caso em cada 250 mil a 1 milhão de nascimentos,[7] e casos já foram identificados em cerca de 40 países.[8] A investigação das famílias afetadas mostrou que elas frequentemente residem em comunidades isoladas, o que leva à suposição de que a alta incidência da doença é principalmente devida ao efeito fundador, ou seja, à perda de diversidade genética como resultado do isolamento genético.[9] As mutações no gene HGD podem levar ao desenvolvimento de ocronose, mas não há uma correlação específica entre o genótipo e o fenótipo, ou seja, várias mutações diferentes podem resultar na mesma condição clínica.[10] No Brasil, segundo a Sociedade Brasileira de Alcaptonúria (AKU Brasil, www.akubrasil.com), o número de indivíduos portadores não chega a 20.

Como não há um tratamento direcionado para a AKU, a terapia é baseada no alívio dos sintomas. Em situações graves de osteoartrite, a cirurgia de substituição articular (artroplastia) é a opção de tratamento preferencial.[2] [3] No presente relato, optamos pelo tratamento conservador, com toalete articular do joelho e seguimento com viscossuplementação e fortalecimento muscular. Quando tal tratamento conservador não se mostrar mais eficaz, avaliaremos a necessidade de proceder à artroplastia total do joelho.


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Conflito de Interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Suporte Financeiro

A presente pesquisa não recebeu nenhum financiamento específico de agências dos setores público, comercial ou sem fins lucrativos.


* Trabalho desenvolvido na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), Mossoró, RN, Brasil.


  • Referências

  • 1 Zatkova A. An update on molecular genetics of Alkaptonuria (AKU). J Inherit Metab Dis 2011; 34 (06) 1127-1136
  • 2 Gonçalves FPA, Ribeiro FR, Filardi CS, Brasil Filho R. Artropatia ocronótica. Acta Ortop Bras 2006; 14 (01) 40-41
  • 3 da Silva Martins Ferreira AM, Lima Santos F, Castro Costa AM, Pereira Barbosa BM, Reis Rocha RM, Fontes Lebre JF. Knee osteoarthrosis secondary to ochronosis - clinical case. Rev Bras Ortop 2014; 49 (06) 675-680
  • 4 Kellgren JH, Lawrence JS. Radiological assessment of osteo-arthrosis. Ann Rheum Dis 1957; 16 (04) 494-502
  • 5 Mistry JB, Bukhari M, Taylor AM. Alkaptonuria. Rare Dis 2013; 1: e27475
  • 6 La Du Jr BN. Are we ready to try to cure alkaptonuria?. Am J Hum Genet 1998; 62 (04) 765-767
  • 7 Phornphutkul C, Introne WJ, Perry MB, Bernardini I, Murphey MD, Fitzpatrick DL. et al. Natural history of alkaptonuria. N Engl J Med 2002; 347 (26) 2111-2121
  • 8 Ranganath L, Taylor AM, Shenkin A, Fraser WD, Jarvis J, Gallagher JA, Sireau N. Identification of alkaptonuria in the general population: a United Kingdom experience describing the challenges, possible solutions and persistent barriers. J Inherit Metab Dis 2011; 34 (03) 723-730
  • 9 Srsen S, Müller CR, Fregin A, Srsnova K. Alkaptonuria in Slovakia: thirty-two years of research on phenotype and genotype. Mol Genet Metab 2002; 75 (04) 353-359
  • 10 Vilboux T, Kayser M, Introne W, Suwannarat P, Bernardini I, Fischer R. et al. Mutation spectrum of homogentisic acid oxidase (HGD) in alkaptonuria. Hum Mutat 2009; 30 (12) 1611-1619

Endereço para correspondência

Diego Ariel de Lima, MD, PhD
Departamento de Ciências da Saúde, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Federal Rural do Semi-Árido
Rua Francisco Mota 572, Pres. Costa e Silva, Mossoró, RN, 59625-900
Brasil   

Publication History

Received: 26 February 2023

Accepted: 29 May 2023

Article published online:
23 April 2024

© 2024. The Author(s). This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution 4.0 International License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/)

Thieme Revinter Publicações Ltda.
Rua do Matoso 170, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20270-135, Brazil

  • Referências

  • 1 Zatkova A. An update on molecular genetics of Alkaptonuria (AKU). J Inherit Metab Dis 2011; 34 (06) 1127-1136
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  • 10 Vilboux T, Kayser M, Introne W, Suwannarat P, Bernardini I, Fischer R. et al. Mutation spectrum of homogentisic acid oxidase (HGD) in alkaptonuria. Hum Mutat 2009; 30 (12) 1611-1619

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Fig. 1 Estudo de ressonância magnética de joelho esquerdo. (A) Corte sagital; (B) corte coronal; (C) corte axial.
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Fig. 2 Artroscopia do joelho evidenciando condropatia tricompartimental avançada, com coloração escura sugestiva de depósito intra-articular de pigmentos (artropatia ocronótica). (A) côndilo femoral; (B) sinóvia; (C) côndilo femoral.
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Fig. 3 Exame histopatológico de tecido sinovial exibindo processo inflamatório crônico e depósito de pigmentos.
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Fig. 4 Mãos do paciente evidenciando pigmentação cutânea característica.
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Fig. 5 Urina com coloração escura do paciente (acidúria homogentísica).
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Fig. 1 Magnetic resonance imaging of the left knee. (A) Sagittal section; (B) coronal section; (C) axial section.
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Fig. 2 Knee arthroscopy showing advanced tricompartmental chondropathy, with a dark color suggesting intra-articular pigment deposits (ochronotic arthropathy). (A) Femoral condyle; (B) synovium; (C) femoral condyle.
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Fig. 3 Histopathological examination of synovial tissue showing a chronic inflammatory process and pigment deposits.
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Fig. 4 Patient's hands showing the characteristic skin pigmentation.
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Fig. 5 Dark-colored urine of the patient (homogentisic aciduria).