Palavras-chave alcaptonúria - artropatia - ocronose
Introdução
Alcaptonúria (alkaptonuria , AKU, em inglês) é uma condição genética rara e autossômica recessiva resultante da falta da enzima ácido homogentísico oxidase, produzida pelo fígado e pelos rins, que desempenha um papel no metabolismo dos aminoácidos fenilalanina e tirosina.[1 ]
A AKU pode não apresentar sintomas, ou pode levar ao desenvolvimento da ocronose, uma condição em que um polímero de ácido homogentísico é acumulado como pigmento alcaptona nos tecidos do corpo.[2 ] Cerca de metade dos portadores AKU desenvolvem ocronose, mais comumente homens, em uma proporção de 2:1, e geralmente após a idade de 40 anos.[2 ]
A ocronose pode apresentar diversas manifestações clínicas importantes, incluindo artropatia, pigmentação ocular e cutânea, urina escura (acidúria homogentísica) e comprometimento cardiovascular. Com o passar dos anos, o acúmulo de pigmentos de ácido homogentísico nas articulações pode causar osteoartrose secundária, conhecida como artropatia ocronótica, que é a forma mais incapacitante da doença.[2 ]
[3 ]
O diagnóstico da AKU é tipicamente baseado em achados clínicos, que são posteriormente confirmados pela detecção do ácido homogentísico na urina, em quantidades que podem chegar a cerca de 5g em um período de 24 horas.[2 ]
Devido à raridade dessa condição, sobretudo no Brasil, a descrição de casos ajudará na compreensão da epidemiologia nacional, assim como na divulgação de mais informações sobre a AKU e suas manifestações clínicas, sobretudo as osteoarticulares.
Relato de Caso
Um paciente do sexo masculino, de 46 anos, procurou o Serviço de Ortopedia com queixas álgicas e instabilidade bilateral de joelho. O paciente tinha o alinhamento dos membros inferiores preservado, com testes da gaveta anterior e pivot-shift positivos, dor à palpação na interlinha articular, e sinais clínicos sugestivos de derrame articular e sinovite, bilateralmente. Ao exame radiológico, observou-se gonartrose tricompartimental de grau III de Kellgreen e Lawrence[4 ] bilateralmente. O estudo de ressonância magnética (RM) corroborou o diagnóstico de ruptura de ligamento cruzado anterior, condropatia tricompartimental avançada e sinovite com derrame articular, além de lesão degenerativa dos meniscos, bilateralmente ([Fig. 1 ]).
Fig. 1 Estudo de ressonância magnética de joelho esquerdo. (A ) Corte sagital; (B ) corte coronal; (C ) corte axial.
O paciente não sabia que era portador de AKU, e em nenhum momento houve suspeita clínica desse diagnóstico, apesar de o paciente apresentar algumas manifestações, como pigmentação escura (cinza e ocre) nas escleras, no pavilhão auricular, no nariz e nas mãos. O paciente não apresentava outras comorbidades, e os exames básicos pré-operatórios não levantaram a suspeita.
Frente ao não diagnóstico de AKU, optamos pela artroscopia de joelho com reconstrução ligamentar, e iniciamos pelo esquerdo, do qual o paciente se queixava de maior instabilidade.
No ato operatório, iniciado pela retirada de enxerto dos flexores, observou-se pigmentação extremamente escura, cinza e ocre, na fáscia do sartório e nos tendões do grácil e do semitendíneo. Frente ao achado, foi iniciada uma artroscopia do joelho, na qual o inventário evidenciou sinovite, lesão ligamentar e condropatia tricompartimental avançada, com coloração escura sugestiva de depósito de pigmentos na cartilagem articular, nos meniscos e nos ligamentos ([Fig. 2 ]). Como o caso não havia sido diagnosticado, foram realizadas sinovectomia, coleta de material para exame histopatológico, e o procedimento foi terminado com infiltração intrarticular com hilano G-F 20 e 40 mg de triancinolona hexacetonida ([Vídeos 1 ] e [2 ]).
Fig. 2 Artroscopia do joelho evidenciando condropatia tricompartimental avançada, com coloração escura sugestiva de depósito intra-articular de pigmentos (artropatia ocronótica). (A ) côndilo femoral; (B ) sinóvia; (C ) côndilo femoral.
O resultado do exame histopatológico veio como “tecido sinovial exibindo processo inflamatório crônico e depósito de pigmentos, semelhante a hemossiderina” ([Fig. 3 ]). Na consulta de retorno pós-operatório, procedeu-se ao exame ectoscópico mais cuidadoso e à anamnese mais direcionada, observou-se a pigmentação escura nas escleras, face e mãos. O paciente afirmou que, apesar de assintomático, apresentava desde criança urina com aspecto escurecido, e que seus dois irmãos mais jovens tinham quadro semelhante ([Figs. 4 ] e [5 ]). Após uma revisão da literatura e diante dos achados do caso, solicitamos a pesquisa de ácido homogentísico na urina, a qual veio positiva, e fechou-se o quadro de artropatia ocronótica por AKU. Fez-se uma busca ativa dos dois irmãos mencionados, e também confirmou-se que eram portadores de AKU. No momento, o paciente apresenta melhora das queixas álgicas, todavia, com instabilidade residualEm comum acordo com paciente, optou-se por seguir com o tratamento conservador (fortalecimento muscular e viscossuplementação), com possibilidade de artroplastia. Os irmãos não queixas, e estão em acompanhamento em nosso serviço.
Fig. 3 Exame histopatológico de tecido sinovial exibindo processo inflamatório crônico e depósito de pigmentos.
Fig. 4 Mãos do paciente evidenciando pigmentação cutânea característica.
Fig. 5 Urina com coloração escura do paciente (acidúria homogentísica).
Discussão
Como visto no presente relato, entidades nosológicas raras podem levar a más condutas. Daí a importância da sua divulgação, como no caso da artropatia ocronótica/AKU.
A AKU foi uma das quatro doenças descritas por Sir Archibald Edward Garrod AKU, cistinúria, pentosúria e albinismo) como resultantes do acúmulo de intermediários metabólicos devido a deficiências metabólicas,[1 ] e um dos primeiros distúrbios em humanos encontrados em conformidade com os princípios da herança recessiva mendeliana.[5 ] Sir Archibald vinculou a ocronose ao acúmulo de alcaptanos em 1902, e suas opiniões sobre o modo de herança foram resumidos em uma palestra proferida em 1908 no Royal College of Physicians, em Londres. Somente após 50 anos, o defeito enzimático foi atribuído à deficiência de homogentisato 1,2 dioxigenase (HGD).[6 ] Sir Archibald foi pioneiro no uso da expressão erros inatos do metabolismo para descrever as patologias ocasionadas por uma falha na bioquímica genética, e também sugeriu a teoria de que os genes seriam responsáveis pela síntese das enzimas.
A incidência global da AKU é rara, com uma frequência de 1 caso em cada 250 mil a 1 milhão de nascimentos,[7 ] e casos já foram identificados em cerca de 40 países.[8 ] A investigação das famílias afetadas mostrou que elas frequentemente residem em comunidades isoladas, o que leva à suposição de que a alta incidência da doença é principalmente devida ao efeito fundador, ou seja, à perda de diversidade genética como resultado do isolamento genético.[9 ] As mutações no gene HGD podem levar ao desenvolvimento de ocronose, mas não há uma correlação específica entre o genótipo e o fenótipo, ou seja, várias mutações diferentes podem resultar na mesma condição clínica.[10 ] No Brasil, segundo a Sociedade Brasileira de Alcaptonúria (AKU Brasil, www.akubrasil.com ), o número de indivíduos portadores não chega a 20.
Como não há um tratamento direcionado para a AKU, a terapia é baseada no alívio dos sintomas. Em situações graves de osteoartrite, a cirurgia de substituição articular (artroplastia) é a opção de tratamento preferencial.[2 ]
[3 ] No presente relato, optamos pelo tratamento conservador, com toalete articular do joelho e seguimento com viscossuplementação e fortalecimento muscular. Quando tal tratamento conservador não se mostrar mais eficaz, avaliaremos a necessidade de proceder à artroplastia total do joelho.